Dualismo constitucional

Nas mãos do STF, uma decisão vital sobre liberdade religiosa na saúde pública

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3 de setembro de 2023, 8h49

Além de se manifestar a respeito da descriminalização do porte de algumas drogas e da responsabilização das rede sociais pelos conteúdos publicados — tendo em vista a inépcia legislativa —, o Supremo Tribunal Federal pode, ainda neste ano, decidir sobre outro ponto importante que envolve direitos individuais: a obrigação de fazer dos entes federados em relação à liberdade religiosa dos pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS).

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STF vai decidir se SUS deve incorporar tratamento sem transfusão de sangue

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A despeito de sua especificidade, o assunto, que figura na lista de repercussão geral do Supremo (Tema 952, relatado pelo ministro Luís Roberto Barroso), deve ter impacto substancial nas políticas de saúde pública. Os ministros vão decidir se há conflito entre o exercício da liberdade espiritual e as obrigações do SUS, levando em conta o número considerável de ações que têm como objeto a garantia de cirurgias e outros procedimentos sem o uso de transfusão de sangue — prática que não é aceita pelos que se identificam como Testemunhas de Jeová.

O caso ganhou novos contornos a partir da publicação do posicionamento da Procuradoria-Geral da República, no último dia 21. O PGR, Augusto Aras, defendeu que "há de ser resguardada, pelos que decidirem livremente exercer a sua liberdade religiosa, a recusa ao recebimento de transfusão de sangue em procedimento médico, mas a obrigação do poder público de arcar com tratamento alternativo somente alcança aqueles disponibilizados a todos pelo sistema público de saúde".

Aras também entende que a União pode ser demandada em ações judiciais envolvendo protocolos alternativos para tratamento no SUS, o que faz parte do debate sobre o direito à liberdade religiosa das Testemunhas de Jeová.

Na ação que desembocou no Tema 952 (RE 979.742), a União, o estado do Amazonas e o município de Manaus foram condenados a bancar uma cirurgia de uma paciente Testemunha de Jeová que argumentou pelo direito ao procedimento sem transfusão de sangue. Além da cirurgia, município, estado e governo federal foram obrigados a arcar com passagens e traslado para outra cidade que tivesse o aparato tecnológico necessário para fazer o procedimento sem a transfusão.

Para Aras, o poder público tem o dever de custear os tratamentos alternativos, até porque já há estados da federação que os incorporam por meio do SUS, ou seja, ir contra essa possibilidade é cercear o direito igualitário de todos os brasileiros à saúde pública. Nesse caso, diz o PGR, a garantia não é só uma escolha, mas também a forma mais adequada de se preservar "os direitos à saúde e à manifestação religiosa".

Os advogados e especialistas no assunto entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico corroboram — embora alguns com ressalvas — a posição da PGR. "O Estado não tem essa prerrogativa de ingerência, um posicionamento coercitivo em relação a esse caso específico, de poder interferir no tratamento escolhido pelo paciente", diz a advogada Cristiane Natachi do Rosário, coordenadora-geral da Comissão de Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional de São Paulo.

Para Cristiane, há um problema crônico relacionado ao tema: o conhecimento escasso sobre os procedimentos, tanto por parte dos hospitais quanto do Judiciário. "O reconhecimento de tratamentos alternativos precisa ser feito para ontem, é justamente essa questão que gera demanda crescente para o Judiciário."

"Há muita falta de informação. Nesse caso do tema específico das Testemunhas de Jeová, os tratamentos alternativos são, por vezes, muito mais eficazes do que os mais invasivos", completa a advogada.

"Se um direito individual está sendo limitado pela política pública sem uma razão relevante, a política pública deve mudar; porém, se a restrição ao direito individual é justificada, a política pública não deve admitir exceções. É esse o cálculo que o STF deverá fazer nesse julgamento", argumenta Eloísa Machado de Almeida, advogada e professora de Direito Constitucional da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Defensorias, OMS e recursos escassos
As obrigações da União, dos estados e dos municípios estão sendo debatidas em processos que correm em parte considerável do país — não é à toa sua repercussão geral. Até a publicação desta reportagem, nove Defensorias Públicas constavam como amicus curiae no recurso extraordinário afetado: Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Pernambuco, Bahia, Tocantins e Distrito Federal.

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OMS já recomendou uso de tratamento PBM por ser mais seguro e menos custoso
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Para o defensor público Pericles Batista da Silva, da Defensoria mineira, não há contrassenso em estabelecer exceção à regra por causa da liberdade religiosa do paciente. Pelo contrário, segundo ele, os tratamentos pleiteados pelas Testemunhas de Jeová são hoje reconhecidos pela Organização Mundial da Saúde como uma alternativa concreta, que deve ser buscada pelos países para evitar o excesso de transfusões de sangue, que carregam uma série de riscos e têm alto custo.

"As opções de tratamentos sem o uso de sangue são financeiramente mais vantajosas para o Estado. Segundo a OMS, o tratamento que usa o sangue do próprio paciente (PBM, na sigla em inglês), dispensando o uso de transfusão de sangue de terceiros, deve ser o tratamento médico padrão em razão de suas vantagens clínicas (menor morbidade e menor mortalidade), éticas (é o melhor tratamento para o paciente) e financeiras (reduz significativamente os gastos com saúde)."

O ponto do debate que trata das questões orçamentárias é o mais sensível. A despeito das informações disponibilizadas pela OMS, incluindo estudos que mostram economias robustas por parte do Estado com a adoção do PBM (além de melhores resultados em comparação com a transfusão), há pouca discussão sobre sua adoção completa pelo SUS, e essa mudança estrutural costuma ser observada do ponto de vista financeiro.

"A questão que está sendo debatida no STF não é só o alcance da liberdade de religião frente a prestações sociais universais e igualitárias (como são as políticas de saúde), mas também se a consideração de demandas desses grupos religiosos, que requerem procedimentos não incorporados ao SUS, não pode vir a criar um desequilíbrio de políticas gerais, já que os recursos são escassos", lembra Eloísa Almeida.

Vera Chemim, advogada especialista em Direito Constitucional, destaca que é dever do Estado resguardar as garantias do exercício da liberdade religiosa, e ela cita o inciso VI do artigo 5º da Constituição, que assegura a inviolabilidade da crença religiosa, incluindo a "proteção aos locais de culto e a suas liturgias". Este último termo, segundo a advogada, também diz respeito aos hábitos e costumes dos que se identificam com determinada religião, como no caso das Testemunhas de Jeová.

A advogada, todavia, acredita que há duas garantias constitucionais em conflito. "Nenhum direito fundamental é absoluto, inclusive o direito à liberdade de religião. Tem de ser ponderado se o Estado tem condições de prestar esse tipo de tratamento, de oferecer um procedimento que não inclua a transfusão de sangue, se esse serviço está disponível."

Ela ressalta que o Supremo vai ter de se debruçar sobre uma questão espinhosa: por um lado, a Constituição assegura que o livre exercício da religião não pode ser limitado por meio de políticas públicas que desconsiderem as concepções espirituais de cada um. Por outro, o mero exercício de uma convicção também não pode autorizar, automaticamente, uma alocação de recursos públicos que são escassos.

"O SUS não pode absorver toda e qualquer pretensão do indivíduo, caso contrário não haveria dinheiro que bastasse. O Poder Judiciário vai ter de fazer uma ponderação entre dois bens constitucionais. Ou, dito de outra forma, vai ter de refletir sobre direito à vida e à saúde de uns contra direito à vida e à saúde de outros."

Respingos
O julgamento no Supremo deve ter reflexos em situações laterais, mas que têm relação direta com a garantia dos tratamentos alternativos pelo SUS — e também podem gerar impactos orçamentários significativos, posto que há a necessidade de adquirir, transportar e armazenar novos equipamentos e tecnologias, além de fazer o treinamento dos profissionais de saúde.

O próprio sistema de saúde brasileiro já tem conhecimento sobre o tema, mas sua implementação tem ocorrido, em geral, por via judicial.

"As opções de gerenciamento de sangue do próprio paciente são reconhecidas e utilizadas pela ciência médica e contempladas em documentos do próprio SUS, sendo que os insumos necessários para o tratamento de saúde sem transfusões de sangue já estão previstos nas listas do SUS (Renem, Rename e portarias), conforme apurado pelo Ministério Público Federal e reconhecido pela 4ª Vara Federal do Rio de Janeiro", exemplifica o defensor público Péricles da Silva.

No caso citado pelo defensor, o juiz federal substituto Mario Victor Braga Pereira Francisco de Souza determinou, em abril deste ano, que cabe à União a implementação de um programa de gerenciamento de sangue de pacientes (o já citado PBM) internados em hospitais e institutos federais do Rio.

Na decisão, consta que "o Ministério da Saúde reconheceu ao MPF o risco das transfusões sanguíneas, destacando que elas devem ser indicadas de maneira criteriosa pela equipe médica assistente, com a análise e aprovação pelos profissionais médicos dos serviços de hemoterapia".

Enquanto não há uma definição sobre o tema, hospitais públicos também têm sido condenados a aceitar o tratamento PBM. Nesses casos, a judiciliazação (e a resistência por parte dos litigantes) é tão intensa que as instituições de saúde, por vezes, recusam-se até a receber o equipamento que garante o tratamento sem transfusão.

Em julho, a Vara da Fazenda Pública, Acidentes do Trabalho e Registros Públicos de Lages (SC) teve de obrigar um hospital a autorizar a entrada de uma máquina de recuperação intraoperatória de sangue para uma cirurgia em uma testemunha de Jeová. O equipamento, apelidado de cell saver (salvador de células, em tradução livre), retira o sangue que seria perdido e o recupera para ser reinfundido no paciente.

"Falar de exceção transmite a ideia de que existe uma regra geral válida para todos (que seria o uso da transfusão de sangue). Mas não é isso o que a OMS afirma. Ao contrário, ela diz que o gerenciamento de sangue do paciente (ou seja, o uso de alternativas que reduzam ou mesmo evitem o uso de sangue) 'deve ser o tratamento médico padrão', independentemente da crença religiosa do paciente", sentencia Silva.

Clique aqui para ler a manifestação da PGR
RE 979.742 (Tema 952)

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