Tema 1.209 dos recursos repetitivos: (in)compatibilidade do IDPJ com a execução fiscal
30 de setembro de 2023, 10h35
No final de agosto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou ao rito dos recursos repetitivos o Tema 1.209 a fim de solucionar a seguinte questão:
“Definição acerca da (in)compatibilidade do Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica, previsto no artigo 133 e seguintes do Código de Processo Civil, com o rito próprio da Execução Fiscal, disciplinado pela Lei nº 6.830/1980 e, sendo compatível, identificação das hipóteses de imprescindibilidade de sua instauração, considerando o fundamento jurídico do pleito de redirecionamento do feito executório”.

O assunto vem sendo amplamente debatido tanto na doutrina tributária quanto nos tribunais após a edição do Código de Processo Civil de 2015 (CPC), que estabeleceu, pela primeira vez, o rito processual da desconsideração da personalidade jurídica.
Ocorre que se podem tirar diferentes conclusões a partir desse debate. A própria questão submetida a julgamento no Tema 1.209 expõe a complexidade da celeuma: primeiro, o STJ deverá decidir se o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ) é compatível, ou não, com a execução fiscal. Segundo, caso a resposta à primeira questão seja afirmativa, o tribunal deverá resolver em quais fundamentos jurídicos o pedido de redirecionamento poderá estar baseado para que o IDPJ seja admitido na execução fiscal. Com efeito, os fundamentos jurídicos possíveis são diversos: artigo 50 do Código Civil, quando se tratar de abuso da personalidade jurídica; as hipóteses de responsabilidade de terceiros do Código Tributário Nacional (CTN) (artigos 124, 132, 133, 134 e 135 do CTN); e leis tributárias esparsas, como o artigo 30, IX, da Lei nº 8.212/1991.
Disso resulta que há, ao menos, quatro resultados diferentes que podem ser alcançados pelo STJ e que ocorrem na jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais (TRFs) atualmente, como veremos a seguir. Daí a relevância do julgamento pelo STJ, que tenderá a trazer uniformidade às decisões em execuções fiscais — inclusive no âmbito daquela própria corte.
Os resultados possíveis são os seguintes:
a) O IDPJ é totalmente incompatível com a execução fiscal.
b) O IDPJ é compatível com a execução fiscal e deve ser aplicado independentemente do fundamento jurídico do pleito de redirecionamento do feito executório.
c) O IDPJ é compatível com a execução fiscal, mas a aplicação depende do fundamento jurídico do pleito de redirecionamento do feito executório:
c.1) O IDPJ é compatível com a execução fiscal quando o fundamento jurídico for dissolução irregular, formação de grupo econômico, abuso da personalidade jurídica (artigo 50 do Código Civil), excesso de poderes ou infração à lei, ao contrato ou ao estatuto social (artigo 135, incisos I, II e III, do CTN), e para a inclusão das pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal (artigo 124, I, do CTN), desde que o terceiro não esteja incluído na Certidão de Dívida Ativa (CDA). Ou seja, o IDPJ não é compatível quando o pedido está fundamentado nos artigos 132, 133, I e II, e 134 do CTN ou quando o terceiro já conste da CDA.
c.2) O IDPJ é compatível com a execução fiscal nas hipóteses em que o fundamento jurídico do pedido de redirecionamento não está baseado em lei tributária (a exemplo do Código Civil). Assim, se o pedido estiver fundamentado nas hipóteses de responsabilidade de terceiros (artigos 132, 133, 134 e 135 do CTN) ou se o responsável já constar na CDA, não há necessidade de instauração do IDPJ.
Vejamos como os tribunais tratam da questão.
No próprio STJ, as duas Turmas de Direito Público, que julgam os casos de direito tributário, divergem entre si: a Primeira Turma pela solução apresentada em “c.2”, acima. Ou seja: afirma que a instauração do IDPJ é cabível — e até necessária — quando o pedido for embasado no abuso de personalidade jurídica, nos termos do artigo 50 do Código Civil, porquanto depende da comprovação da prática de desvio de finalidade ou confusão patrimonial; nos casos em que o redirecionamento está baseado no CTN, é prescindível a instauração do IDPJ. Exemplos desse entendimento, entre tantos outros, são: REsp 1775269/PR; AgInt no REsp 1706614/RS; AgInt no REsp 2041619/PR; AgInt no REsp 2065740/ES — esses dois últimos julgados em agosto de 2023.
A Primeira Turma argumenta que há relação de complementariedade entre a Lei nº 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal) e o CPC, que não se excluem quanto à aplicação do IDPJ, e que há previsão expressa no artigo 134 do CPC quanto ao cabimento do IDPJ “na execução fundada em título executivo extrajudicial”, da qual é espécie a execução do crédito fazendário.
Por outro lado, a Segunda Turma adota a solução “a” da lista acima, rechaçando a aplicação do IDPJ na execução fiscal. De fato, o órgão entende que “há verdadeira incompatibilidade entre a instauração desse incidente e o regime jurídico da Execução Fiscal, considerando que deve ser afastada a aplicação da lei geral”.
Essa Turma assevera que a execução fiscal, “diversamente da Lei geral, não comporta a apresentação de defesa sem prévia garantia do juízo, nem a automática suspensão do processo, conforme a previsão do artigo 134, §3º, do CPC/2015. Na execução fiscal a aplicação do CPC é subsidiária, ou seja, fica reservada para as situações em que as referidas leis são silentes e no que com elas compatível” (REsp 1786311/PR). Também podem ser citados os seguintes arestos a título de exemplo: AgInt no AREsp 2216614/RJ; AgInt no REsp 2006433/RJ; AgInt no REsp 1831059/PR; AgInt no REsp 1866901/SC.
Fica clara a dissonância entre as Turmas da Primeira Seção do STJ quando se constata, por exemplo, que a Primeira Turma permite a instauração do IDPJ a fim de alcançar pessoas jurídicas integrantes do mesmo grupo econômico em razão de alegada confusão patrimonial, enquanto a Segunda Turma dispensa o incidente nesses casos.
No âmbito dos TRF’s, a situação é ainda mais embaralhada.
Em 2021, o Órgão Especial do TRF-3 proferiu importante decisão ao julgar o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) 0017610-97.2016.4.03.00000, firmando tese mais ampla do que a da Primeira Turma do STJ (representada pelo item “c.1” na nossa lista acima). Em resumo, essa corte regional decidiu que o IDPJ é indispensável nos seguintes casos: “confusão patrimonial, dissolução irregular, formação de grupo econômico, abuso de direito, excesso de poderes ou infração à lei, ao contrato ou ao estatuto social (CTN, artigo 135, incisos I, II e III), e para a inclusão das pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal, desde que não incluídos na CDA”. Porém, concluiu que o incidente é dispensado nos pedidos de redirecionamento fundamentados nos artigos 132, 133, I e II, e 134 do CTN.
No Tema 1.209, foram escolhidos pelo STJ cinco recursos-paradigma para representar a controvérsia, sendo dois originários do TRF-3 [1]. Em ambos os processos, esse tribunal regional aplicou o seu precedente do IRDR. Curioso é que, num processo, o fundamento jurídico do pleito de redirecionamento da Fazenda Pública foi o artigo 135 do CTN e, no outro, foi a dissolução irregular da devedora, mas, inobstante isso, o tribunal determinou a instauração do IDPJ.
Dos outros três recursos-paradigma, um é do TRF-2 [2] e dois, do TRF-5 [3].
No acórdão proferido pelo TRF-2, vedou-se a aplicação do IRDR, embora não tenha havido aprofundamento da análise da compatibilidade do incidente com a execução fiscal. Além disso, apesar de citados acórdãos da Segunda Turma do STJ, não é possível concluir se o TRF-2 deixaria de aplicar o IRDR caso o fundamento jurídico do pedido de redirecionamento fosse apenas o artigo 50 do Código Civil.
Já o TRF-5 seguiu o caminho trilhado pela Primeira Turma do STJ após examinar detidamente o cabimento do IDPJ na execução fiscal, visto que “não é incompatível com a execução fiscal, podendo ser aplicado subsidiariamente às execuções fiscais”.
No TRF-4, embora se possa notar uma adesão à linha jurisprudencial da Segunda Turma do STJ [4], há votos divergentes em determinados acórdãos [5]. Ademais, o TRF-4 [6] aplica a sua Súmula 112, que afirma ser incabível o IDPJ nos casos de responsabilização dos sócios fundada na dissolução irregular da pessoa jurídica (artigo 135 do CTN). Assim, pode-se notar um nítido contraste com o TRF-3.
Reconhecer a aplicabilidade do IDPJ na execução fiscal implica assegurar a defesa prévia — isto é, o contraditório e a ampla defesa — a um terceiro que não integrava a relação processual originária. Como asseverou o TRF-5 em um dos processos afetados ao Tema 1.209, “na verdade, o que é incompatível com o rito das execuções fiscais e também com todos os demais processos judiciais é a inobservância de garantias fundamentais, entre as quais o direito ao contraditório e à ampla defesa, assegurado pela Constituição Federal, em seu artigo 5º, LIV e LV” [7].
Ademais, não raramente, alega-se que a suspensão do processo, provocada pela instauração do IDPJ por força do §3º do artigo 134 do CPC, terá como efeito mais lentidão da Justiça e uma perda de efetividade e celeridade processual [8]. De acordo com o Relatório Justiça em Números de 2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as execuções fiscais representam, aproximadamente, 34% do total de casos pendentes no Poder Judiciário, com taxa de congestionamento de 88% — isto é, a cada 100 execuções fiscais em andamento no ano de 2022, apenas 12 foram baixadas.
Contudo, por mais que se reconheça a relevância da duração razoável do processo no nosso ordenamento, conforme o artigo 5º, LXXVIII, da Constituição da República e o artigo 4º do CPC, não se podem perder de vista os direitos fundamentais à ampla defesa e ao contraditório, que também previstos na Constituição da República e no CPC. Nesse sentido, o próprio Relatório Justiça em Números, ao destacar o congestionamento das execuções fiscais, observa que:
“Dessa forma, o processo judicial acaba por repetir etapas e providências de localização do devedor ou patrimônio capaz de satisfazer o crédito tributário já adotadas, sem sucesso, pela administração fazendária ou pelo conselho de fiscalização profissional” (p. 149-150).
Ou seja, o Relatório revela uma hipótese para o congestionamento das execuções fiscais: o processo executivo não cria nada de novo; em geral, repete as mesmas tentativas de cobranças perpetradas pela administração fazendária antes do ajuizamento da execução fiscal, do que decorre que os casos de créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação permanecerão sem liquidação. Portanto, é essencial a busca por métodos alternativos de solução de conflitos em matéria tributária, a exemplo da transação e do negócio jurídico processual.
No Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro de 2022, realizado pelo Insper a pedido do CNJ, recomendou-se, justamente, o aprofundamento dos métodos alternativos de solução de conflitos tributários. Não obstante ainda seja cedo para qualquer conclusão a respeito dos efeitos da transação (instituída em nível federal com a Lei nº 13.988 em 2020) sobre o estoque de créditos inscritos em dívida ativa, constatou-se, no estudo, que a transação obteve impactos positivos na regularização dos contribuintes. De acordo com a própria Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, R$ 100 bilhões de créditos foram regularizados por meio das transações até junho de 2021 (data da notícia), em mais de 340 mil acordos celebrados, tendo sido arrecadados até aquele momento R$ 3,5 bilhões.
A pesquisa também levantou dados sobre o IDPJ em execuções fiscais. Constataram-se 14.785 IDPJ’s instaurados, que correspondem a 1% das execuções fiscais. Apesar de a pesquisa não ter obtido resultados gerais satisfatórios a respeito do tempo médio entre a instauração e o julgamento do incidente, o TRF-3 foi capaz de informar que o tempo médio de tramitação do IDPJs ativos é de 1.035 dias.
Daí que eventuais ganhos de celeridade e efetividade processual não podem se sobrepor à real finalidade do IDPJ: a garantia de direitos fundamentais dos contribuintes, notadamente o contraditório e a ampla defesa.
Diante de todo o emaranhado de soluções dadas aos pleitos de instauração do IDPJ pelos tribunais regionais e à ausência de isonomia no tratamento de questões idênticas dele decorrente, espera-se que o STJ decida que eventual redirecionamento da execução fiscal deverá seguir o rito próprio previsto no CPC.
[1] REsp 2039132/SP e REsp 2035296/SP.
[2] REsp 2013920/RJ.
[3] REsp 1971965/PE e REsp 1843631/PE.
[4] Por exemplo: AG 50165110420214040000, Primeira Turma; AG 50032460320194040000, Primeira Turma; AG 50050576120204040000, Segunda Turma; AG 50204164620234040000, Segunda Turma.
[5] Por exemplo: AG 50175579120224040000, Primeira Turma.
[6] A Súmula 112 do TRF-4 foi fundamento determinante, por exemplo, nos seguintes casos: AG 50258848820234040000, Primeira Turma; AG 50122728320234040000, Segunda Turma.
[7] REsp 1843631/PE.
[8] LIMA, Jucileia. (2020). Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica e a sua Aplicabilidade na Execução Fiscal à Luz da Teoria do Diálogo das Fontes. Revista Direito Tributário Atual, (44), 207–231. Recuperado de https://www.revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/807.
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