De partida, é importante notar que a iniciativa do Tribunal de Contas da União (TCU) de avaliar a ocorrência do “erro grosseiro” nas suas decisões revela a preocupação do órgão de controle de cumprir com o disposto no artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) — Decreto-lei 4.657/1942 —, o qual estabelece que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Revela, ainda, o propósito do controlador de aprimorar o processo de responsabilização de gestores públicos, em especial no que se refere à individualização de condutas nas condenações de ressarcimento ao erário e aplicação de sanções.
O TCU, a fim de delimitar o alcance da expressão “erro grosseiro”, passou a se debruçar com mais frequência sobre a inteligência do artigo 28 da Lindb. As decisões até o momento proferidas parecem se inclinar majoritariamente para a equiparação conceitual do “erro grosseiro” à “culpa grave”. Tem-se considerado como erro grosseiro aquele que resulta de grave inobservância do dever de cuidado e zelo com a coisa pública [1].
Em relação à jurisprudência que vem se firmado sobre o tema, merece registro o que restou consignado no voto condutor ao Acórdão 2012/2022 — 2ª Câmara, mais especificamente no trecho em que o relator, ministro Antônio Anastasia, discorre sobre as oscilações de entendimento da Corte de Contas quanto ao padrão de comportamento que deveria ser adotado como parâmetro para a caracterização do erro grosseiro (ou culpa grave).
Segundo o ministro, ora o tribunal recorre ao “padrão médio de diligência” como critério de aferição do erro grosseiro para imputar responsabilidade (Acórdão 1264/2019-Plenário, relator: ministro Augusto Nardes, entre outros [2]), ora se utiliza como referência o equívoco que pode ser percebido ou evitado por um gestor público com nível de diligência “abaixo do normal” ou “aquém do ordinário” (Acórdão 2391/2018-Plenário, relator: ministro Benjamin Zymler, entre outros [3]).
A essa altura, o leitor pode estar se perguntando: afinal, como é possível distinguir o “padrão médio” do “padrão abaixo do normal” de diligência do agente público? E mais, com base nos dois critérios que se desenvolveram na jurisprudência do TCU, qual seria a métrica para definir a partir de que nível de diligência o gestor passaria a incorrer no erro grosseiro? São questões cujas respostas exigem razoável grau de abstração.
A fim de facilitar a análise do erro grosseiro sob essas duas vertentes apresentadas pela jurisprudência do TCU, elaboramos a figura abaixo, que retrata uma escala numérica de 0 a 10, em que se correlaciona os graus de culpa (culpa grave, leve e levíssima) com os níveis de diligência que se pode esperar do gestor público no exercício de suas funções (mínimo, normal ou extraordinário). Ademais, quanto à caracterização do erro grosseiro, chamamos de Tese 1 a corrente que adota o critério do “padrão médio” e de Tese 2 a que segue a referência do “padrão abaixo do normal”.
Obviamente que a figura é apenas uma simplificação da realidade e a escala de 0 a 10 não tem rigor matemático, servindo tão somente para ilustrar a variação dos níveis de atenção que podem ser empregados pelo administrador público e a sua relação com os graus de culpa tradicionalmente apresentados pela doutrina.
A escala parte da ausência de dever cuidado e de baixíssimos níveis de diligência (de 0 a 2), faixa na qual se acha o sujeito que é absolutamente desidioso e relapso no exercício de suas atribuições, a ponto de não se importar com o resultado que a sua ação ou omissão pode gerar para a administração pública. Abaixo dele, apenas o agente que voluntária e deliberadamente quer o resultado do ato ilícito (dolo direito) ou que assume o risco de produzi-lo (dolo eventual).
No limite superior da escala (de 9 a 9.9) está o gestor fora do comum, que sempre age com níveis de atenção e cuidado extraordinários, que praticamente não comete falhas. É o que sempre produz mais em menos tempo e com qualidade superior. Chamando de “ponto fora da curva”. A faixa 10 está fora da escala pois retrataria o ser humano perfeito, aquele que nunca comente erros.
Entre os citados extremos, destaca-se, em primeiro plano, a faixa do administrador minimamente diligente (de 3 a 5). Aquele que poderia ter evitado a consumação do ato ilícito porque o resultado era previsível para qualquer agente que se encontrasse na mesma situação e que empregasse um nível normal de atenção.
Nessa faixa da escala, o sujeito chega a adotar medidas para a proteção do patrimônio público, diferentemente daquele que se encontra na faixa 0 a 2 (que age com absoluto desleixo), mas aludidas providências são insuficientes para evitar os riscos que acabam se materializando no resultado danoso. Exigia-se dele um cuidado maior, a considerar o nível de atenção médio que normalmente é demonstrado por seus pares nas mesmas circunstâncias fáticas. Todavia, o esforço que é despendido só permite que ele identifique as falhas mais gritantes e evidentes, ou seja, aquelas que não demandam investigação mais cuidadosa das circunstâncias, pois basta um nível de diligência mínimo para apurá-las.
Na faixa imediatamente seguinte (de 6 a 8) se encontra o administrador médio ou mediano, aquele que emprega nível de diligência no exercício de suas funções conforme a média de seus pares. É um gestor ciente de seus deveres e que cuida dos interesses de terceiros ao menos como qualquer pessoa cuidaria dos seus próprios interesses. Ele é falível e comente erros, mas suas falhas podem ser toleradas, especialmente porque elas escapariam à verificação de qualquer outro administrador inserido no mesmo contexto e que empregasse um nível de diligência ordinário. Apenas o agente extraordinário poderia identificar os erros incorridos nessa faixa da escala.
Na prática, é nesse intervalo entre as faixas de 3 a 8 em que se encontra a maioria dos agentes públicos. Embora este artigo ofereça reflexões acerca da existência de dois grupos que separam o intervalo acima, forçoso reconhecer que nem sempre será tarefa fácil promover o enquadramento ora proposto.
Identificando as situações
Um exemplo prático pode ajudar a identificar as duas situações limítrofes acima. Imagine-se a fase de planejamento de um processo licitatório em que se faz necessário estabelecer o orçamento estimativo pela Administração, com vistas a servir de parâmetro para determinar a aceitabilidade das propostas que serão apresentadas em comparação com o preço de mercado do produto ou serviço. De acordo com a legislação de regência [4] e o princípio da eficiência econômica, o orçamento da licitação deve ser construído de modo que os preços estimados fiquem o mais próximo possível da realidade de mercado.
Para tanto, é indispensável a realização de uma pesquisa de preços bem elaborada, na qual se possa confiar como parâmetro para a seleção de propostas vantajosas e que poderá ser decisiva para o sucesso ou o fracasso da contratação futura. Logo, exige-se do gestor público responsável pela confecção da pesquisa de preços um nível de diligência compatível com a importância desse instrumento para o processo licitatório, que se for negligenciado, poderá ser fonte de grande prejuízo para o poder público.
Vamos supor que o gestor responsável pelo setor de aquisições faça uma pesquisa de preços recorrendo a três orçamentos que ele mesmo solicitou por e-mail diretamente a três fornecedores do ramo de atividade econômica do objeto licitado e que possivelmente teriam interesse na contratação.
Como é do conhecimento comum para aqueles que lidam com licitações públicas, os potenciais fornecedores, quando são sondados a apresentar cotações de preços, tendem a ofertar valores com alguma “gordura”, na medida em que um orçamento superestimado naturalmente amplia as perspectivas de ganhos decorrentes de uma possível contratação com a Administração Pública, ainda que seja antecedida de um processo competitivo.
Não por outra razão que a jurisprudência do TCU se firmou no sentido de que a pesquisa de preços para elaboração do orçamento da licitação não deve se restringir às cotações realizadas junto a potenciais fornecedores, devendo ser utilizadas outras fontes como parâmetro, a exemplo de contratações públicas similares, sistemas referenciais de preços, pesquisas na internet em sítios especializados e contratações anteriores do próprio órgão licitante (Acórdão 4958/2022-Primeira Câmara, relator: ministro Augusto Sherman, entre outros).
No exemplo, digamos que a pesquisa de preços em questão tenha ficado restrita a cotações junto a três potenciais fornecedores. Imaginemos, ainda, que a inconsistência na referida pesquisa redundou numa contração pelo dobro do valor de mercado porque o orçamento da licitação estava superestimado (cheio de “gordura”). Nesse quadro, impõe-se indagar sobre a responsabilidade financeira do gestor público pelo prejuízo causado ao erário, bem como sobre a possibilidade de ser sancionado por tal irregularidade.
À luz do artigo 28 da Lindb, a pergunta que se coloca é a seguinte: agiu com erro grosseiro o agente público responsável pela elaboração da pesquisa de preços? A resposta vai depender da linha de pensamento a que se filiar o julgador dentro da escala proposta, o que demandará análise dos fundamentos da decisão.
Se for adotada a Tese 1, o órgão de controle pode considerar que a conduta do agente se distanciou daquela que seria devida pelo administrador médio, pois, na média, é de se esperar de quem trabalha com aquisições públicas que conheça a jurisprudência consolidada do Tribunal de Contas, bem como as sucessivas legislações que estabelecem as exigências a serem seguidas nas pesquisas de preços. Portanto, se empregasse um nível de diligência normal (de 6 a 8 na escala), o agente identificaria a temeridade de limitar a pesquisa apenas a três potenciais fornecedores.
Nesse passo, aos olhos da Tese 1, como o agente atuou com nível de diligência abaixo da média de seus pares, o que na escala equivale a um patamar inferior a 6, o erro que cometeu não seria tolerável, caracterizando, portanto, uma falha grosseira, razão por que ele responderá civil e administrativamente pelo prejuízo que deu causa aos cofres públicos.
Para a corrente segundo a qual a Tese 2 é a que melhor traduz o sentido do termo “erro grosseiro”, a falha na elaboração da pesquisa de preços poderia ser desculpável se fosse considerado que o agente público em questão empregou algum nível de diligência na estimativa de preços. Poderia simplesmente não ter feito cotação alguma ou utilizado apenas um único referencial de preços escolhido arbitrariamente, o que significaria total desatendimento às regras legais e absoluto descaso com o emprego de recursos públicos.
Assim, seguindo uma linha de raciocínio possível para a Tese 2, o fato de o gestor ter recorrido a três orçamentos de fornecedores distintos (do mesmo ramo de atividade do objeto licitado) poderia ser considerado uma atenuante da gravidade da culpa, a revelar um nível de diligência mínimo que não se coadunaria com a descrição de erro grosseiro de que trata o artigo 28 da Lindb.
Dito de outro modo, embora o nosso gestor hipotético não tenha se comportado à semelhança da média de seus pares, no que diz respeito à observância da legislação, da jurisprudência atual dos tribunais de contas e das boas práticas de contratações públicas, o julgador adepto da Tese 2 poderá entender que a adoção de diligências mínimas (dentro da faixa de 3 a 5 da escala acima) retiraria o elevado grau de negligência inerente ao erro grosseiro, de maneira a afastar a responsabilização do gestor faltoso.
Além disso, o caso concreto pode evidenciar a existência de circunstâncias específicas que acenem para um tratamento diferenciado do agente em relação à figura do administrador-médio, a exemplo do pouco tempo de exercício na atividade ou a ausência de oferecimento de capacitação básica antes da designação para uma nova função do servidor. Tais aspectos reforçariam, na situação concreta, a aplicação da Tese 2.
Erro grosseiro e multa
Por ocasião da prolação do Acórdão 4958/2022-Primeira Câmara, da relatoria do ministro Augusto Sherman, a Corte de Contas julgou processo de representação em que se apurou, entre outras ocorrências, a elaboração de orçamento estimativo deficiente, eis que amparado por pesquisa de preços restrita a cotações junto a potenciais fornecedores, sem que tivessem sido utilizadas outras fontes como parâmetro de preço de mercado, em desconformidade com Instrução Normativa nº 5, de 27/6/2014-MPOG, vigente à época, e com o entendimento consolidado da jurisprudência.
Assim, por entender que a conduta poderia ser tipificada como erro grosseiro, nos termos do disposto no artigo 28 da Lindb (Decreto-lei 4.657/1942), o TCU decidiu aplicar aos gestores a multa prevista no artigo 58, inciso II, da Lei 8.443/92.
Nas palavras do relator do acórdão acima referido, a condenação dos envolvidos decorreu da inobservância do dever de cuidado no trato com a coisa pública, na medida em que teriam se afastado da “conduta que seria esperada de um administrador público minimamente diligente”. Aparentemente, portanto, a conduta dos responsáveis pode ser enquadrada na faixa de 0 a 2 da escala acima.
Em seu voto, o relator reforça a convicção de que os gestores agiram com nível de diligência abaixo do mínimo aceitável, em razão das inúmeras falhas que concorreram para a indesejável restrição da competitividade do certame. No caso em foco, além da pesquisa de preços restrita a potenciais fornecedores, foram apuradas outras irregularidades graves, a exemplo da limitação da publicidade da disputa e da utilização de pregão presencial em detrimento do pregão eletrônico.
Enfim, o acervo de evidências convergiu para a caracterização da conduta dos agentes como erro grosseiro, haja vista o enquadramento do nível de diligência abaixo do mínimo esperado para o caso concreto.
Por tudo que foi dito até aqui, percebe-se que é muito tênue a linha que separa as duas correntes de interpretação erigidas pela jurisprudência do TCU para a caracterização do erro grosseiro. A escala que ora se propõe busca justamente auxiliar na identificação desse limite, por meio da gradação entre níveis de diligência e graus de culpa, de forma a elucidar o raciocínio subjacente às referências geralmente encontradas em julgados do TCU que debruçam sobre a discussão do erro grosseiro, notadamente quanto à distinção entre o “padrão médio” e o “padrão abaixo do normal” da conduta do gestor.
Há quem entenda que “(…) associar culpa grave à conduta desviante da que seria esperada do homem médio significa tornar aquela idêntica à culpa comum ou ordinária, negando eficácia às mudanças promovidas pela Lei 13.655/2018 na Lindb, que buscaram instituir novo paradigma de avaliação da culpabilidade dos agentes públicos, tornando mais restritos os critérios de responsabilização”[5].
Por esse raciocínio, com o acréscimo do artigo 28 à Lindb, promovido pela Lei 13.655/2018, não haveria mais que se falar no critério do administrador médio (Tese 1), para fins de apuração de responsabilidade dos gestores públicos. Pensar em sentido contrário, por essa linha, seria esvaziar o conteúdo do novo dispositivo e concluir que a Lei 13.655/2018 tão somente manteve a orientação tradicional da responsabilização civil e administrativa fundada na culpa.
No entanto, entendemos que a exigência do erro grosseiro não afastou a exegese segundo a qual o administrador médio continua servindo de parâmetro para apuração de responsabilidade dos agentes públicos. Importante assinalar que tal conclusão não retira o caráter inovador trazido pelo artigo 28 da Lindb. Explica-se.
Veja-se que pelo regime tradicional, ou seja, antes da Lei 13.655/2018, permitia-se a responsabilização dos agentes públicos pelas culpas leve e levíssima (faixas de 6 a 9.9 da escala acima), pois, como se disse, a intensidade da culpa não era relevante para definir o dever de reparação daquele que deu causa a um dano ao erário.
Com o advento da nova legislação, houve um deslocamento “régua” que mede o grau de reprovabilidade da conduta dos gestores. Na escala acima, o parâmetro de responsabilização desloca-se à esquerda, na medida em que se deixa de exigir níveis extraordinários de diligência, para fins de responsabilização por culpa leve ou levíssima. Nessa nova conformação, o agente público só começará a responder pessoalmente por seus atos se estiver abaixo do nível 6 da escala de diligência, abrangidas as métricas atinentes às Teses 1 e 2 da jurisprudência do TCU.
Bem se vê, portanto, que a Lei 13.655/2018 rejeita claramente a idealização de um “administrador Hércules”, ou seja, aquele administrador público quase infalível e que sempre faz as melhores escolhas independentemente das circunstâncias do caso concreto. Isso porque, com a exigência do erro grosseiro (ou culpa grave), passaram a ser toleradas as falhas que vão além do nível normal de diligência para identificá-las.
Assim, não é qualquer grau de culpa que acarretará a responsabilização do agente público, mas somente quando culpa decorrer de um erro que poderia ser cometido por qualquer outro gestor, agindo com nível de atenção ordinário, quando sujeito a idênticos fatores externos. Essa é a novidade trazida pela Lei 13.655/2018.
Por fim, a escala que ora se propõe demonstra que tanto a Tese 1 como a Tese 2 acima referidas são juridicamente factíveis, muito embora a jurisprudência do TCU ainda não tenha se estabilizado em favor de nenhuma delas. De toda sorte, a Lei 13.655/2018 impôs um ônus argumentativo diferenciado aos órgãos controladores, no sentido de que a motivação de suas decisões deve conter a explicitação do percurso racional e valorativo que conduzir à configuração erro grosseiro em cada caso concreto, seja pelo critério do “administrador médio” ou pelo do “padrão abaixo do normal”, enfrentado, ademais, todos os elementos que venham a interferir na culpabilidade do gestor.
[1] Nesse sentido: Acórdãos 957/2019, 1.264/2019 e 1.689/2019, todos do Plenário, tendo como Relator o Min. Augusto Nardes, entre outros).
[2] Vide Acórdãos 2599/2021-Plenário, Relator: Min. Bruno Dantas, 10679/2021-Primeira Câmara e 2.592/2021-Plenário, ambos tendo como Relator Min. Benjamin Zymler.
[3] Vide Acórdãos 3327/2019-Primeira Câmara, Relator: Min. Vital do Rêgo e 4447/2020-Segunda Câmara, Relator: Min. Aroldo Cedraz.
[4] No plano federal, a Instrução Normativa SEGES/ME n. 65, de 7 de julho de 2021.
[5] A esse respeito, confira-se o voto que fundamentou o Acórdão 63/2023-Primeira Câmara, da relatoria do Ministro Benjamin Zymler.