Opinião

Pode o vulnerável falar?

Autor

  • é defensor público. Mestrando em Filosofia pela PUC-RS; especialista em Filosofia e Teoria do Direito (PUC-MG); especialista em Gestão Pública (UFMA); especialista em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade Damásio) e instrutor interno ESDPEMA (2019/2022).

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12 de setembro de 2023, 6h30

Alguns textos já se somam nessa contribuição para o pensar defensorial. Nos contatos com leitores e leitoras  entre membros e membras de vários estados, outros e outras com expectativas na entrada da carreira , é possível observar um sentimento comum de catarse. Tal como uma angústia compartilhada pela caminhada defensorial. O interessante dessas devolutivas é o acolhimento do exercício reflexivo sobre a instituição numa perspectiva desconstrutiva e crítica quanto aos próprios limites e paradoxos. No mínimo, sendo otimista, tais repercussões acabam sendo um sinal esperançoso  ainda que tímido  ao contínuo alerta da tendência ao encastelamento institucional.

Nessas apreciações informais, surgiram questionamentos sobre as categorias e problematizações que fugiriam da perspectiva positivista e dogmática. Sobre isso, utilizo as palavras de Warat para quem: "Eu me formei em gramática normativista, é uma língua que conheço, porém, que hoje resisto falar" [1]. Se conseguisse sintetizar a perspectiva da reflexão deste colunista, pegando emprestado da literatura, seria uma doutrina institucional antropofágica (uma antropofagia não entre o nacional e o estrangeiro, mas entre o distanciamento do (dito) jurídico e do metajurídico); isto é, marcada pela necessidade de analisar criticamente a própria produção e construção da cultura institucional da Defensoria Pública com destaque para a assunção dos limites e contradições do próprio Direito sob a contínua desconstrução de saberes interdisciplinares.

Notadamente, desde o início, esse colunista assume a perspectiva zetética na abordagem, tendo não objetivo de trazer respostas prontas e herméticas, mas oxigenar a práxis defensorial com a fixação de pontos de tensões e crises às aparentes obviedades sedimentadas na cultura jurídica da Defensoria. Permanecendo nesse ritmo que o texto de hoje  que não encerrará o tema e exigirá uma série sucessiva , discorrerá sobre o espaço de fala do vulnerável e a invisibilidade (transparência) do membro e membra nessa dinâmica de saber-poder.

Certamente, para quem leu o título, deve ter pensado que, no mínimo, é um questionamento marcado por uma interessante perspectiva. Contudo, é preciso dizer que, apesar da vontade de alcançar esse tipo de originalidade na escrita, não é ideia própria do colunista desse texto. Na verdade, trata-se, na busca pela intertextualidade, de uma paráfrase da conhecida obra da pensadora indiana Gayatri Spivak, "Pode o subalterno falar?" [2]. Autora muito debatida no âmbito dos estudos decoloniais e de estudo de gênero, é marcada por uma complexidade na escrita e originalidade acadêmica própria. Mas  já deve se questionar o leitor e ledora, sofredores da impaciência e ansiedade contemporâneas  como isso ressoaria na dinâmica da Defensoria Pública e dos vulneráveis?

Deixando para o rodapé uma contextualização da obra [3] para não desanimar os juristas, após a leitura da obra e de outras correlatas, permaneceu, nesse colunista, o eco de um possível contraponto interessante sobre as críticas e problematizações que intrigam a relação intelectuais-representatividade-subalternos, sendo possível transvestir num debate necessário sobre defensores-representatividade-vulneráveis. Obviamente, somente é possível essa apropriação com o alerta claro das distinções das categorias, da profundidade e do recorte específico. Um sacrifício conceitual feito  com a consciência de que talvez até possa soar, para os mais preciosistas, como um desvirtuamento do debate original nas dinâmicas dos estudos subalternos  mas com o intento de, mais uma vez, gizar que a relação membro e membra da Defensoria e os vulneráveis não deve ser naturalizada e nem simplificada numa generalização fordista e essencialista. Esse esforço interdisciplinar valerá a pena e exigirá a paciência de quem se permita a leitura até o fim.

Sem querer cair num grau de complexidade e escrita acadêmica que fuja do espaço dessa coluna, é preciso uma breve contextualização a fim de evitar uma reflexão desconectada — ainda mais para facilitar quem ainda não teve oportunidade de ler as obras citadas. Antes de falar de Spivak, é imprescindível falar um pouco de Deleuze e Foucalt, em Os intelectuais e o Poder [4]. Nesse diálogo, os autores problematizam, de forma interessante, sobre a indignidade de falar pelos outros e indicam, também, que uma ação revolucionária genuína somente pode ser exigida por aqueles a que ela diz respeito; senão, é mera reforma — isto é, hipócrita como mera reorganização de poder. Entre outros pontos, Deleuze e Foucalt destrincham, em síntese, essa dinâmica na problemática de uma intelectualidade tendente a uma postura universalizante, imbricando-se numa dinâmica própria entre teoria e prática, saber e poder.

Diante dessas constatações relevantes, consciente da própria envergadura acadêmica para criticar o pensamento de Deleuze e Foucalt, Spivak destaca a insuficiência de tais questionamentos sobre a intelectualidade. Para a pensador indiana, numa condescendência epistêmica, "ambos os autores ignoram sistematicamente a questão da ideologia e seu próprio envolvimento na história intelectual e econômica" e, assim, na análise dos pensadores franceses, a classe intelectual continuaria marcada por uma transparência em que, numa cumplicidade epistêmica, não visualizaria a colonialidade que coloca o Outro da Europa como sujeito inominado [5].

Talvez para tentar clarear um pouco, seja interessante se utilizar da seguinte citação: "Spivak desvela o lugar incômodo e a cumplicidade do intelectual que julga poder falar pelo outro e, por meio dele, construir um discurso de resistência. Agir dessa forma, a autora argumenta, é reproduzir as estruturas de poder e opressão, mantendo o subalterno silenciado, sem lhe oferecer uma posição, um espaço de onde possa falar e, principalmente, no qual possa ser ouvido. Spivak alerta, portanto, para o perigo de se constituir o subalterno apenas como objeto de conhecimento por parte de intelectuais que almejam serem meros porta-vozes do Outro" [6].

Então, para quem insiste até esse ponto do texto, trazendo para o universo defensorial, é possível problematizar  com as devidas adaptações e distinções epistêmicas já alertadas  justamente, esse cenário de crítica enquanto o Outro como objeto de conhecimento de um investigador transparente. Ou seja, em palavras mais didáticas, alguém em posição de detenção de um conhecimento acadêmico que não se incluiria nessa dinâmica do saber e colocaria o outro como mero objeto de conhecimento. Assim, no vínculo constitucional entre defensor/defensora e o vulnerável, com o eco das categorias acima sinalizadas, é possível problematizar os seguintes pontos: a) a transparência do membro e da membra nas próprias atuações, impossibilitando a própria constatação do substrato ideológico  e inafastável afetação  nos quesitos de raça, de gênero e de classe social; b) o vulnerável como mero objeto de conhecimento, na dinâmica da representação constitucional, mas sem protagonismo e voz quanto aos próprios interesses.

Sobre o ponto primeiro, quanto à transparência do Defensor ou Defensora em suas atuações, giza-se a ausência de debates e reflexões sobre a potencialidade — nessa dinâmica de poder e contrapoder — manifestar, paradoxalmente, violação de direitos. Para além do que já fora indicado no texto O mito do defensor vocacionado [7], é muito comum ainda sustentar o holograma de que a Defensoria Pública, por alguma mágica normativa, estaria dissociada dos vícios comuns às instituições contextualizadas numa sociedade marcadamente machista, racista, homofóbica. Portanto, a exclusão do agente político da Defensoria Pública dessa indagação sobre a dinâmica do poder-saber, acaba por manifestar aquilo que Warat indica como função ideológica de encobrimento [8].

Destarte, essa conjuntura invisibilizada, na verdade, acaba por inviabilizar a autocrítica quanto ao pertencimento e manutenção da hierarquia social, reproduções de esteriótipos e preconceitos. A transparência que impede que a membra e o membro também se note (de maneira crítica)  paralelamente a um instrumento de garantidor de direitos  também, e de maneira paradoxal, um agente que manifesta violência ao Outro (violência aqui tanto no sentido epistêmico, quanto no sentido levinasiano).

No segundo ponto, é possível fazer um paralelo entre o vulnerável e o subalterno [9], problematizando-se a posição de passividade e silenciamento como mero objeto de conhecimento e alijados do papel de sujeitos da história. Se no contexto da Spivak, a subalternidade foi elencada como uma resistência à narrativa eurocentralizada e a manutenção da lógica colonial, a vulnerabilidade deve ser compreendida com o potencial disruptivo para o estabelecimento da práxis defensorial. Não é incomum que debates e análises da vulnerabilidade — seja socioeconômica, seja cultural — assumam uma conotação negativa e quase assistencialista.

Nesses momentos, ocorre grave confusão entre vulnerabilidade informacional e educacional e a leitura de uma incapacidade de protagonismo social e inocência política pelos grupos vulneráveis, incorrendo em uma espécie de salvacionismo defensorial. Tal narrativa, invariavelmente, acaba por afetar apreciação dos interesses, dos pleitos e das reais necessidades das minorias e grupos vulneráveis. Inverte-se a ordem na dinâmica comunicacional e da representação constitucional: da voz ativa e do protagonismo da narrativa, o vulnerável se vê na posição de tolhimento, de silenciamento e, até, culpabilização pelo drama social vivenciado.

Nesse ponto, é interessante recordar alerta presente no seguinte trecho da Pedagogia da autonomia: "É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidade por sua situação. (…) Pessoas assim fazem parte das legiões de ofendidos que não percebem a razão de ser de sua dor na perversidade do sistema social, econômico e político em que vivem, mas na sua incompetência. Enquanto sentirem assim, pensarem assim e agirem assim, reforçam o poder do sistema. Se tornam coniventes da ordem desumanizante" [10].

Ainda nesse segundo ponto, com a aproximação dos questionamento da Spivak sobre a subalternidade, é possível apreender, também, sobre a problematização do saber universalizante e do sujeito generalizado com desdobramento em uma aparente pluralização. Ao ler os trechos que tratavam dessa problemática, foi possível notar uma possível repercussão sobre o risco de uma forma homogeneizada ser adotada quando grupos vulneráveis são abordados, acolhidos e amparados nas atuações judiciais e extrajudiciais. Obviamente, fala-se em ponto crítico de uma estrutura defensorial que não consegue abarcar todo o público  seja por limitação territorial, limitação de pessoal ou limitação orçamentária , mas que, apesar dessa conjuntura, não é possível deixar de continuamente impulsionar a questão. O horizonte desafiador é delineado entre a confluência de uma atuação em massa e a pluralidade dos grupos vulneráveis e minorias. De toda forma, na busca pelo equacionamento da questão, não se deve cogitar como aceitável a diluição das idiossincrasias individuais e sociais que marcam a agenda e os desafios dos vulneráveis sob pena de uma aparente eficiência estatística — que exalta a instituição e anula a pluralidade do público-alvo constitucional.

Nessa reflexão, assumidamente uma paráfrase de trechos da obra da Spivak, foi possível compreender, pouco a pouco, que a problematização da figura do intelectual e do subalterno trouxe problematizações interessantes aplicáveis à práxis defensorial. Questionar, nessa conjuntura, "Pode o vulnerável falar?" implica, nas entrelinhas, que nem sempre a prestação da assistência jurídica implica a abertura de espaço para o protagonismo do vulnerável. Ao fim, a verdade que deve ser assentada é que, sem qualquer passividade e homogeneidade que violente e anule, ao vulnerável, em sua pluralidade, cabe o papel disruptivo de questionar "Pode a Defensoria ouvir?".

 

 

[1] Luis Alberto Warat. A Rua Grita Dionísio: direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia, Lumen Juris, 2010, p. 59.

[2] SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno falar? Trad. de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

[3] Na obra, Spivak traz uma instigadora crítica acadêmica ao texto Os intelectuais e o Poder de Deleuze e Foucalt. Em sua provocação, Spivak pontua vários aspectos sobre na perspectiva de uma ruptura epistêmica ao pensamento eurocentrado. Dentre outros aspectos, a autora giza a transparência do investigador; a insuficiência da localidade e da crítica da universalidade feita por Deleuze e Foucalt; o aprofundamento da representação em Marx, com a revelante distinção entre "darstellen" e "vertreten", que teria sido omitido pelos autores franceses; e, sobretudo, a profunda obscuridade do sujeito subalterno feminino. Para quem tenha se interessado sobre esse debate, indico os seguintes textos propedêuticos: ALMEIDA, Leonardo Monteiro Crespo de. A Teoria do Direito e o Pós-Colonial: o subalterno como sujeito de direito espectral. Revista Direito E Práxis, 12(2), 972–1001; CHAVES, Ernani Pinheiro. Foucalt, Deleuze e o papel dos ‘intelectuais’. Revista Apoena. Periódico dos Discentes de Filosofia da UFPA. Belém, 2019, v. 1, nº 2, p. 08 e 09; SILVA, Francisco Rômulo do Nascimento; OLIVEIRA, Patrícia Maria Apolônio de. Quando a mulher negra subalterna fala: diálogos entre Gayatri Chakravorty Spivak e Carolina Maria de Jesus. IS Working Paper, Porto – Portugal, 3.ª Série, nº 74, Quinta, Novembro 1, 2018.

[4] FOUCALT, Michel; DELEUZE, Gilles. Os intelectuais e o poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder, Edições Graal, 1979.

[5] Spivak…, p. 22, 44-47;

[6] SILVA, Francisco Rômulo do Nascimento; OLIVEIRA, Patrícia Maria Apolônio de. Quando a mulher negra subalterna fala: diálogos entre Gayatri Chakravorty Spivak e Carolina Maria de Jesus. Working Paper, Porto – Portugal, 3.ª Série, nº 74, Quinta, Novembro 1, 2018, p. 08.

[7] https://www.conjur.com.br/2023-jun-20/tribuna-defensoria-mito-defensor-vocacionado

[8] "O pior do direito são suas funções ideológicas de encobrimento" (Luis Alberto Warat. A Rua Grita Dionísio, Lumen Juris, 2010, p. 24).

[9] Categoria que merece um estudo aprofundado, tendo origem na questão do campesinato em  Gramsci com resgaste pelos grupos de estudos subalternos. Sobre esse ponto, a quem queira se aprofundar, indico a interessante a dissertação da Camila Massaro de Góes, "Existe um pensamento subalterno? Um estudo sobre os Subaltern Studies: 1982-2000", disponível no acervo da USP.

Autores

  • é defensor público, especialista em filosofia e Teoria do Direito (PucMinas), especialista em Gestão Pública (UFMA) e em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade Damásio), instrutor interno ESDPema (2019-2022), fotógrafo amador e poeta.

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