Previsto dentre as garantias creditícias em favor da Fazenda Pública, o processo de execução fiscal, regido por lei específica — Lei nº 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal), prevê uma série de garantias e privilégios processuais ao ente público, visando à satisfação do crédito regularmente inscrito em dívida ativa. Dentre tais privilégios, destaca-se a previsão de que só será cabível embargos à execução após a garantia do juízo (artigo 16, § 1º, da LEF), o que não guarda similaridade nas execuções comuns.
No ponto, a despeito de já haver jurisprudência relativizando tal imposição (a exemplo do decidido no REsp 1.487.772-SE, caso "comprovado inequivocadamente que o devedor não possui patrimônio para garantia do crédito exequendo" [1]), para os fins que se prestam o presente artigo, trabalharemos com a regra geral de que a garantia do juízo é pressuposto de admissibilidade dos embargos à execução fiscal.
Aliás, em relação aos embargos, a doutrina há muito se pacificou no sentido de que, embora apresente incontestável ligação instrumental com a execução fiscal de que decorre, a sua natureza jurídica é de ação de conhecimento, proposta com o fim de se opor à demanda executiva em curso, sendo a defesa por excelência em tal procedimento (embora caiba, a teor da Súmula 393 do STJ, a exceção de pré-executividade, a qual não será abordada no presente estudo).
Pois bem, vencidas tais premissas iniciais, analisemos a questão acerca do prazo legalmente previsto — 30 dias — para o oferecimento dos embargos à execução fiscal, especialmente quanto aos termos iniciais da contagem. Para tanto, valho-me da redação do artigo 16 da LEF:
"Art. 16 – O executado oferecerá embargos, no prazo de 30 (trinta) dias, contados:
I – do depósito;
II – da juntada da prova da fiança bancária ou do seguro garantia; (Redação dada pela Lei nº 13.043, de 2014)
III – da intimação da penhora" [2].
De maior relevo para a finalidade do artigo, cingiremos a análise quanto aos marcos iniciais previstos nos incisos II e III, porque, segundo a redação legal, apresentam diferentes tratamentos, embora se constatem divergências interpretativas na sua aplicação no cotidiano prático no âmbito do Poder Judiciário.
Inicialmente, nota-se que, na sua redação originária de 1980, o artigo 16, II, da LEF previa apenas a modalidade "fiança bancária", sendo que o cabimento do "seguro garantia" fora incluído apenas com a Lei nº 13.043 de 2014 (BRASIL, 2014). Inclusive, previamente à inclusão da nova modalidade, havia jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que não reconhecia seu cabimento (a exemplo do decidido no REsp 1.508.171-SP, no sentido de que "A jurisprudência do STJ, em atenção ao princípio da especialidade, era no sentido do não cabimento, uma vez que o art. 9° da LEF não contemplava o seguro-garantia como meio adequado a assegurar a Execução Fiscal" [3]).
Ademais, no panorama atual, a discussão acerca das modalidades não apresenta grande relevância, porque superada pela precitada lei que incluiu tal previsão. Entretanto, entrando no cerne do presente trabalho, constata-se uma problemática acerca do início da contagem do prazo para a apresentação dos embargos à execução fiscal em se tratando da garantia do juízo prevista no artigo 16, II, da LEF, seja fiança bancária, seja seguro garantia.
Tal problemática surge a partir da redação expressa do inciso (II) em comento, especialmente da sua leitura conjugada com o seu inciso posterior (III). No caso do segundo inciso, o prazo teria seu início na "juntada da prova" da fiança bancária ou do seguro garantia, enquanto que, no terceiro inciso, o termo inicial previsto seria a "intimação" da penhora.
Ora, primae face, não parece que a norma quis igualar o termo inicial de tais modalidades da garantia de juízo, caso contrário o teria feito. Assim, em interpretação literal, é possível afirmar que, no segundo inciso, o dia do começo da contagem do prazo é o da juntada da respectiva garantia aos autos da execução, independente de qualquer outro ato processual posterior. Ao caso do terceiro inciso, por seu turno, deveria ser obedecido, previamente, o rito procedimental da penhora e, apenas com sua concretização e posterior intimação do executado, teríamos o dia do começo do prazo para os embargos.
Entretanto, dada a importância da temática para a prática forense, porquanto é questão atinente à tempestividade dos embargos, verifica-se que algumas varas especializadas de execução fiscal, em seu cotidiano, passaram a unificar o tratamento de ambos incisos, prevendo a redução a termo de penhora daquelas garantias previstas no inciso segundo, o que, invariavelmente, instaurou a celeuma acerca de qual seria o termo inicial da contagem dos embargos à execução fiscal.
A questão foi analisada pelo Superior Tribunal de Justiça, que apresentou oscilações de entendimento, conforme bem apontado por Humberto Theodoro Júnior:
"A orientação que predominou no STJ, durante algum tempo, era no sentido de que, no caso de depósito e de fiança, que são atos de iniciativa do executado, 'a lei não se refere à intimação', de sorte que o prazo corre do próprio depósito ou da data da juntada da carta de fiança; 'efetuado o depósito judicial do numerário em nome do exequente, a partir dali conta-se o prazo para embargar, independentemente de lavratura de termo de nomeação, desnecessário para o caso'. 'O prazo para oposição dos embargos do devedor se conta a partir do depósito, e não da juntada do respectivo comprovante dos autos (Lei n. 6.830/80, art. 16, I)'. Depois de grande controvérsia interna, a interpretação do art. 16, I, da Lei n. 6.830/80, acabou sendo dada pela Corte Especial do STJ, nos seguintes termos: “Feito depósito em garantia pelo devedor, deve ser ele formalizado, reduzindo-se a termo. O prazo para oposição de embargos inicia-se, pois, a partir da intimação do depósito”. Já anteriormente, a mesma tese fora consagrada pela 1ª Seção do STJ. Portanto, mesmo não havendo, in casu, termo de penhora, porque a garantia por depósito do valor da execução não representa uma penhora na sistemática da LEF, ainda assim, a garantia tem de ser documentada no processo; e é do termo que a documenta que o executado deve ser intimado, fluindo dessa intimação o prazo para oposição de embargos. Essa orientação é definida pela Corte Especial do STJ. Entendendo que da intimação da penhora deve constar, expressamente, a advertência do prazo para o oferecimento dos embargos. Essa interpretação está longe de se manter pacífica no próprio STJ, pois a 2ª Seção tem entendimento firmado após o decidido pela Corte Especial (EREsp 1.062.537/RJ), no sentido de que, in casu, o prazo para embargos deverá ser iniciado na data em que efetuado o depósito judicial. Procedente, portanto, a advertência de que a exigência de termo, feita pela Corte Especial do STJ, se justifica quando haja penhora, não quando a execução fiscal seja garantida por depósito judicial de iniciativa do próprio executado, caso em que não teria sentido adotar uma solenidade processual para intimar a parte de ato que ela mesma praticou" [4].
Dada sua recorrência e ausência de uniformidade, o tema segue sendo apreciado no âmbito dos Tribunais, nos quais se constata, ao menos no egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região, uma dissonância de entendimentos. Vejamos.
Conferindo interpretação literal à aplicação do dispositivo, verifica-se o seguinte precedente daquela da Primeira Turma daquela Corte Regional:
"EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. SEGURO GARANTIA. TEMPESTIVIDADE. Nos termos do artigo 16, II, da Lei nº 6.830, de 1980, o prazo para oposição dos embargos inicia-se na data da juntada aos autos da prova do seguro-garantia" [5].
Entretanto, igualmente se constata a existência de julgado em sentido oposto, conforme excerto da 2ª Turma daquela corte:
"TRIBUTÁRIO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. SEGURO GARANTIA. INDISPENSABILIDADE DA LAVRATURA DO TERMO DE PENHORA. O oferecimento de seguro garantia não dispensa a lavratura do termo de penhora e posterior intimação do executado acerca do ato, momento a partir do qual passará a fluir o prazo para oposição dos embargos. Precedentes" [6].
Com a ressalva de entendimento pessoal, no sentido de que deve prevalecer a interpretação literal do dispositivo, não cabendo ao intérprete igualar o tratamento a casos em que a própria norma apresentou diferentes termos iniciais, tenho que, na maioria dos casos práticos, a solução sequer perpassa por tal dicotomia. Explico.
Tal celeuma, como regra, só tende a ocorrer pela praxe da vara especializada. Nas varas em que o entendimento é o da contagem a partir da juntada, desde já tal prazo deve ser aberto à parte. Naquelas em que se considera necessária a prévia lavratura do termo de penhora e posterior intimação do executado, a partir de então deverá contar o prazo (embora, conforme já acima ressaltado, pareça-me mais seguro ao causídico seguir a literalidade da norma).
O grande problema surge quando, por situações de alteração de competência interna de instrução e julgamento — como, por exemplo, redistribuição de competência no âmbito da Justiça — a execução fiscal e respectivos embargos passam a ser analisados por magistrado distinto, o qual, por convicção jurídica interna, tem entendimento contrário ao seu antecessor em relação ao termo inicial.
A exemplo, pensemos na hipótese de que, tramitando perante o juízo A (que entende por termo inicial a intimação da penhora do seguro garantia), a parte opõe os embargos à execução fiscal contando seu prazo a partir de tal intimação. Redistribuídos os feitos por, a exemplo, equalização processual, passam a tramitar perante o juízo B (que entende, em interpretação literal, que o termo é a juntada da prova, e não a intimação da penhora do seguro garantia). Questiona-se: é razoável que o juízo B reconheça por intempestivos os embargos apresentados?
Pois bem, conforme já acima adiantado, tenho que, para casos tais, a solução sequer deve perpassar pela divergência existente na jurisprudência, bem pelas posições dos hipotéticos magistrados dos juízos A e B. A meu sentir, tal contexto fático-jurídico — que não raras vezes ocorre de fato — deve ser solucionado pela aplicação dos princípios regentes do processo civil contemporâneo, mormente pelo da boa-fé processual e da necessidade de proteção da confiança legítima.
Quanto ao tema, vejamos a doutrina de Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero:
"A boa-fé pode ser reconduzida à segurança jurídica, na medida em que é possível reduzi-la dogmaticamente à necessidade de proteção à confiança legítima — que constitui um dos elementos do princípio da segurança jurídica — e de prevalência da materialidade no tráfego jurídico. Como elemento que impõe tutela da confiança e dever de aderência à realidade, a boa-fé que é exigida no processo civil é tanto a subjetiva como a objetiva. Ao vedar o comportamento contrário à boa-fé, o Código de 2015 impõe especificamente a necessidade de boa-fé objetiva.
Comporta-se com boa-fé aquele que não abusa de suas posições jurídicas. São manifestações da proteção à boa-fé no processo civil a exceptio doli, o venire contra factum proprium, a inalegabilidade de nulidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício do direito. Em todos esses casos há frustração à confiança ou descolamento da realidade, o que implica violação ao dever de boa-fé como regra de conduta. A exceptio doli é a exceção que tem a pessoa para paralisar o comportamento de quem age dolosamente contra si. O venire contra factum proprium revela a proibição de comportamento contraditório. Traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Age contraditoriamente quem, dentro do mesmo processo, frustra a confiança de um de seus participantes. A inalegabilidade de vícios formais protege a boa-fé objetiva na medida em que proíbe a alegação de vícios formais por quem a eles deu causa, intencionalmente ou não, desde que por aí se possa surpreender aproveitamento indevido da situação criada com a desconstituição do ato. A supressio constitui a supressão de determinada posição jurídica de alguém que, não tendo sido exercida por certo espaço de tempo, crê-se firmemente por alguém que não mais passível de exercício. A supressio leva à surrectio, isto é, ao surgimento de um direito pela ocorrência da supressio. O tu quoque traduz a proibição de determinada pessoa exercer posição jurídica oriunda de violação de norma jurídica por ela mesma patrocinada. O direito não pode surgir de uma violação ao próprio Direito ou, como diz o velho adágio do common law, equity must come with clean hands. A ideia de desequilíbrio no exercício do direito revela, em seu conjunto, o despropósito entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados. Três são as manifestações do exercício desequilibrado do direito: o exercício inútil danoso, a ideia subjacente ao brocardo dolo agit qui petit quod statim redditurus est e a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular do direito e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem.
A ausência de boa-fé pode levar, conforme o caso, à ineficácia do ato processual contrário à boa-fé, à responsabilização por dano processual e inclusive à sanção pecuniária.
Todos os participantes do processo devem comportar-se de acordo com a boa-fé: partes, advogados, membro do Ministério Público, da Defensoria Pública e juiz. Também aqueles que participam apenas episodicamente do processo também estão sujeitos ao dever de boa-fé processual. O pedido e a sentença devem ser interpretados, ademais, conforme a boa-fé (arts. 322, § 2.º, e 489, § 3.º, do CPC)" [7].
Transmutando para aquele caso hipotético: foi em observância à conduta do juízo A que a parte embargante opôs os embargos no prazo que o fez, partindo de uma interpretação legítima de boa-fé e confiança na conduta do magistrado condutor do feito, guiando-se pelos marcos temporais apresentados pelo próprio órgão judicante.
Seria violador de tais princípios a conduta do juízo B, embora partindo de determinação da norma, no sentido de reconhecer a intempestividade dos embargos, ainda que encontrando esteio em uma das correntes do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no qual igualmente não há uniformidade. Se assim proceder, haverá verdadeira punição ao embargante por conduta processual baseada na prévia posição do magistrado, ofendendo claramente a boa-fé processual, especialmente na vertente da proteção à confiança legítima.
Assim, para que tal cenário não tenha recorrência, entendo que deve se impor a previsão da interpretação literal da norma, não cabendo ao intérprete igualar o tratamento em circunstâncias não previstas pelo legislador. Entretanto, persistindo a existência de duas correntes na prática forense das diversas varas especializadas em execução fiscal, a questão deve ser analisada muito mais pelos princípios da boa-fé processual e na proteção da confiança legítima, ressalvado, é claro, a constatação de conduta de má-fé pelo então embargante.
[1] STJ. REsp 1.487.772-SE, rel. min. Gurgel de Faria, 1ª Turma, julgado em 28/05/2019, DJe 12/06/2019.
[2] BRASIL, Lei nº 6.830 de 22 de setembro de 1980. Dispõe sobre a cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública, e dá outras providências.
[3] STJ. REsp 1.508.171-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 17/03/2015, DJe 06/04/2015.
[4] JÚNIOR, Humberto T. Lei de execução fiscal. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553620209. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553620209/. Acesso em: 26 ago. 2023.
[5] TRF4, AC 5001323-24.2020.4.04.7204, relator Rômulo Pizzolatti, 2ª Turma, juntado aos autos em 13/4/2021.
[6] TRF4, AG 5013498-94.2021.4.04.0000, relator Francisco Donizete Gomes, 1ª Turma, juntado aos autos em 18/6/2021.
[7] ARENHART, Sérgio Cruz. MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 3ª ed. Ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 161-162.