Última palavra, no âmbito nacional, há de ser sempre a do Supremo
27 de setembro de 2023, 6h06
Nota-se, há algum tempo, uma clara tentativa de opor, ou indispor, o Tribunal Superior do Trabalho frente ao Supremo Tribunal Federal, como se movesse a algum ministro da corte trabalhista a intenção de desafiar as decisões da corte suprema, ou de não as cumprir por qualquer idiossincrática razão.
O compromisso com a tutela de direitos de minorias ou de pessoas ou grupos vulneráveis não autoriza, nem tem autorizado, o magistrado a descumprir decisões ou teses fixadas pelo STF que lhe pareçam, intimamente, destoar dessa régua de eticidade. É impróprio, igualmente, opor algum espasmo de ideologia libertária contra decisões do Supremo que, a exemplo da exarada no recente julgamento da ADI 5.322 (sobre a Lei nº 13.103/2015, a "Lei dos Caminhoneiros"), advertiu para a "inconstitucionalidade na exclusão do tempo de trabalho efetivo do motorista profissional, quando está à disposição do empregador durante o carregamento/descarregamento de mercadorias, ou ainda durante fiscalização em barreiras fiscais ou alfandegárias, conhecido como 'tempo de espera'".

Geraldo Magela/Agência Senado
Ao submeter ao crivo de constitucionalidade o tema relacionado à prevalência da negociação coletiva sobre a proteção da lei, o relator, ministro Gilmar Mendes, determinou a suspensão dos processos que tratavam da questão discutida naqueles autos da ARE 1.121.633/GO (não pagamento de horas de deslocamento entre casa e trabalho), mas relatou ter sobrevindo a cautela do TST que "decidiu, por maioria, suspender a tramitação de todos os processos que trata(va)m da validade de norma coletiva que limita ou restrinja direito trabalhista não assegurado pela Constituição da República".
Conforme se lê no acórdão lavrado por mencionado relator, essa providência do TST permitiu ao STF entender que aquele tema de repercussão geral tinha abrangência maior, vale dizer: sobreviria tese do STF que o TST e toda a Justiça do Trabalho adotariam, independentemente da matéria específica (horas in itinere) discutida naquele processo. E está agora o judiciário trabalhista a aplicar, de fato, a tese ali fixada: "São constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuem limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis".
Quando o STF decidiu que a terceirização da atividade principal da empresa é lícita (ADPF 324 e RE 958.252), a jurisprudência trabalhista imediatamente se ajustou a esse entendimento. Não há uma só decisão superveniente do órgão de uniformização da jurisprudência do TST (a SBDI I) que tenha, desde então, declarado ser ilícita a terceirização pelo singelo fato de ter-se dado em atividade-fim.
Ouve-se, em alguns recantos dedicados à intriga palaciana, que o TST resiste à tese fixada pelo STF quando não reconhece a licitude da terceirização em hipóteses nas quais o trabalhador supostamente terceirizado está diretamente subordinado à empresa contratante (ou tomadora dos serviços). É verdade. Mas assim sucede com o respaldo do STF, conforme se extrai de decisão do ministro Gilmar Mendes no ARE 1.397.478/DF, em que o douto relator remete a decisões nesse igual sentido da 1ª Turma do STF, no ARE 1.349.118 AgR (relatora: ministra Rosa Weber, DJe 10/12/2021) e da 2ª Turma do STF, no ARE 1.280.609 AgR (rel. min. Edson Fachin, DJe 25/3/2021).
Além disso, estão o STF e o TST, nesse caso, agindo em obediência ao artigo 4º-A, §1º, da Lei nº 6.019/1974, com a redação que lhe dera a Lei nº 13.429/2017, pois esse dispositivo impõe seja da empresa contratada (a empresa prestadora dos serviços) a incumbência de dirigir o trabalho terceirizado. Decidem também em atenção ao direito comparado, ou seja, à experiência jurídica dos países que há muito mais tempo autorizam a terceirização da atividade-fim. É o que nos revelam o professor argentino Lucas Tamagno, a professora colombiana Luisa Fernanda Rodríguez Rodríguez, o professor espanhol David Montoya Medina e o professor mexicano Luis Raúl Meza Mora, além da professora Eliana dos Santos Alves acerca da terceirização na Itália, todos na coletânea Estudos Jurídicos 2018 – Limites da Terceirização no Direito Comparado, da Escola Judicial do TRT da 15ª Região [1].
No tema da terceirização de serviços da administração pública, debate-se ainda se cabe ao trabalhador terceirizado a prova sobre ter ou não havido a fiscalização da empresa contratada quanto ao cumprimento de suas obrigações trabalhistas, pois o ente público somente é responsabilizado se não a fiscaliza adequadamente.
O tema (ônus da prova) foi suscitado no RE 760.931 ED-Terceiros/DF, no qual o relator, ministro Luiz Fux, votava no sentido de vedar a presunção de culpa in vigilando da administração pública, o que sinalizava a atribuição ao trabalhador terceirizado do ônus de provar que não teria havido a devida fiscalização. A maioria do STF, reunido então em sua composição plenária, entendeu, porém e inicialmente, que o STF não deveria avançar nesse tema. Só então a Subseção I de Dissídios Individuais do TST o enfrentou, fixando que o ônus da prova recairia sobre a administração pública (E-RR 925-07.2016.5.05.0281, SBDI I, rel. min. Cláudio Brandão, DEJT 22/5/2020).
Ao atribuir ao ente público o encargo de provar que fiscalizara o cumprimento dos deveres trabalhistas pela empresa contratada, o TST esteve a endossar, aliás, o que a ministra Cármen Lúcia ponderou durante o julgamento dos citados embargos de declaração: "[…] por uma questão de proteção ao trabalhador — que teria que, muitas vezes, produzir uma prova diabólica e não conseguia provar, é que se inverteu na jurisprudência […]". Em janeiro de 2021, o STF voltou ao tema para reconhecer a sua repercussão geral (no RE 1.298.647, Tema 1.118, rel. min. Luiz Fux) e, quando o julgar, estará decerto o TST a cumprir a tese que o STF estabelecer sobre o ônus da prova, caso o STF conclua que tal matéria é mesmo constitucional.
Em outras conspiratas, lê-se que o TST resiste a compreender que ao declarar a constitucionalidade da Lei nº 11.442/2007, o STF, na ADC 48, teria, em verdade, afirmado que a contratação do trabalhador que transporta cargas, se formalmente se der como contrato de trabalho autônomo, estará incondicionalmente a afastar o vínculo de emprego, não importando se em realidade, ou na ordem dos fatos, trata-se de trabalho subordinado, pessoal, oneroso e não-eventual, ou seja, de contrato regido pela CLT.
Embora haja a notícia de decisões monocráticas, oriundas do próprio STF, que aparentariam sublimar a forma em detrimento da realidade, como analisou a professora Ana Frazão no artigo "Até quando o STF vai virar as costas para a realidade?" (portal Jota, em 31 de maio de 2023[2]), é certo que ao relatar a ADC 48, o ministro Luís Roberto Barroso, inspirado em tese fixada pelo STF acerca da licitude da terceirização, esclareceu que a Lei nº 11.442/2007 deveria ser aplicada se presentes os requisitos nela dispostos, ou seja, "se estiverem presentes os elementos do vínculo trabalhista, não incide a Lei".
Ao acompanhá-lo, o ministro Alexandre de Moraes foi enfático: "[…] caso a prática de ilícita intermediação de mão de obra, com afronta aos direitos sociais e previdenciários dos trabalhadores, se esconda formalmente em uma fraudulenta terceirização, por meio de contrato de prestação serviços, nada impedirá a efetiva fiscalização e responsabilização, pois o Direito não vive de rótulos, mas sim da análise da real natureza jurídica dos contratos".
Em rigor, ambos os ministros decidiram em consonância com os artigos 9º da CLT e 167 do Código Civil, este a nos lembrar que "é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma". Não há dúvida quanto a esses dispositivos estarem sintonizados com os valores da eticidade e da socialidade que conferem identidade ao nosso texto constitucional — ao menos não se conhece decisão de que seriam eles inconstitucionais.
Há inúmeras decisões do STF que observam, como era de se esperar, a soberania dos tribunais regionais para dizerem sobre o fato de estarem ou não presentes os elementos essenciais ao vínculo de emprego (e.g. Rcl 56.098 AgR/RJ, rel. min. Luiz Fux, DJe 4/8/2023, com remissão à Rcl 56.166- AgR, 2ª Turma, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJe de 7/12/2022, e à Rcl 48.317-AgR, 1ª Turma, rel. min. Roberto Barroso, DJe 1/12/2021). Mas essa temática se apresenta, por vezes, com abordagens diversas no âmbito do próprio STF.
Há, a bem dizer, decisões monocráticas oriundas do STF que atribuem à Justiça Comum competência para prover jurisdição nos casos em que trabalhadores pedem o reconhecimento de vínculo de emprego, sem embargo de o artigo 43 do CPC prever (sem que dele jamais se tenha arguido a inconstitucionalidade) que se determina a competência no momento da propositura da ação, com base estritamente na natureza do pedido e causa de pedir. Também se tem conhecimento de outras decisões monocráticas que afirmam a ausência de trabalho sob subordinação, em casos nos quais os tribunais de segunda instância, instância derradeira da prova, teriam afirmado o contrário.
Ainda assim, a cassação de acórdãos dos tribunais regionais e do TST, nesses casos, malgrado possam revelar alguma oscilação interna entre órgãos fracionários do STF, não traduzem qualquer resistência da Justiça do Trabalho à jurisprudência e sobretudo aos precedentes de observância obrigatória, emanados do STF. Explica-se, porque os temas sensíveis carecem ser bem explicados.
Se é fato que cabe aos tribunais de segunda instância a última palavra em relação aos fatos da causa, também o é que aos tribunais superiores (STJ, TST, TSE e STM) compete a uniformização da jurisprudência e a tarefa de exercerem em última instância o controle de legalidade, atribuindo-se ao Supremo Tribunal Federal, nessa perspectiva, atribuir ao texto constitucional e aos tratados internacionais ratificados pelo Brasil sua última e mais qualificada interpretação.
Nessa pirâmide, o TST, distinguindo-se nesse aspecto dos demais tribunais superiores, compartilha o controle de constitucionalidade com o STF apenas quanto à declaração incidental, aquela que gera efeitos restritos ao caso sob julgamento. Falta rematar: nas demandas em que o Estado brasileiro é acusado de violar ou permitir que se violem tratados internacionais de direitos humanos (due diligence), especialmente a Convenção Americana de Direitos Humanos, cabe à Corte Interamericana de Direitos Humanos dar a última palavra.
Essa distribuição de competências assume essa forma piramidal também quanto à amplitude do julgamento: ao STF não cabe realizar o controle de legalidade; ao STF e aos tribunais superiores não compete decidir sobre os fatos da causa. Tais restrições impedem, inclusive, que o STF fixe tese sobre temas não constitucionais (direta ou indiretamente) e que os tribunais superiores profiram decisões sobre aspectos puramente factuais.
E por que o TST, a quem cabe decidir por último no plano da infraconstitucional da legalidade, cumpriria decisões do STF que eventualmente não observassem regras legais de competência? A resposta é de base lógica ou formal: o TST, embora exerça em última instância o controle de legalidade (em temas relacionados ao trabalho humano), não controla a legalidade das decisões do STF — antes, presume-as legais e as cumpre, simplesmente.
Diferentes dos protozoários, todos os humanos, incluídos os juízes, têm convicções ideológicas e os valores éticos em que acreditam os inspiram na hora de interpretarem as linhas e entrelinhas da lei. Mas os juízes e juízas, não sendo contemplativos ou neutros, devem ser imparciais e, por igual, devem respeitar a hierarquia dos órgãos de jurisdição.
O Tribunal Superior do Trabalho exercita, sempre e a cada dia, o dever de observar as teses jurídicas emitidas pelo Supremo Tribunal Federal, cumprindo incondicionalmente as determinações que do STF provêm. Esse diálogo institucional revela quão belo e insuperável é o Estado Democrático de Direito.
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