A securitização de recebíveis e a LC 208/2024
2 de agosto de 2024, 17h17
No dia 2 de julho, foi sancionada a Lei Complementar Federal nº 208, dispositivo legal que, entre outras medidas, dispõe sobre a cessão de direitos creditórios originados de créditos tributários e não tributários dos entes da Federação. Dessa forma, fica normatizada e padronizada no Brasil a securitização de ativos públicos nos três níveis de governo, tema que será abordado neste artigo.
A cessão de recebíveis (ativos públicos) ao setor privado, por meio de emissão de títulos à mercado, como forma alternativa para auferir receitas no curto prazo, já vinha sendo praticada no País há muitos anos. As emissões de títulos securitizados por entes públicos, na forma apresentada pela LC 208/2024, tiveram início no Brasil em 1996, a partir de processo instituído pela Caixa de Administração da Dívida Pública Estadual do Rio Grande do Sul (Cadip).
Entre 16 de janeiro de 1996 e 15 de julho de 2017, a Cadip realizou 11 emissões de debêntures em um montante acumulado (valor nominal) de R$ 1.223.546.161,65 no período, sob o acompanhamento da Comissão Valores Mobiliários (CVM) e dos órgãos de controle interno e externo do Estado.
A partir da iniciativa gaúcha, foram criadas fundações públicas de direito privado em outras unidades federativas, onde foram realizadas operações semelhantes. A Companhia Paulista de Securitização (CPSEC), empresa ligada ao governo de São Paulo, realizou operações que totalizaram R$ 1,2 bilhão; a Minas Gerais Participações S.A (MGI) realizou operações de securitização de recebíveis da dívida ativa no montante de R$ 316 milhões, entre 2012 e 2013; e a Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da PBH Ativos S.A., seguindo o modelo da MGI Participações, realizou securitização de recebíveis da ordem de R$ 230 milhões, entre 2013 e 2014.
As taxas de juros praticadas nessas operações variaram entre CDI + 2,5% (emissões da CPSEC de São Paulo) e CDI + 3,5% (emissões da MGI de Minas Gerais), o que representou, em média, uma taxa de juros de 11% ao ano, atualizados mensalmente por índices oficiais. De acordo com estudos realizados pelos entes públicos, a alternativa pela contratação de operação de crédito, importaria em custos maiores aos cofres públicos. O quadro a seguir, elaborado pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), apresenta as principais características das emissões antes da edição da LC 208/2024.

Fonte: Abdib
Em linhas gerais, as referidas operações, seguiram regras semelhantes, sob o amparo de resoluções da CVM (ICVM400/03 e ICVM476/09), além de Resolução do Senado (Res. 43/2001, art. 28, IV). Além de manifestação favorável da CVM, as operações de securitização necessitaram de autorização e aprovação do Poder Executivo e do Poder Legislativo (Projeto de Lei aprovado), junto da concordância da Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros.
Dessa forma, a efetivação das operações de securitização, nos casos citados, ocorreu a partir de lei autorizativa, aprovação da CVM e criação de entidade para a realização das securitizações (SPE). Por fim, a emissão somente seria possível a partir de análise e manifestação favorável das Procuradorias Gerais estaduais e municipais. Tais regras foram observadas no Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais e na Prefeitura de Belo Horizonte.
Cumpre ainda ressaltar que, no exercício financeiro de 2016, o estado do Piauí realizou a celebração de contrato com o objetivo de “realizar serviço de estruturação, para posterior operação de securitização do fluxo de recuperação dos créditos inadimplidos, correspondente à cobrança de direitos creditórios originários de tributos e demais créditos de natureza administrativa“, incluindo, ainda, a prestação de serviços de suporte e apoio à recuperação desses créditos. Tal operação foi coordenada pela SEFAZ/PI, no âmbito do contrato nº 62/2016.
Todas as operações de securitização citadas anteriormente foram recepcionadas pela LC 208/2024, que em seu artigo 3º estabelece, in verbis:
Art. 3º As cessões de direitos creditórios realizadas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios em data anterior à publicação desta Lei Complementar permanecerão regidas pelas respectivas disposições legais e contratuais específicas vigentes à época de sua realização.
Desde o exercício financeiro de 2016, as operações de securitização em nível estadual e municipal estavam interrompidas, tendo em vista a discussão e a necessidade da elaboração de norma federal que viesse padronizar essas operações, dando segurança jurídica à cessão de créditos e a securitização. A LC 208/2024 veio preencher essa lacuna e resolver as dúvidas que pairavam em relação a validade e a legalidade de tais operações.
Uma dúvida recorrente, e que importou em ações e processos contra algumas dessas operações, realizadas em nível estadual e municipal, dizia respeito à natureza da operação, que o artigo 39-A, incluído na Lei nº 4.320/1964 veio solucionar. As operações de cessão de ativos, de acordo com a LC 208/2024, não representam operações de crédito, devendo ser consideradas, na forma da Lei Complementar, operação de venda definitiva de patrimônio público, portanto, uma alienação de ativos públicos.
Securitização não é antecipação de receita
A securitização também não poderá ser considerada uma antecipação de receita orçamentária (ARO), na medida em que, as ARO’s, estão relacionadas a receitas que ainda não ocorreram, o que não é o caso dos valores inscritos na dívida ativa, que representarão um valor a receber, portanto um ativo. E esse ativo poderá ser negociado, assim como é possível a venda (alienação) de um bem público. Já o preço desse ativo será estabelecido pelo mercado privado, mediante regulamentação e fiscalização da CVM.

Em geral, as taxas de juros sobre o valor de compra dos recebíveis (dívida ativa parcelada, por exemplo) observarão os valores acrescidos aos créditos originários, quando inscritos na dívida ativa. Como exemplo, podemos citar o montante não pago de uma dívida de ICMS junto a um estado, no valor de R$ 1 milhão. Quando inscrito na dívida ativa, esse valor recebe um acréscimo que poderá chegar a 25%, de acordo com a legislação estadual, elevando o saldo devedor à R$ 1,25 milhão.
Além disso, a legislação estabelecerá a correção desse novo montante (R$ 1,25 milhão) por um índice oficial, em geral o IPCA, além de um acréscimo de 1% ao mês sobre o saldo devedor corrigido, no caso de parcelamentos. Tal medida, que encontra amparo legal no sistema tributário nacional, visa a inibir a sonegação fiscal e as ações dos maus pagadores de tributos.
Quando o poder público cria, por meio de lei, um programa de refinanciamento de dívidas (Refis), estimulando o particular a quitar seus débitos com o fisco, em geral, o que é retirado do valor inscrito na dívida ativa são os juros e as multas, preservando-se o valor original da dívida, corrigido até sua quitação. Ou seja, o poder público não poderá abrir mão do valor original corrigido (R$ 1 milhão no exemplo), o que representaria renúncia de receita, nos termos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Quando a fazenda pública anuncia uma redução de 100% de descontos sobre juros e multas está, na verdade, perdoando parte dos juros e das multas sobre o valor original, que foi acrescido sobre uma multa punitiva (25% no exemplo). O mesmo acontece quando a Receita Federal inclui um contribuinte na “malha fina”. O valor original do débito será acrescido de juros e multa.
Essa mesma lógica deve acompanhar o estabelecimento das taxas de juros a serem pagas aos potenciais compradores de créditos securitizados. Os juros pagos aos compradores das debêntures com garantia real, observarão os limites das taxas de juros e multas sobre o principal da dívida, estabelecidas em lei local. Em geral, as taxas de juros pagas aos compradores das debêntures, terão por limite os percentuais praticados no caso de um Refis. Nessa perspectiva, a securitização apresenta-se como alternativa aos programas de refinanciamento de dívidas, sem reduzir as receitas públicas.
E como ocorrerá de fato a securitização? Qual será o caminho correto para realizar a operação, nos termos da LC 208/2024, sem desrespeitar as regras tributárias e os princípios gerais da administração pública? A securitização de recebíveis, para sua concretização, deverá seguir as seguintes etapas:
- Será necessária a edição de uma lei ordinária, em nível local, que autorize a operação. Nesse caso, audiências públicas junto ao Poder Legislativo poderão trazer aprimoramentos para o processo, levando ao conhecimento da sociedade a escolha pela securitização.
- É recomendável também, na forma de lei ordinária, que o município ou o estado (ou a União) crie empresa vinculada e subordinada ao poder público para a realização dos procedimentos que envolvam a securitização (SPE). A realização de securitizações, por meio de fundos de investimentos em direitos creditórios (FIDC), apresentada algumas vezes como alternativa para a securitização, obedece a IN CVM nº 440/2006, o que vem sendo questionado pelo Tribunal de Contas da União, que em algumas ocasiões, como no caso da Prefeitura de Nova Iguaçu (TC 043.416/2012-8) e do governo do Distrito Federal — GDF (TC 016.585/2009), determinou à CVM o cancelamento das operações desses entes federativos.
- O ente público (União, estado, município) deverá realizar um levantamento dos recebíveis que deseja securitizar por meio de emissão de títulos a mercado, que será realizado pela empresa criada para essa finalidade. Em geral, essas empresas têm a forma de fundação pública de direito privado, empresa estatal não dependente, nos termos da Lei de Responsabilidade Fiscal. Em Belo Horizonte, a empresa de ativos à época das emissões era a PBH Ativos S.A; no Estado de São Paulo a Companhia Paulista de Securitização — CPSEC; em Minas Gerais, a Minas Gerais Participações S.A; no Estado do Rio Grande do Sul, a Caixa de Administração da Dívida Pública Estadual do Rio Grande do Sul — Cadip.
- Os recebíveis de titularidade do poder público (parcelamentos da dívida ativa por exemplo) serão transferidos (a parte a ser securitizada), para a empresa de ativos controlada pelo Estado, União ou Município emissor. Nesse momento, a empresa de ativos irá emitir a favor do ente público controlador debêntures subordinadas, no montante dos créditos parcelados a receber. Ou seja, em nível contábil será debitado (saída) junto ao ente público um valor relativo a créditos a receber de dívida ativa e creditado (entrada) o mesmo valor na forma de debêntures subordinadas emitidas pela empresa de ativos. Na contabilidade da empresa (SPE) a operação será inversa: entrarão recebíveis da dívida ativa e sairão debêntures subordinadas. A emissão das debêntures subordinadas, dependerá de autorização expressa da CVM. E os estados não poderão securitizar valores devidos aos municípios por repartição constitucional.
- A empresa de ativos criada para realizar a securitização deverá, por meio de licitação pública, contratar agente financeiro autorizado pela CVM para realizar a securitização e a emissão dos títulos privados, com lastro na dívida ativa parcelada. Em geral, os agentes autorizados são bancos de primeira linha, com patrimônio maior que o valor a ser securitizado. Entre as atribuições do agente financeiro contratado está a estruturação da operação e o lançamento à mercado das debentures com garantia real, que são aquelas que o setor privado irá adquirir, se a taxa de juros for atraente.
- Instituições financeiras controladas pelo ente público (o Banrisul no RS ou o Banco do Brasil na União) não poderão ser os compradores das debêntures a mercado, podendo atuar como prestadores de serviços de estruturação das emissões, junto ao agente financeiro contratado.
- Em geral, os contratos e os editais de lançamento dos títulos com lastro nos recebíveis (dívida ativa) já informam uma taxa de juros máxima que o poder público estará disposto a pagar pelos títulos. Clausula contratual (e isso é usual) obriga o agente financeiro emissor dos papéis a comprar os títulos que o mercado não desejar. É a chamada “cláusula de firme colocação”.
A venda dos papéis significa que parte dos valores que tem por lastro a dívida ativa parcelada, será transferida para o agente privado que comprar os títulos (debêntures). O saldo retornará para os cofres públicos. Já o valor arrecadado com a venda dos títulos será utilizado para recomprar as debêntures subordinadas que estão de posse do ente público controlador.
E aqui repousa a vantagem para a administração pública, na medida em que os valores auferidos com a venda dos créditos entrarão integralmente nos cofres da empresa de ativos, no momento da emissão a mercado. Esses valores serão utilizados para a recompra das debentures subordinadas que estão com o ente público controlador da SPE.
Securitização mantém obrigações do contribuinte
A securitização não extingue a obrigação correspondente. Ou seja, a obrigação do contribuinte em relação ao ente público permanece incólume. Também não modifica a natureza do crédito que dá origem ao fluxo cedido, uma vez que a operação não envolve o crédito, mas o fluxo financeiro dele decorrente. E não serão alteras as condições originais de parcelamento.
Com a securitização não há comprometimento financeiro por parte do ente federativo, no que se refere ao adimplemento dos créditos. Nesse sentido, o Parecer nº 1.633, elaborado pela Comissão de Constituição e Justiça, Economia e Planejamento e Finanças da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (referendando as operações da CPSEC), destaca que a cessão dos direitos de creditórios não se caracteriza como operação de crédito, mas sim alienação de uma ativo do Estado, não cabendo falar, assim, em observância ao disposto no artigo 38 da LRF e tampouco estabelecer limites orçamentários para a referida operação, na medida em que a mesma, diferentemente das operações de crédito, não enseja um comprometimento futuro por parte do Estado.
Importante ainda lembrar que os créditos que embasam os direitos de crédito autônomos cedidos versam sobre obrigação definitivamente constituída, pois parcelados e reconhecidos pelos contribuintes devedores. Trata-se, portanto, de recebíveis que já deveriam ter sido percebidos por parte do Ente Público, mas não o foram em virtude do parcelamento.
Do ponto de vista econômico-financeiro, a securitização representa operação simples, mas que vem levantando dúvidas, quando realizada pelo poder público. Nesse sentido, os órgãos de controle interno e externo, juntamente das Procuradorias locais farão o acompanhamento da operação em todas as etapas.
Cumpre também ressaltar que a reforma tributária irá unificar os principais tributos estaduais e municipais, sendo que o Comitê Gestor será o responsável pela inscrição da dívida ativa do IBS. Nesse caso, também esse órgão, a ser criado por norma federal, deverá se posicionar no futuro em relação a securitização de recebíveis, originários de dois entes públicos de esferas diferentes, ainda que preservada a titularidade dos créditos a receber. Essa nova realidade em relação a gestão da dívida ativa estadual e municipal poderá, em nosso entendimento, demandar mudanças e adaptações na LC 208/2024.
Outra característica da securitização, refere-se à necessidade de elaboração de rating para os papéis que serão emitidos, considerando o lastro dos tributos parcelados. Em geral, esse rating irá determinar a taxa de juros básica para o mercado, tendo em vista fatores como índice de inadimplência nos parcelamentos etc.
O processo da securitização, tendo em vista a observação do rito apresentado anteriormente, levará, em média, cerca de seis meses, no mínimo, para sua concretização. Nesse caso, os governos municipais, que encerram sua gestão em dezembro de 2024, dificilmente conseguirão realizar operações de securitização, independente da formação utilizada, visando auferir recursos para o pagamento de restos a pagar e demais despesas de final de mandato, tendo em vista o § 1º, inciso VII, do artigo 39-A da Lei 4320/1964, acrescentado pela LC 208/2024.
Isso porque será necessário aprovar a lei da securitização junto às Câmaras de Vereadores (o que demandará audiências públicas); contratar agente financeiro que esteja disposto a prestar serviços de emissão à mercado, com cláusulas de firme colocação; autorização da Comissão de Valores Mobiliários para a emissão das debêntures subordinadas; realização de rating dos papéis que serão securitizados; elaboração de pareceres técnicos e jurídicos atestando a vantajosidade da operação. Além disso, será necessário um volume importante de valores referentes à dívida ativa parcelada em nível municipal para que a operação se mostre vantajosa aos cofres públicos. Nesse sentido, em nosso entendimento, apenas os grandes municípios poderão se beneficiar da securitização de recebíveis.
Em termos operacionais, para a emissão de R$ 180 milhões de debêntures a mercado, por exemplo, deverão ser emitidas R$ 600 milhões de debêntures subordinadas. Ou seja, serão “separados” R$ 600 milhões de valores parcelados para a garantia do pagamento de uma dívida de R$ 180 milhões. Mas esses valores continuarão em poder do setor público, na qualidade de controlador da empresa de ativos. Sendo honrados os pagamentos mensais relativos aos R$ 180 milhões, os demais valores (R$ 420 milhões) continuarão retornando mensalmente aos cofres públicos, conforme cláusulas contratuais. Como regra, a emissão a mercado corresponderá a um percentual de 30% das debêntures subordinadas (valores parcelados).
Isso significa, na prática, que se a União (também alcançada pela LC 208/2024) desejar realizar a securitização da sua dívida ativa, poderá fazer ingressar nos cofres do Tesouro Nacional, no curto prazo, um montante aproximado de R$ 40 bilhões, já descontados os valores transferidos para estados e municípios. Esses valores, calculados a partir de estimativas da dívida ativa parcelada líquida da União (cerca de R$ 120 bilhões) poderão ser utilizados em investimentos públicos e para a cobertura do déficit da previdência social (§ 6º, do artigo 39 — A, da Lei 4320/1964, acrescentado pela LC 208/2024).
Os dados apresentados neste artigo referem-se ao formato das operações de securitização realizadas por alguns entes da federação entre 1996 e 2016, e que guardam correlação com os novos procedimentos estabelecidos na Lei Complementar Federal 208/2024. Já no caso da opção pela securitização em nível federal, o valor final da operação à mercado corresponderá a cerca de 30% dos parcelamentos da dívida ativa da União, já descontados os valores devidos a estados e municípios.
Nos últimos anos observamos no Brasil um aumento na eficiência da gestão pública nas áreas de controle e dos processos legais. Apesar da complexidade de uma operação não usual dentro do setor público, as Cortes de Contas e o Ministério Público, juntamente dos órgãos de controle interno, certamente estarão preparados para fiscalizar e orientar seus jurisdicionados na forma correta de executar os procedimentos de uma Lei Complementar discutida e aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada, sem vetos, pelo presidente da República.
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