A zona cinzenta do vínculo de trabalhadores de aplicativo
4 de setembro de 2023, 14h22
Os modelos de relações de trabalho constantemente sofrem mudanças em razão das transformações e avanços da sociedade. Nos últimos anos, com o desenvolvimento da tecnologia, houve também o surgimento de trabalhos oriundos de aplicativos.
Os aplicativos que conectam o consumidor ao prestador de serviço estão em alta. Entre diferentes objetivos e empresas, esse novo modelo de negócio cresce e toma conta do mercado. Atualmente, é possível contratar transporte; entrega de comida e mercadorias; contratação de serviços; locação; entre outros. Tudo com um simples clique no aplicativo instalado no celular ou pela própria internet.
Especificamente no tocante a aplicativos de entrega, a relação entre empresas e trabalhadores se inicia com o cadastro do trabalhador em referido aplicativo, aceitando os termos de uso e condições previamente estabelecidos pela empresa.
Em geral, os diversos aplicativos que existem hoje no mercado atuam da mesma maneira, intermediando a relação entre um vendedor e um entregador e, em alguns casos, com o consumidor, para que um determinado produto seja transportado e entregue. O valor da entrega é definido pelo aplicativo e informado ao entregador, de acordo com critérios adotados unilateralmente.
Dentro dessa dinâmica de trabalho existem bônus e punições aos entregadores, que adotam alguns critérios como o aceite ou a recusa de entregas; tempo disponível no app; quantidade de entregas; local e horário de trabalho; dentre outros.
Do mesmo modo, como em todas as mudanças no modo de viver e relacionar de uma comunidade, essa novidade laboral trouxe à tona problemas, especialmente de ordem social, que necessitam de atenção e solução.
O enfrentamento desse novo modelo de trabalho é um tema frequente e atual no Brasil, tanto pelo Poder Judiciário, quanto pelos Poderes Legislativo e Executivo. Com variadas teses e posicionamentos entre juristas e julgadores, busca-se a resposta para aquela que pode ser considerada a maior controvérsia desse novo modelo de trabalho: há vínculo de emprego entre as empresas e os entregadores de aplicativo?
Na atual legislação, seja trabalhista ou civil, não há dispositivo legal que preveja intencionalmente direitos e deveres para esse modelo de trabalho. Os litígios enfrentados pelo Poder Judiciário utilizam de aplicação das normas vigentes e buscam adequar, à lei anterior, a novidade social ao caso concreto.
Pela via judicial, alguns trabalhadores buscam o reconhecimento de vínculo de emprego e, por consequência, o pagamento de todas as verbas trabalhistas que não receberam enquanto prestadores de serviços. As empresas, por sua vez, alegam que não há vínculo de emprego, porquanto são apenas empresas de tecnologia que atuam para intermediação serviços de entrega.
A legislação trabalhista estabelece que o vínculo de emprego é uma relação formada pelo empregador, quem assume os riscos da atividade econômica exercida; admite; assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço, e por um empregado, pessoa física que presta serviços de forma pessoal, não eventual, mediante contraprestação financeira e subordinado ao empregador.
Na questão que envolve a relação dos entregadores e empresas de aplicativos é incontroverso que há contraprestação financeira; que o trabalho é realizado de forma pessoal e, na maior parte das relações, é de forma não eventual. O ponto controvertido reside, principalmente, na existência ou não de subordinação.
A subordinação pode aparecer em relações de trabalho exercidos de forma tradicional ou não tradicional. A subordinação jurídica, é aplicada em relações tradicionais e adotada no direito brasileiro, em que há o dever de sua obediência de forma estruturada, seja no trabalho presencial, seja no trabalho remoto.
Entretanto, com a pluralidade de relações de trabalho existentes, existem aquelas que possuem uma subordinação sutil e diante da zona nebulosa que apresenta, é difícil identificar e se há ou não os requisitos para o vínculo de emprego.
Nota-se que a relação entre os trabalhadores e empresas de aplicativos apresenta subordinação em zona cinzenta, de difícil identificação da natureza do vínculo que há entre as partes e consequente aplicação da legislação, seja cível ou trabalhista.
Há correntes que adotam o termo de "subordinação algorítmica" para classificar a hierarquia e dependência entre as partes. Entende-se que há subordinação na relação, mas não de maneira clássica, em que a empresa detém o poder diretivo através do aplicativo e, por meio deste, controla o tempo de trabalho, valor da entrega (precificação do trabalho de terceiro), percursos, qualidade do trabalho através dos feedbacks dos consumidores, fornece bonificações, aplica punições ou até pena de exclusão.
Nos autos do RRAg nº 100853-94.2019.5.01.0067, a 8ª Turma do C. TST, em relatoria do ministro dr. Alexandre Agra Belmonte, reconheceu o vínculo de emprego de trabalhador e empresa de aplicativo, sob a ótica de que há subordinação algorítmica na relação.
O ministro relator considerou que por meio da programação do algoritmo a empresa controla, comanda e fiscaliza o trabalho através de uma programação neofordista. O algoritmo atua como um supervisor e mascara a figura do empregador, que controla o sistema.
Ainda que a ação trate do vínculo com empresa de transporte de passageiros, a definição sobre subordinação algorítmica pode ser aplicável aos entregadores, uma vez que a dinâmica de trabalho é semelhante.
Da mesma maneira, é disposto no acórdão dos autos da ação 100353-02.2017.5.01.0066, julgado pela 3ª Turma, de relatoria do ministro dr. Mauricio Delgado Godinho, que também aplica o conceito da subordinação algorítmica para reconhecer o vínculo de emprego entre o trabalhador e a empresa de aplicativo.
A corrente defensora da não configuração de vínculo de emprego argumenta que os requisitos exigidos no artigo 3º, da CLT não são preenchidos, uma vez que não há subordinação jurídica e, por vezes, entende que sequer há habitualidade.
Sustenta-se que o trabalhador tem liberdade e autonomia nas atividades e pode escolher quais dias e horários trabalhará, quais demandas aceitará, a forma e percurso da entrega, além de ter a liberdade de sequer entrar no aplicativo para trabalhar, além de poder atuar para outros aplicativos concorrentes ao mesmo tempo, o que seria incompatível em um emprego formal, uma vez que o trabalho concomitante para empresas concorrentes pode configurar falta grave.
Diante deste cenário a empresa não teria controle do trabalho do entregador, em especial quanto à performance, como determinar meta de entregas e agir quando o trabalhador tem rendimento abaixo do esperado.
As punições são decorrentes das avaliações dos usuários e acontecem tão somente para manter as boas práticas da plataforma e evitar futuros litígios com os usuários, sem qualquer avaliação por parte da empresa.
Em julgamento do AIRR-331-35.2020.5.10.0015 a 4ª Turma do C. TST não reconheceu o vínculo de emprego entre um entregador e a empresa iFood.
O ministro relator Alexandre Luiz Ramos dispôs que as novas formas de trabalho devem ser reguladas por lei própria e, enquanto não há ação do legislador, não pode o Judiciário adotar o reconhecimento do vínculo empregatício, em especial por poder o trabalhador dispor livremente da forma como irá trabalhar, horários, quais entregas aceitará, sem que haja punição ou fiscalização da empresa. Pondera-se que a atividade econômica da empresa não é de transporte de bens, mas sim uma plataforma de tecnologia que apenas possibilita a conexão dos usuários.
Referido entendimento tem seguido a mesma linha das ações de motoristas de aplicativos que também buscam o vínculo empregatício, não obtendo êxito.
Entende-se que o serviço prestado pelo entregador sequer é objeto de atuação das empresas de aplicativos, uma vez que são apenas um canal facilitador para conectar trabalhadores e consumidores. Imputa-se natureza cível na relação entre trabalhador e empresa.
Diante deste cenário, as demandas sobre o tema julgadas pelo E. STF reiteram a decisão de aplicação do julgamento da ADC 48 e reconhecem a incompetência da Justiça do Trabalho para examinar a natureza da relação existente, remetendo os autos para a Justiça Comum.
Em maio de 2023, no julgamento da Rcl 59.870/RS, de autoria da Fedex Brasil, foi aplicada a ADC 48, com a ressalva de que a decisão não reconhecia a inexistência de vínculo, mas tão somente a incompetência da Justiça do Trabalho para deliberar acerca da natureza da relação entre as partes.
Em julgamento da Rcl 59.795/MG que envolve empresa de aplicativo para transporte de passageiros, aplicado de forma análoga aos entregadores, o ministro Alexandre de Moraes adotou posicionamento semelhante, conferindo à Justiça Comum a competência para julgar o caso.
A corte adotou entendimento de que a ADC 48 reconheceu a constitucionalidade da Lei 11.442/2007, que possibilita a contratação de transportador autônomo e terceirização dos serviços de transporte.
Sendo assim, por mais que haja uma indefinição sobre o tema, o Judiciário tem adotado entendimento de inexistência do vínculo empregatício entre entregadores e aplicativos.
Em paralelo as movimentações e entendimentos proferidos no Poder Judiciário, os Poderes Executivo e Legislativo discutem soluções para a questão.
Atualmente no Congresso Nacional há projetos de lei tramitando com propostas diversas. Em suma os projetos buscam a regularização da categoria; inclusão na previdência social; direitos mínimos; entre outras propostas que estão em debate.
Em junho deste ano, o governo federal editou o Decreto nº 11.513/23 e criou um grupo de trabalho para debater propostas de regulamentação da categoria de trabalhadores por aplicativo.
O artigo 3º do decreto prevê a participação de 45 membros, sendo 15 representantes do governo federal; 15 representantes dos trabalhadores, que são compostos por sindicatos e 15 representantes dos empregadores, compostos por associações e organizações. Posteriormente, os representantes dos trabalhadores de aplicativos autônomos também foram incluídos no grupo de trabalho.
O grupo tem por objetivo o estudo e debate da situação atual dos trabalhadores de aplicativos e soluções viáveis para as problemáticas identificadas, com a criação de atos normativos para regulamentação da categoria e tem previsão de encerramento para setembro de 2023.
Segundo declaração do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, há convergência entre os envolvidos da necessidade de remuneração mínima, limite de jornada e inclusão na previdência social.
A expectativa é que com a regulamentação legal da atividade o novo modelo de trabalho criado encerre o debate da existência ou não do vínculo de emprego entre os trabalhadores e empresas de aplicativo.
Pondera-se que, caso haja efetivamente a regulamentação das atividades de entregadores por aplicativos, o ônus das empresas certamente ocorrerá, e esse repasse será feito ao consumidor final, com aumento das taxas de entregas ou criação de novas taxas, aumentando-se, assim, os valores finais dos pedidos.
Não há hoje vinculação de emprego entre as empresas e os entregadores justamente pela flexibilidade das atividades. Conforme mencionado em julgados supracitados, as atividades não têm os requisitos exigidos pelo artigo 2º, da CLT, uma vez que os entregadores podem exercer suas atividades para mais de uma empresa concomitantemente, trabalhar quando bem entenderem e nos locais em que quiserem.
Sendo assim, atualmente não se vislumbra razão para regularização de referidas atividades, vez que é regida justamente pela informalidade, inexistência de exclusividade e porque não dizer, pela não habitualidade, já que os "entregadores" trabalham quando bem entender.
O grupo de trabalho criado pelo governo federal irá aflorar os ânimos da discussão, o debate sobre o tema crescerá e as mudanças que virão impactarão não apenas a dinâmica de trabalho, mas também a economia e a sociedade.
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