Os direitos do paciente e a liberdade religiosa
2 de agosto de 2024, 19h29
O Código Civil de 2002 introduziu, em seu teor, preceitos que antes careciam de um enfoque social e coletivo, trazendo adaptações às novas realidades e necessidades da sociedade contemporânea.

Dentre esses preceitos, encontram-se inscritos os direitos de personalidade, que são fundamentais para a garantia da dignidade, autonomia e integridade humana, pois são inalienáveis e universais, fatores que os tornam responsáveis pela base construtora de todos os outros direitos.
Questões complexas acabam se apresentando no âmbito dos direitos da personalidade quando conjugadas sob a perspectiva da prática médica e dos direitos do paciente. A afirmação é paradoxal, pois o exercício do ofício médico está justamente atrelado à preservação da vida e da integridade física das pessoas, o que parece, em certa medida, encontrar sintonia com os fins protetivos dos direitos da personalidade.
Entre essas questões complexas, pode-se destacar, por exemplo, as questões de cunho religioso, tal como se sucede com as situações relacionadas com as Testemunhas de Jeová, que no exercício de sua fé e religião, não admitem a transfusão de sangue no tratamento de sua saúde.
A questão complexa é absolutamente tormentosa, pois envolve o dilema entre a preservação da vida, norte condutor a guiar a conduta médica, e o direito à liberdade (religiosa), com expressão maior da autonomia da vontade.
Caso concreto
De forma ilustrativa, pode-se lembrar da notícia divulgada em 2022, pelo jornal Estado de Minas, de que um homem, que era Testemunha de Jeová, teria assinado um termo de recusa à transfusão de sangue perante um hospital de Belo Horizonte, sendo fiel às suas convicções religiosas.

No entanto, segundo a reportagem, o hospital teria optado por não reconhecer o documento e realizar o procedimento mesmo assim. O resultado só poderia ser trágico: o homem, após ter a sua vontade totalmente ignorada, veio a falecer após sua esposa apresentar uma determinação judicial para que o processo fosse interrompido [3].
A notícia reporta ainda que esposa teria ajuizado uma ação contra a instituição hospitalar, alegando que as circunstâncias dos fatos demonstravam a prática de discriminação religiosa e violação à honra de seu marido.
Todavia, a notícia também reporta que, em decisão fundamentada, o juiz responsável pelo caso deliberou como indevida a indenização, mesmo com a inobservância das escolhas e das convicções religiosas, pelo prestígio à vida e o procedimento de urgência envolvido.
É inegável que essa situação faz refletir sobre a linha tênue existente entre o artigo 15 do Código Civil, que diz que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com o risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica, e o Juramento de Hipócrates feitos pelos médicos que ensejam por salvar vidas a todo custo.
Diante dessas questões, o artigo 5º, VI, da Constituição estipula a inviolabilidade da crença religiosa, ao lado do direito à vida, como um direito fundamental.
Linha tênue entre os direitos da personalidade e a prática médica
Sem analisar casos específicos, a sociedade precisa expandir os seus horizontes acerca da razoabilidade da aplicação dos direitos personalíssimos perante questões religiosas, a fim de não se permitir espaço para a incidência de um racismo religioso guiado puramente pela ignorância da vontade e das escolhas de outrem, que, em muitas oportunidades, pode evidenciar a escolha existencial.
Os direitos da personalidade devem ser aplicados em sua totalidade, mas a sua aplicabilidade deve ser combinada com uma interpretação cuidadosa diante do contexto, dada a existência dessa linha tênue entre aqueles e a prática médica, conjugando com equilíbrio os diferentes direitos envolvidos.
Alternativas
Para a superação dessas questões já se encontram disponíveis alternativas como as diretivas antecipadas de vontade, nas quais as pessoas podem estabelecer sobre os cuidados e os tratamentos que objetivam receber nos momentos em que a sua capacidade de manifestação restar prejudicada.
Em que pesem as críticas dirigidas à proposta de revisão e atualização do Código Civil, o texto proposto pela comissão parece avançar sobre o tema debatido no presente texto, pois vai além de reforçar a impossibilidade de constrangimento a tratamento médico ou intervenção cirúrgica.
Encontram-se, entre as possibilidades do direito que se antevê pelo texto normativo proposto, a previsão expressa a respeito das diretivas antecipadas de vontade (artigo 15, § 1º), mandato existencial (artigo 15, § 2º), obrigatoriedade de prestação da melhor assistência médica (artigo 15, § 3º) e a recusa terapêutica (artigo 15-A).
As alternativas futuras podem se evidenciar como elementos relevantes para que a autonomia existencial seja preservada na sua integralidade e que não haja espaços limitados para a liberdade em todas as suas vertentes, inclusive a religiosa.
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