O conceito “ordem pública” é complexo e indeterminado, apresentando diversas formas no ordenamento jurídico, o que se justifica em razão do pouco estudo sobre o tema.
Dentre suas várias aptidões, a ordem pública pode ser vista como um princípio, e como tal, existe e serve para interferir na forma pela qual as relações jurídicas são regidas.
A provocação do estudo torna-se válida uma vez que as poucas decisões que citam o referido princípio não se prezam justifica-lo, bem como porque há pouca discussão sobre o assunto.
Dessa forma, este breve texto se destina a analisar o conceito de ordem pública e os seus reflexos no Direito Tributário. Destaca-se que não temos, pelo menos neste artigo, a pretensão de encontrar uma solução para questionamento, mas sim colaborar com a comunidade acadêmica e instigar o debate sobre o tema.
Uma análise sobre a matéria de ordem pública
Inicialmente, a matéria de ordem pública pode ser entendida como toda questão que envolva o interesse coletivo, ou seja, toda questão que ultrapasse os interesses individuais das partes.
Carmem Tibúrcio afirma que o conceito de ordem pública é de tipo aberto, uma vez que não se encontra descrito no ordenamento jurídico. Além disso, a autora afirma que a matéria de ordem pública pode ser identificada como o “conjunto de valores ou opções políticas fundamentais dominantes em determinada sociedade em determinado momento histórico” [1].
Em nome do interesse comum, que se dá em razão da importância que determinada matéria possui para a coletividade, cabe ao julgador o dever de observá-la, mesmo na hipótese de não terem sido suscitadas pelas partes envolvidas no processo.
No campo processual, as matérias de ordem pública possuem um caráter impositivo e devem ser observadas pelo juiz antes mesmo de adentrar no mérito da causa.
Apesar da aptidão que o juiz possui para reconhecer as matérias de ordem pública, deve-se ter em mente a necessidade de oportunizar às partes do processo a manifestação sobre as questões levantadas, conforme preconiza o artigo 10 do CPC/15.
Ademais, dentre as características da matéria de ordem pública, há de se destacar a sua imprescritibilidade, podendo ser reconhecida em qualquer momento e instância do processo, pelas partes ou pelo julgador, conforme dispõe o artigo 278, parágrafo único, do CPC/15.
O instituto da preclusão visa alcançar a segurança jurídica e a estabilidade das relações sociais, de modo a estabelecer prazos para determinados atos, com fito de não eternizar a relação processual.
Assim, como a matéria de ordem pública não se sujeita a preclusão, é possível questiona-las em qualquer momento do processo, desde que não tenha ocorrido o trânsito em julgado da decisão que pôs fim à discussão.
Apesar de princípio, a matéria de ordem pública possui limites. O trânsito em julgado é um exemplo de limitação a tal princípio. Podemos citar um exemplo prático sobre esta questão, sendo quando há recurso atacando parcela da decisão recorrida. A jurisprudência entende que, sobre a parcela não recorrida, ocorre o trânsito em julgado, impossibilitando a análise pelo tribunal ad quem, mesmo se a parcela que transitou em julgado verse sobre matéria de ordem pública [2].
No mesmo sentido, os pressupostos processuais são considerados como limitadores da matéria de ordem pública, na medida que a inobservância dos pressupostos impossibilita o reconhecimento da matéria de ordem pública.
Sabe-se que os pressupostos processuais são requisitos de validade e existência da ação, devendo ser analisado antes do mérito pelo julgador. Por esta razão, o não cumprimento de algum dos requisitos impossibilita o julgador de analisar o mérito.
A ordem pública e o Direito Tributário
A matéria de ordem pública é facilmente identificada no direito privado, ramo do Direito que tutela as relações particulares dos indivíduos, na medida em que sempre que há ocorrência de questões pertinentes à coletividade, o juiz ou as partes apontam a questão como “matéria de ordem pública”.
O Direito Tributário, por seu turno, é área do Direito que se presta ao estudo da tributação, sendo que discussões judiciais ou administrativas envolvem o Estado.
Pois bem, como pode um processo administrativo ou judicial, tendo como partes o Estado e o contribuinte, no qual há discussão relativa à determinado tributo, alegar matéria de ordem pública? No mesmo sentido, o Direito Tributário é matéria de ordem pública?
O Decreto nº 70.235/72 dispõe sobre o Processo Administrativo Fiscal, estabelecendo rito e forma para o cumprimento dos atos. Na mesma linha que o Código de Processo Civil, o PAF não conceitua o que vem a ser as matérias de “ordem pública”, ficando a cargos dos julgadores decidirem a partir da análise no caso concreto.
Ao analisar os julgados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), identificou-se diversos julgamentos que trataram sobre matérias de ordem pública. Todavia, nenhum acórdão conceituou a matéria de ordem pública.
Os julgadores geralmente associam a matéria de ordem pública aos pressupostos processuais, sendo que os mais citados são: legitimidade de parte ou interesse processual; prescrição e decadência; inovação recursal; cerceamento de defesa; tempestividade e correção monetária.
A legitimidade de parte ou interesse processual diz respeito à constituição do crédito tributário, uma vez que a constituição deve ocorrer em face do sujeito passivo, devendo a autoridade administrativa identificar corretamente o sujeito [3].
Assim, a legitimidade ou interesse processual é considerado requisito de admissibilidade recursal, devendo ser analisado de ofício, independentemente de requerimento das partes [4].
Acerca da prescrição e decadência, embora não haja contestação expressa concernente a esta questão, o julgador tem competência para analisar de ofício. Cita-se, a título de exemplo, acórdão proferido pelo Carf que analisou um processo sobre falta de valor no lançamento do IPI decorrente do fato de o contribuinte ter promovido a saída de produtos do seu estabelecimento com erro de classificação fiscal (Acórdão nº 3301-004.197).
Contraditando o auto de infração, o contribuinte alegou decadência do crédito referente aos fatos geradores ocorridos no período compreendido entre os meses de março e abril de 2004. A Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento não acolheu este argumento. Inconformado, o contribuinte interpôs recurso voluntário para rebater os demais argumentos, mas não trouxe no recurso a questão da decadência.
Ao analisar o recurso e o processo, o Carf constatou que havia um período abarcado pela decadência, considerando de ofício que este período decaiu, mesmo que no caso o contribuinte não tenha mencionado isso no recurso. Os conselheiros entenderam que a decadência é matéria de ordem pública [5].
A inovação recursal também é bastante citada nas decisões e merece a atenção em razão das diferentes opiniões na esfera administrativa e judicial. Entende-se por inovação recursal aqueles argumentos não discutidos na instância originária que são levados à segunda instância.
Para o judiciário, a inovação recursal não constitui formula mágica que obriga o julgador a se manifestar acerca de temas que não foram discutidos anteriormente [6].
Na instância administrativa, por outro lado, a inovação recursal pode ser conhecida quando a questão versar sobre matéria de ordem pública [7].
Acerca da correção monetária, é pacífico no Poder Judiciário que é considerada matéria de ordem pública, mesmo para aqueles casos em que não exista menção expressa à aplicação da correção monetária [8]. A discussão sobre a correção monetária se dá naqueles casos em que a parte deixa de fazer o pedido de maneira expressa, ficando a dúvida sobre a correção.
O cerceamento de defesa, por sua vez, se dá quando ocorre uma limitação na produção de provas de uma das partes no processo, que acaba por prejudicar a parte em relação ao seu objetivo processual.
No Direito Tributário, quando o lançamento/auto de infração não contém todos os motivos que levaram à conclusão adotada pela fiscalização, restando incompreensiva e prejudicando a defesa do sujeito passivo, a administração deve exercer seu poder-dever de anular seus próprios atos [9].
A tempestividade do recurso também é matéria de ordem pública, cognoscível de ofício em qualquer tempo ou grau de jurisdição. A questão da tempestividade, assim como os outros pressupostos processuais, causa grandes preocupações, na medida em que o não preenchimento inviabiliza a análise da matéria pelo julgador.
Sabe-se que o processo é tido como o conjunto de procedimentos que devem ser observados pelo julgador e pelas partes. No caso da tempestividade, enquanto requisito de admissibilidade, precisa ser preenchida para só então ter o mérito analisado.
Uma observação interessante a se fazer é se o julgador pode superar a intempestividade para os casos em que o recorrente consegue comprovar o direito alegado. Em outras palavras, o julgador, ao verificar que o recorrente comprova o direto alegado, não restando dúvidas, poderia julgar o recurso intempestivo?
O Judiciário possui jurisprudência pacífica no sentido de respeitar a formalidade dada ao processo, impossibilitando o reconhecimento de recursos intempestivos [10]. Assim, em hipótese alguma o julgador poderia considerar o recurso.
Na esfera administrativa, o que prevalece é a verdade material. O artigo 63, inciso I, do PAF prevê que a autoridade administrativa não pode conhecer recurso interposto fora do prazo. Todavia, o parágrafo segundo do mesmo artigo dispõe que a impossibilidade de reconhecer recurso fora do prazo não impede a administração de rever de ofício ato ilegal [11].
O artigo 37 da CF/88 trata dos princípios que a administração pública deve observar. Dentre os princípios impostos à administração, está o da moralidade pública.
O contraditório também deve ser observado, na medida em que toda e qualquer questão deve ser oportunizada à parte contraria de manifestar, cabendo ao julgador observar o princípio do contraditório antes de se manifestar sobre a questão de ordem pública.
O trânsito em julgado também inviabiliza a análise da matéria de ordem pública, impossibilitando o julgador de analisar a questão. Ressalta-se, novamente, que as matérias de ordem pública podem ser arguidas a qualquer tempo e grau de jurisdição, até o trânsito em julgado.
Considerações finais
Pode-se concluir do estudo que as matérias de ordem pública agem na limitação da autonomia da vontade das partes, prestigiando o princípio da segurança jurídica face à inércia dos interessados.
As matérias de ordem pública podem ser conhecidas de ofício pelo julgador, a qualquer tempo, ainda que não tenham sido suscitadas pela parte, enquanto não ocorrer o trânsito em julgado.
Não obstante, é válido destacar que as matérias de ordem pública possuem limites, uma vez que não se sobrepõem aos pressupostos processuais.
[1] TIBÚRCIO, Carmem. A ordem pública na homologação de sentenças estrangeiras. Processo e Constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: RT, 2006, p. 210-211.
[2] STJ, REsp 1484162/PR, rel. ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/02/2015.
[3] “A legitimidade das partes na relação jurídica tributária é matéria de ordem pública, portanto, indisponível, devendo ser conhecida de ofício pelo julgador administrativo.” (CARF, Acórdão nº 3201-003.408, 1ª Turma, 2ª Câmara. Relator: Paulo Roberto Duarte Moreira. Sessão de 02/02/2018)
[4] “(…) III. Na esteira do entendimento firmado no Superior Tribunal de Justiça, sob o regime dos recursos especiais repetitivos, “a pessoa jurídica não tem legitimidade para interpor recurso no interesse do sócio” (STJ, REsp 1.347.627/SP, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 21/10/2013). (…)
- A legitimidade recursal situa-se no âmbito do exame dos requisitos de admissibilidade do recurso, os quais devem ser examinados de ofício, independentemente de requerimento da parte ou do interessado, não se sujeitando à preclusão.
- Na forma da jurisprudência, “a questão da legitimidade recursal é matéria de ordem pública, cujo conhecimento pode-se dar de ofício, sem que fique caracterizada reformatio in pejus” (…)”
(AgRg nos EDcl no AREsp 568.904/RS, rel. ministra Assusete Magalhães, 2ª Turma, julgado em 22/5/2018, DJe 28/5/2018)
[5] “Embora não tenha o contribuinte tratado da decadência em seu Recurso Voluntário, esta matéria poderá ser reapreciada por este Conselho, visto tratar-se de matéria de ordem pública.” (CARF, Acórdão nº 3301-004.197, 1ª Turma, 3ª Câmara. Relator: Maria Eduarda Alencar Câmara Simões. Sessão de 31/1/2018)
[6] EDcl no AgRg no REsp 1359746/MG, Rel. ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, julgado em 05/02/2015, DJe 20/02/2015
[7] (CARF, Acórdão nº 2201-004.036, 1ª Turma, 2ª Câmara. Relator: Marcelo Milton da Silva Risso. Sessão de 9/11/2017)
[8] “A correção monetária é matéria de ordem pública, integrando o pedido de forma implícita, razão pela qual sua inclusão ex officio, pelo juiz ou tribunal, não caracteriza julgamento extra ou ultra petita, hipótese em que prescindível o princípio da congruência entre o pedido e a decisão judicial.” (STJ, Corte Especial, Rel. min. Luiz Fuz, REsp nº 1.112.524/DF, DJe 30/9/2010)
[9] “Cabe ao Carf o controle da legalidade do lançamento. A nulidade do lançamento por cerceamento do direito de defesa do sujeito passivo deve ser reconhecido de ofício por ser matéria de ordem pública.” (CARF, Acórdão nº 2002-000.148, 2ª Turma, Turma Extraordinária. Relator: Claudia Cristina Noira Passos. Sessão de 23/5/2018)
[10] “PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. TEMPESTIVIDADE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO.
- A tempestividade é requisito extrínseco de admissibilidade do recurso de apelação e constitui matéria de ordem pública, cognoscível a qualquer tempo e grau de jurisdição, inclusive no âmbito de embargos de declaração, mesmo que não haja manifestação neste sentido nas contra-razões.
- Publicada a sentença em 21/3/2002, há que se reconhecer a extemporaneidade do recurso de apelação interposto em 8/4/2002, após o decurso da quinzena prevista no art. 508 do CPC.
- Recurso especial provido.” (REsp 992.690/BA, Rel. ministro Castro Meira, 2ª TURMA, julgado em 4/12/2007, DJ 17/12/2007, p. 167)
[11] Art. 63. O recurso não será conhecido quando interposto:
I – fora do prazo;
II – perante órgão incompetente;
III – por quem não seja legitimado;
IV – após exaurida a esfera administrativa.
§1º. Na hipótese do inciso II, será indicada ao recorrente a autoridade competente, sendo-lhe devolvido o prazo para recurso.
§2º. O não conhecimento do recurso não impede a Administração de rever de ofício o ato ilegal, desde que não ocorrida preclusão administrativa.