Controversa jornada do mínimo existencial e a Lei do Superendividamento
22 de setembro de 2023, 16h04
Criada com o objetivo de prevenir e tratar o superendividamento, a Lei nº 14.181/2021, popularmente denominada como Lei do Superendividamento, celebrou dois anos em julho deste ano. Apesar desse marco, sua aplicação na prática ainda encontra desafios, principalmente quanto à interpretação do conceito de "mínimo existencial" associado ao cenário do superendividamento.

Em breve retrospectiva, é válido lembrar que no dia 26 de julho de 2022, foi promulgado o Decreto nº 11.150, estabelecendo diretrizes para o conceito de "mínimo existencial". Naquela ocasião, ficou definido que o valor seria fixado em 25% do salário-mínimo então vigente, totalizando a quantia de R$ 303. Além disso, o decreto também estabeleceu a exclusão de determinadas obrigações do cálculo desse montante mínimo, incluindo compromissos como financiamentos imobiliários e empréstimos com garantias reais.
É importante ressaltar que, anteriormente à promulgação do decreto que estabeleceu critérios específicos para o cálculo e aplicação do mínimo existencial, os tribunais frequentemente utilizavam um parâmetro de 30% da renda líquida do consumidor para definir esse valor. Essas decisões baseavam-se em uma analogia com o limite de 35% previsto na Lei nº 10.820/2003, que se aplica ao crédito consignado com descontos diretamente na folha de pagamento.
No entanto, essa divergência se acentuou quando o Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Tema Repetitivo 1.085, determinou que a limitação de 35% da Lei 10.820/2003 não se aplicava à preservação do mínimo existencial, resultando em incertezas na interpretação e aplicação da legislação.
Ademais, o Decreto 11.150/2022 teve a sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal (ADPFs 1.005 e 1.006), sob o fundamento de que o valor estabelecido poderia contradizer a obrigação legal do Estado de salvaguardar o consumidor e de mitigar as disparidades sociais. Adicionalmente, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) também se manifestou, opinando que o montante de R$ 303 se situava abaixo da linha de pobreza, e que o conceito de "mínimo existencial" não deveria se limitar a gastos essenciais, mas sim ser avaliado considerando as peculiaridades de cada caso.
Em resposta às discussões em andamento, foi publicado no dia 20 de junho de 2023 o Decreto 11.567/2023, que alterou o Decreto nº 11.150, no qual foram promovidas alterações na regulamentação do mínimo existencial, sendo estabelecido um aumento no valor para R$ 600, além de revogar o parágrafo 2º que anteriormente vedava a atualização do valor com base no salário-mínimo. O novo decreto também atribuiu à Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública a responsabilidade de coordenar regularmente mutirões destinados à renegociação de dívidas, iniciativa que tem como finalidade tanto a prevenção quanto o tratamento do superendividamento decorrente de dívidas relacionadas ao consumo.
Após dois anos de promulgação da lei, o desafio ainda é o mesmo, vários são os debates, ajustes regulatórios e interpretações divergentes, evidenciando a complexidade em encontrar um equilíbrio entre os interesses dos consumidores superendividados, a proteção dos direitos básicos e a viabilidade financeira das instituições credoras.
Observa-se, portanto, que a adequada aplicação do mínimo existencial é essencial para que a "Lei do Superendividamento" alcance o objetivo de prevenir e auxiliar os consumidores superendividados, contudo, o grande desafio é que cada consumidor possui uma renda individual para negociações de dívidas, tornando complexa a definição de um valor mínimo existencial ideal para todos. Nesse sentido, a tendência é que a definição de "mínimo existencial" seja analisada caso a caso pela Justiça, resultando na construção de jurisprudência ao longo do tempo.
A ausência de uma definição consolidada em relação aos critérios para avaliar o mínimo existencial, gera incertezas tanto na contratação de crédito quanto na repactuação de dívidas. Ao mesmo tempo, fornecedores de crédito também não têm clareza sobre as obrigações relacionadas à preservação do mínimo existencial. Essa situação gera insegurança para ambas as partes envolvidas e compromete a eficácia na tutela jurisdicional do consumidor superendividado.
A realidade é que as divergências e contínuas discussões sobre o mínimo existencial dificultam a aplicação da norma e prejudicam tanto os consumidores quanto os fornecedores. Isso ressalta a complexidade do tema e a necessidade de um enfoque mais claro e consistente para lidar com o superendividamento.
Portanto, é imperativo que legisladores, autoridades reguladoras e demais envolvidos busquem soluções que assegurem uma proteção efetiva dos consumidores, mas também reconheçam claramente as responsabilidades que recaem sobre os fornecedores, pois, somente com uma abordagem equilibrada e bem definida será possível enfrentar de maneira eficaz o desafio do superendividamento, promovendo relações justas e sustentáveis entre as partes envolvidas.
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