Opinião

Regimes próprios de previdência e responsabilidade fiscal

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27 de setembro de 2023, 6h39

A responsabilidade fiscal é a arte de classificar e equacionar demandas sociais intergeracionais com os limites de fontes de receitas impostos ao respectivo ente público. Entre as demandas sociais dispostas no orçamento público, estão em evidência os gastos com saúde, educação e previdência para servidor público do ente, quando existe um regime próprio de previdência social (RPPS).

Este último item é motivo de preocupação crescente. Segundo o Anuário Estatístico de Previdência Social do RPPS (Aeps) de 2021, 38% dos 5.595 entes possuem regime próprio de aposentadoria para os seus servidores, isto é, não se sujeitam unicamente às regras gerais do INSS. Os RPPS contam com mais de 4,5 milhões servidores públicos aposentados e pensionistas que respondem por 44% do universo de segurados, e representam 57% das obrigações totais dos planos previdenciários. Não seriam, desta forma, alcançados por eventuais alterações nos planos de benefícios, como, por exemplo, o aumento da idade mínima ou mudanças nas regras de cálculo de aposentadorias e pensões.

Tais fatos se traduzem em trajetória crescente da folha dos servidores públicos inativos, que somou R$ 418 bilhões em 2021, e teve como contrapartida deficit financeiro de R$ 221 bilhões. No caso dos entes subnacionais, a folha de inativos correspondeu a 12% das suas despesas totais empenhadas naquele ano, e o resultado foi negativo em R$ 83,1 bilhões. A título de comparação, no mesmo período, o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) contava com 36,4 milhões de beneficiários  também inclui benefícios assistenciais e de legislação específica além de aposentados e pensionistas  cujas despesas totalizaram R$ 710 bilhões, com déficit financeiro reportado de R$ 247 bilhões.

Considerando tamanha disparidade entre os regimes, a crônica insuficiência de receitas, e o fato de o RGPS ser de responsabilidade da União, a discussão a respeito de alterações nas regras previdenciárias dos servidores públicos ainda se faz oportuna. Este tema, entretanto, soa repetitivo, visto que tivemos uma reforma da previdência há pouco tempo, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 103 de 2019. Ocorre, porém, que a questão não foi resolvida, longe disso. A reforma de 2019 abrangeu  desastradamente e tendo em vista as eleições locais no ano seguinte  apenas servidores da União, submetendo estados e municípios ao desgaste político de passar suas próprias leis. Por conta disto, até aqui, menos de um terço dos entes com RPPS promoveram algum tipo de alteração legislativa desde a promulgação daquela emenda.

No entanto, mesmo com a realização da reforma, não há garantia de vitória sobre os déficits previdenciários. Após o trabalho hercúleo para o ajuste de seus regimes próprios, é comum que os governos lancem medidas compensatórias como reajustes salariais generosos e revisões nos planos de carreira dos servidores. Entretanto, poucos gestores públicos lembram que tais benesses automaticamente implicam em acréscimos para servidores inativos.

Pressionados pelo ciclo político e desatentos sobre a repercussão intertemporal destas ações nos regimes previdenciários, os gestores, muitas vezes, passam ao largo da responsabilidade fiscal. Programam uma verdadeira bomba-relógio sobre o orçamento público, cuja detonação se precipita na medida em que janela do bônus demográfico vai se fechando, fenômeno que comprime a chamada razão de dependência  proporção entre servidores ativos e inativos  e inviabiliza, progressivamente, o regime repartição simples. Logo, o tempo entre uma reforma e outra será cada vez menor.

Desta forma, a saúde dos RPPS precisa ser acompanhada de perto através dos relatórios de avaliação atuarial. Neles, os fluxos de receitas e despesas previdenciárias são monitorados anualmente. É premente ter atenção para os casos de insuficiência financeira, quando não há recursos para a cobertura tempestiva das aposentadorias e pensões, e também avaliar a diferença entre valor presente dos fluxos de receitas e despesas previdenciárias ao longo do ciclo de vida do plano. Caso aquele valor presente seja negativo, teremos a ocorrência do chamado deficit atuarial. Esta é a medida do rombo, da ausência de cobertura das obrigações futuras, que um RPPS possui.

Dados do Aeps 2021 indicam que o deficit atuarial atingiu R$ 1,3 trilhão para a União e R$ 3,3 trilhões para os entes subnacionais, montante equivalente a 53% do PIB daquele ano. Como paralelo, na mesma base de comparação, nossas estimativas apontam que o valor presente do fluxo de insuficiências financeiras do RGPS, descrito no Anexo IV.5 da LDO 2022, foi da ordem de R$ 10 trilhões. Em particular, no caso dos estados/DF e municípios, o rombo de seus regimes previdenciários foi igual a 1,72x as despesas totais por eles empenhadas em 2021. Esta é uma métrica para esforço social a fim de custear a previdência dos servidores públicos para além das contribuições normais estabelecidas legalmente.  

Isto posto, por força de lei, é imperativa a instituição de um plano para restabelecer o equilíbrio do RPPS. Entre as possibilidades normativas, está a obrigação do ente efetuar aportes anuais ao longo de 35 anos com vistas a zerar o rombo previdenciário. O crescimento desordenado de tais aportes, por sua vez, além de deslocar as outras funções de despesa do orçamento, coloca em risco a continuidade dos serviços públicos essenciais. Tão maior for a diferença entre o crescimento daqueles aportes em relação ao orçamento do ente, tão maior será o sacrifício social, e mais urgente, portanto, a revisão dos planos de custeio e de benefícios do seu regime previdenciário.

Fica evidente assim que o problema não se encerra com uma bem-sucedida alteração na legislação previdenciária. A previdência dos servidores públicos deve ser pauta permanente entre os gestores que primam pelo orçamento público equilibrado. A responsabilidade previdenciária, nos anos vindouros, atuará como o pilar de sustentação da responsabilidade fiscal, ao permitir o atendimento das demandas sociais emergentes concomitante à manutenção dos serviços públicos essenciais. À sociedade cabe a vigilância diuturna de tema tão caro ao pacto social, afinal, o dinheiro que paga a previdência, a educação, a saúde e a segurança é o mesmo e a conta, sabemos, é sempre paga pelo contribuinte.

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