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Mariana Dias: Perda da pretensão punitiva em crimes tributários

10 de setembro de 2023, 7h17

Por Mariana Coelho Dias

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Recentemente, em Plenário Virtual ocorrido nos dias 04 a 14 de agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.273 e decidiu, por unanimidade, pela constitucionalidade dos artigos 67 a 69 da Lei nº 11.941/2009 [1] e do artigo 9º, §§1º e 2º, da Lei nº 10.684/2003 [2].

Os referidos artigos preveem a obrigatoriedade da suspensão da pretensão punitiva estatal em razão do parcelamento dos tributos e da extinção da punibilidade do agente caso seja realizado o pagamento integral do débito parcelado.

Nesse contexto, a Ação Direta de Inconstitucionalidade foi ajuizada no ano de 2009 pela Procuradoria-Geral da República, que argumentou que os mencionados dispositivos estariam em dissonância com os princípios da justiça, equidade e proporcionalidade, especificamente com os artigos 3º, I a IV, e 5º, caput, da Constituição Federal, que preconizam, in verbis:

"Artigo 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

(…)

Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".

Sob esta ótica, sustentou que as normas questionadas não protegem o sistema essencial para a arrecadação tempestiva e esperada dos recursos, favorecendo os indivíduos que não fazem o pagamento no momento e do modo correto. Ademais, alegou que, sem o efeito intimidador da pena, estaria comprometida a arrecadação de tributos e contribuições previdenciárias e, por consequência, o objetivo do Estado brasileiro de construir uma sociedade justa, fraterna e igualitária.

Tais argumentos, entretanto, não condizem com a realidade dos fatos.

Conforme acertadamente decidiu o STF, a previsão de suspensão da pretensão punitiva e extinção da punibilidade por ocasião, respectivamente, do parcelamento e do pagamento integral do débito não apenas não frustra os objetivos da República previstos no texto constitucional, como contribui para a sua concretização.

Resta cristalino que o legislador, ao redigir as Leis nº 11.941/2009 e 10.684/2003, optou pela política arrecadatória em detrimento da aplicação das sanções penais, o que guarda conformidade com os princípios que a Procuradoria-Geral da República objetivou proteger com o ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Primeiramente, o pagamento dos débitos tributários e, consequentemente, a arrecadação de recursos pelo Estado, garante os objetivos fundamentais previstos no artigo 3º, I a IV, da Constituição Federal, possibilitando 1) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; 2) a garantia do desenvolvimento nacional; 3) a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como redução das desigualdades sociais e regionais; e 4) a promoção do bem de todos, sem qualquer discriminação.

Nesse ponto, ressalta-se que é comum que os devedores não tenham condições de arcar com o débito de forma integral e imediata, de modo que o parcelamento se torna um meio para alcançar o recolhimento dos tributos pelo Estado e, ainda, possibilitar que pequenos e médios empresários permaneçam no mercado, livres de dívidas tributárias e, ainda mais importante, de ações penais em seu desfavor.

Em segundo lugar, a intervenção penal deve ocorrer tão somente quando absolutamente necessária, isto é, quando não houver outros meios e ramos do Direito para proteção dos bens jurídicos. Acerca do tema, leciona o doutrinador Luiz Regis Prado:

O princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade decorrente das ideias de necessidade e de utilidade da intervenção penal, presentes no pensamento ilustrado, estabelece que o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa. Isso porque a sanção penal reveste-se de especial gravidade, acabando por impor as mais sérias restrições aos direitos fundamentais.

Nesses termos, a intervenção da lei penal só poderá ocorrer quando for absolutamente necessária para a sobrevivência da comunidade  como ultima ratio legis , ficando reduzida a um mínimo imprescindível. E, de preferência, só deveria fazê-lo na medida em que for capaz de ter eficácia [3].

Na mesma perspectiva, Claus Roxin explica que a intervenção mínima do Direito Penal deriva do princípio da proporcionalidade, que, por sua vez, deriva do Estado de Direito Constitucional [4]. Vê-se, dessa maneira, que a preferência do legislador na arrecadação tributária em substituição à aplicação da sanção penal, como, por exemplo, da pena privativa de liberdade, está em harmonia com o princípio da proporcionalidade.

Isto porque, conforme mencionado durante o julgamento da ADI nº 4.273, não basta analisar a proporcionalidade puramente sob a ótica da proibição de proteção deficiente, sendo indispensável o exame através do outro extremo, qual seja, a proibição do excesso.

No caso, a opção do legislador de suspender e, posteriormente, extinguir a punibilidade do agente em razão do pagamento integral do débito mostra-se suficiente e adequada para proteger o bem jurídico tutelado pelos tipos penais contra a ordem tributária, o qual, a nosso ver, se pauta na arrecadação tributária.

Não é outro, aliás, o entendimento de Heloísa Estellita Salomão, vejamos:

"A arrecadação tributária, porém, entendida como instrumento de formação de receita pública e de consecução e implemento das metas socioeconômicas definidas na Constituição, através da percepção dos tributos instituídos e cobrados em conformidade com as normas e valores constitucionais, representa um valor superindividual, com relevância constitucional e indiretamente reconduzível à pessoa humana, tendo aptidão, portanto, para a sua tutela mediante o emprego da sanção penal, ou seja, sob o ângulo do merecimento de pena" [5].

Acerca do tema e especificamente quanto à impossibilidade de se empregar a sanção penal automaticamente, a doutrinadora segue explicando:

"Não se deve descurar, porém, de que o merecimento de pena é insuficiente, por si só, para fundamentar o emprego da sanção penal na tutela do bem jurídico-penal. Impõe-se, ainda, que se comprove a necessidade de pena, isto é, a comprovação da insuficiência de outras espécies de sanção na proteção do bem, e a danosidade social da conduta que se extrai da concorrência da gravidade acentuada do ataque (ameaça ou lesão) a um bem jurídico-penal" [6].

O Estado não deve, portanto, se valer de sanção mais gravosa se o adimplemento da dívida se mostra suficiente para proteger o bem jurídico tutelado, a fim de se evitar o excesso de proteção e de meios utilizados para tal.

Por sua vez, a suspensão da pretensão punitiva devido ao parcelamento do débito é uma hipótese de extrema importância para garantir que não somente aqueles que tenham condições para fazer o pagamento integral de forma imediata sejam alcançados pela possibilidade de extinção de punibilidade, mas também aqueles que não possuem condições financeiras para arcar com os referidos custos, mas se prontifiquem a pagá-lo a curto, médio ou longo prazo, excluindo-se o prejuízo estatal.

A rigor, se a persecução penal por si só não resolve o problema da sonegação fiscal, os dispositivos legais no bojo da ADI são, em muitos casos, instrumentos de grande valia para o alcance da justiça fiscal e da arrecadação tributária.

Nesta toada, o STF, ao decidir acerca da constitucionalidade da suspensão e da perda da pretensão punitiva em razão do parcelamento e pagamento integral do débito, precisou se questionar acerca do que seria melhor para os interesses do Estado, o ônus de mais um encarcerado e/ou processado criminalmente por uma dívida que pretendia pagar, ou o recebimento do valor devido, ainda que a curto, médio ou longo prazo?

Conforme entendimento exarado na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.273, o pagamento do débito tributário é muito mais útil para a sociedade do que a mera penalização do devedor.

Diante do exposto, diferentemente do pretendido pela Procuradoria-Geral da República, é evidente que a decisão colegiada do STF no que tange à constitucionalidade da suspensão e da perda da pretensão punitiva em razão do parcelamento e pagamento integral do débito para crimes tributários se encontra em consonância com os objetivos fundamentais da República e com os princípios da proporcionalidade, igualdade e mínima intervenção do Direito Penal, sendo de grande valia para a jurisprudência nacional.

 


[1] Artigo 67. Na hipótese de parcelamento do crédito tributário antes do oferecimento da denúncia, essa somente poderá ser aceita na superveniência de inadimplemento da obrigação objeto da denúncia.

Artigo 68. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos artigos 1o e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos artigos 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940  Código Penal, limitada a suspensão aos débitos que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento, enquanto não forem rescindidos os parcelamentos de que tratam os artigos 1o a 3o desta Lei, observado o disposto no artigo 69 desta Lei.

Parágrafo único. A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.

Artigo 69. Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no artigo 68 quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento.

[2] Artigo 9º. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos artigos 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940  Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.

§1º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.

§2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.

[3] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral: artigos 1º a 120. 8 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. E-book.

[4] ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos, la estrutura de la teoria del delito. Tradução e notas por Diego-Manuel Luzón Peña; Miguel Díaz y Garcia Conllendo; Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 65-66.

[5] SALOMÃO, Heloísa Estellita. A tutela penal e as obrigações tributárias na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 188.

[6] SALOMÃO, Heloísa Estellita. A tutela penal e as obrigações tributárias na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 188-189.