Delatado tem direito de impugnar a validade do acordo de colaboração premiada
1 de agosto de 2024, 6h08
As recentes reformas no processo penal brasileiro estabeleceram o paradigma da justiça penal negociada (plea bargain) por meio de robustos institutos de negociação, seja de natureza sancionatória, como o acordo de não persecução penal, seja de natureza probatória, como a colaboração premiada. Desse modo, a persecução penal nos moldes clássicos, de inspiração continental, coexiste com essas modernas tendências persecutórias, nitidamente inspiradas no direito norte-americano.

Sem embargo, tal conjectura demanda certas adaptações. A tradição processualista brasileira, em alguns sentidos, é incompatível com o plea bargain, de modo que um transporte acrítico desses institutos estrangeiros pode distorcer a lógica garantista que deve(ria) reger a persecução penal. Nesse contexto, em um processo que trabalha com a noção de investigado ou réu colaborador, não podem subsistir inalterados os conceitos rígidos de sujeito ativo e passivo do processo.
Com efeito, a partir de uma visão clássica, o sujeito ativo, como autor no processo penal condenatório, via de regra, é o Ministério Público, ao passo que “o acusado é o sujeito passivo não só da relação jurídico-punitiva, como ainda da relação processual” [1]. Prosseguindo, a doutrina ainda delimita, de forma rigorosa, as duas categorias fundamentais que vão determinar o papel desses sujeitos na relação jurídica processual: o direito de ação e o direito de defesa; esse de titularidade do sujeito passivo, aquele, do sujeito ativo [2].
Assim, o direito de ação consiste no poder de provocar o Estado-juiz para que exerça a tutela jurisdicional sobre a hipótese acusatória [3]. A partir do momento em que esse direito é exercido, a parte acusadora passa a deter o ônus de provar sua hipótese, sob pena de improcedência [4]. O direito de defesa, por sua vez, consiste no direito de ser informado de todos os atos do processo, no direito à bilateralidade da audiência e no direito de prova e de influência na decisão do julgador [5]. Um, o direito de ação, é titularizado pelo acusador. Outro, o direito de defesa, pelo réu.
Esses conceitos, no entanto, não prevalecem inalterados num contexto de colaboração premiada. Se a barganha, consubstancializada na transação penal, suspensão condicional do processo e ANPP, diz respeito somente à situação jurídica do próprio negociante, a colaboração atinge diretamente direitos de terceiros, delatados [6]. Desse modo o acusado delator, apesar de não ser formalmente detentor de uma posição acusatória, expressa manifestações de cunho acusatório, mas tampouco deixa de ser parte integrante do polo passivo da demanda. Isto é, simultaneamente é “acusador” e acusado dentro de um contexto de jogo de soma-zero.
Não por outro motivo, os críticos deste instituto entendem a colaboração como uma forma imoral de persecução criminal (traição premiada, na expressão de Tourinho Filho), e sua presença no ordenamento jurídico como verdadeira confissão da incompetência do Estado na luta contra o crime [7].

Da perspectiva da teoria dos jogos, entretanto, a delação e a colaboração premiadas justificam-se por serem os instrumentos legais para implementar o famoso jogo do dilema do prisioneiro. O dilema de fato reside em que, se ambos agirem racionalmente, então serão com certeza condenados pelo crime mais grave e sofrerão punição mais severa, enquanto, se nenhum deles delatasse, o mais provável é que ficassem pouco tempo encarcerados. Porque o investigado prefere passar o menor tempo possível na prisão. Não importa que ação o comparsa escolha, é melhor delatar. Esta estratégia fora amplamente adotada na Operação Lava Jato, por exemplo.
Direito de defesa do delatado
Neste sentido, essa posição híbrida do agente delator resulta em um direito de defesa do réu delatado que não recai somente sobre a hipótese de acusação demandada, mas também sobre o conteúdo da delação, enquanto meio de obtenção de provas. Isto é, em última medida, o delator é uma espécie de acusador, e o delatado tem o direito a impugnar o conteúdo da delação. O STF reconheceu essa sistemática quando do julgamento do HC 166.373/PR, no qual foi fixada a seguinte tese:
“Havendo pedido expresso da defesa no momento processual adequado (art. 403 do CPP e art. 11 da Lei 8.038/1990), os réus têm o direito de apresentar suas alegações finais após a manifestação das defesas dos colaboradores, sob pena de nulidade” [8].
Conforme salientou o ministro Alexandre de Moraes em seu voto, o delator ocupa uma situação peculiar no processo penal, pois somente se sua delação efetivamente corroborar para a condenação de outros réus lhe são concedidos os prêmios acordados com o Parquet ou com a polícia, de modo que não há “qualquer dúvida de que o interesse processual do delator é absolutamente oposto ao interesse do delatado”. Assim, chegou à seguinte conclusão:
“Impossível, portanto, falarmos materialmente na existência de litisconsórcio passivo entre delator e delatado, uma vez que o sucesso da delação, e, consequentemente a obtenção das vantagens premiais oferecidas pelo Ministério Público ao delator, depende da condenação do delatado.”
Ademais, ressaltamos também que no Inquérito 3.994, o Supremo Tribunal Federal decidiu que imputações calcadas apenas em depoimentos de réus colaboradores, sem provas mínimas que corroborem a acusação, levam à rejeição da denúncia por ausência de justa causa.
Não obstante, fato é que se a jurisprudência do STF já inovou reconhecendo a natureza acusatória da delação premiada, o STJ, em recente decisão, foi além ao estabelecer a tese de que não somente deve ser oportunizado ao deletado o direito de impugnar o conteúdo da colaboração, como também é de seu interesse a legalidade, a regularidade e a voluntariedade do acordo enquanto negócio jurídico processual.
Nos autos do REsp 1.954.842/RJ, a corte assentou que:
“O terceiro delatado tem o direito de impugnar a validade do acordo de colaboração premiada, o que pressupõe o direito de acessar as gravações das tratativas e da audiência de homologação do acordo pelo juiz, a fim de verificar a legalidade, a regularidade e a voluntariedade do colaborador ao assinar o instrumento de colaboração” [9].
Conforme destacou o relator, ministro Rogério Schietti Cruz:
“Igualmente, se o acordo de colaboração premiada – assim como a busca e apreensão – também é meio de obtenção de prova e, por isso, serve de instrumento para a coleta de elementos incriminatórios contra terceiros, é natural que esses terceiros tenham interesse e legitimidade para impugnar não apenas o conteúdo de tais provas, mas também a validade da medida que fez com que elas aportassem aos autos.”
Tal decisão representou uma mudança de entendimento. Anteriormente, o STJ entendia que “o réu delatado, por força da ampla defesa, tem o direito de contraditar as imputações feitas no acordo de colaboração premiada, mas não tem legitimidade nem interesse jurídico em impugnar o acordo em si mesmo, suas cláusulas e os benefícios estipulados”[10].
Avanço na delação premiada
A alteração jurisprudencial representa um avanço significativo na definição dos paradigmas que regem a delação premiada no processo penal, por três motivos:
- reforça o caráter acusatório da delação premiada, ainda que como meio de obtenção de prova, reconhecendo o caráter de acusador do delator
- prestigia o direito de defesa, em um viés de defesa efetivamente ampla
- harmoniza a previsão legal de sigilo do acordo de colaboração com os direitos do delatado.
No que diz respeito ao primeiro ponto, é inconteste, como visto, o papel híbrido do delator no processo penal e o conteúdo acusatório da delação. A despeito de ser um meio de obtenção de prova, isto é, um instrumento extraprocessual destinado a identificar fontes de prova ou coletar meios de prova [11], a delação premiada, por sua própria natureza, sempre imputará responsabilidade penal a alguém, de modo que o delator é um “subacusador”.
Mas indo além, a decisão prestigia o direito de defesa na medida em que possibilita que o réu questione a legalidade do acordo de delação premiada e faça valer o seu direito a não ser condenado com fundamento em prova ilícita.
Ora, se a ampla defesa é o direito de “gozar de todas as faculdades e oportunidades processuais para alegar o que sua defesa entender mais conveniente, propondo e produzindo provas e, afinal, refutando a tese acusatória” [12], não se exclui de seu âmbito de incidência o direito de se questionar a legalidade de um meio de obtenção de provas. E isso só é possível se o acusado tiver plena ciência de todo o trâmite de negociação do acordo, como reconheceu a decisão do STJ.
Conforme Ludwig von Beling, o Estado deve impor autolimitações no campo da prova. Ou seja, além das exclusões de provas decorrentes dos “limites naturais à investigação humana”, devem existir limitações autoimpostas pelo Estado [13], decorrentes da noção de exclusão de provas ilícitas enquanto desestímulo reforçado à produção probatória ilegal pelo Estado, seus agentes e também por particulares [14]. Com base nesses fundamentos, é um direito do réu não ser condenado com base em provas ilícitas, bem como impugnar qualquer ilicitude probatória no âmbito da persecução penal.
Assim, tanto nas situações nas quais a ilicitude decorre exclusivamente de uma postura comissiva estatal, como um acordo firmado com vício de vontade, quanto em situações nas quais a irregularidade é provocada pelo próprio particular, o delatado tem direito subjetivo a questionar a legalidade da prova obtida, visto que a Constituição, em seu artigo 5°, LVI, veda a utilização de provas ilícitas em qualquer hipótese.
Por fim, a questão do sigilo do acordo, previsto no artigo 4º, § 7º, da Lei n. 12.850/2013, não pode servir como empecilho ao direito de defesa do acusado. Isso porque o sigilo ao qual se refere a norma é um sigilo geral a quem é alheio ao processo, e não às partes processuais, ainda que esteja sujeita ao regime jurídico do contraditório diferido ou postergado [15].
Portanto, a decisão do STJ representa um avanço significativo no que diz respeito aos direitos do acusado, reforçando o papel peculiar do delator dentre os sujeitos processuais, prestigiando o direito à ampla defesa e lendo corretamente o sigilo das investigações a partir de um regime jurídico compatível com os direitos fundamentais do acusado delatado.
[1] MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Vol. II. Campinas: Bookseller, 1997. p. 35.
[2] Idem. p. 43.
[3] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. Vol. I. 32. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 352.
[4] TORNAGUI, Hélio. Instituições de processo penal. Vol. I. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 334 e ss.
[5] CRUZ E TUCCI, José Rogério. TUCCI, Rogério Lauria. Constituição de 1988 e processo: regramento e garantias constitucionais do processo. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 61.
[6] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. São Paulo: Thompson Reuters, 2017. Ebook.
[7] RODRIGUEZ, Victor Gabriel. Delação premiada: limites éticos ao Estado. Rio de Janeiro: Forense, 2018. Ebook.
[8] STF – HC: 166373 PR, Relator: Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 30/11/2022, Tribunal Pleno, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 17-05-2023 PUBLIC 18-05-2023.
[9] STJ. 6ª Turma. REsp 1.954.842-RJ, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 14/5/2024 (Info 814).
[10] AgRg no HC n. 566.041/PR, Rel. Ministro Felix Fischer, 5ª T., DJe 4/9/2020.
[11] REBOUÇAS, Sérgio. Curso de processo penal. Vol. I. 2. Ed. Belo Horizonte: D´Placito, 2022. p. 722.
[12]CAMPOS, Gabriel Silveira de Queiroz. Princípios do processo penal: teoria, jurisprudência e direito internacional. Salvador: JusPodivm, 2021. p.126.
[13] BELING, Ernst Ludwig Von. As proibições de prova como limite para averiguação da verdade no processo penal. In: SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna. Proibições probatórias no processo penal. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013. p. 4.
[14] REBOUÇAS, Sérgio. Op. Cit. p. 684.
[15] CALLEGARI, André Luís. Colaboração Premiada: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2019. Ebook.
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