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Carmen Campos: Surfistas do gênero e o feminismo jurídico

3 de setembro de 2023, 13h10

Por Carmen Hein de Campos

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Há algum tempo temos visto homens escrevendo e falando sobre gênero e violência de gênero. Poderíamos pensar que se trata de uma homenagem às teóricas feministas, mas, na maioria das vezes, utilizam-se do repertório sem referenciar as feministas e tampouco apropriam-se corretamente dos conceitos. Em verdade, "surfam na onda".

Os surfistas do gênero não têm compromisso sério com o fim das desigualdades de gênero, não têm proximidade com o feminismo jurídico, não leem a produção feminista, mas têm um ótimo senso de oportunidade.

O gênero tornou-se um importante conceito e ferramenta de análise feminista e definitivamente não pode ser mais ignorado, tendo sido incorporado em legislações internacionais e locais. No Brasil, a lei Maria da Penha (lei 11.340/2006) foi a primeira a expressamente mencionar o conceito de violência baseada no gênero.

Os surfistas do gênero, como não se apropriaram corretamente do conceito, ao tentarem explicar a violência de gênero, tropeçam no meio do caminho. Menciono alguns dos mais comuns tropeços:

Diferenciação entre Femicídio/feminicídio
Os surfistas de gênero acreditam que o crime de feminicídio tem motivação de gênero (o que é verdade), porque, do contrário, seria femicídio. Ops… O conceito de femicídio (femicide) foi utilizado por Diana Russell, em 1976, para referir a morte de mulheres por homens pelo fato de serem mulheres e como uma alternativa feminista ao termo homicídio. Posteriormente, é redefinido por Jane Caputti e Diana Russel (1990) como o fim extremo de um continuum de terror contra as mulheres que inclui uma variedade de violências. O femicídio aparece então, como o extremo de um padrão sistemático de violência, universal e estrutural, fundamentado no poder patriarcal das sociedades ocidentais.

Já o feminicídio foi cunhado por Marcela Lagarde, a partir do termo femicídio, para revelar as mortes de mulheres ocorridas em um contexto de impunidade e conivência do estado. Para Lagarde, para que ocorra o feminicídio devem concorrer a impunidade, a omissão, a negligência e a conivência das autoridades do estado que não criam segurança para a vida das mulheres, razão pela qual o feminicídio é um crime de estado. Assim, Lagarde introduz um elemento político na conceituação, isto é, a responsabilidade do estado na produção das mortes de mulheres.

As diferenças conceituais entre femicídio e feminicídio estão vinculadas ao contexto histórico em que foram elaboradoras, mas as duas expressões são tomadas como sinônimos pelas legislações latinoamericanas e na literatura feminista. Como não fizeram a lição de casa corretamente, os surfistas do gênero continuam a diferenciar femicídio e feminicídio e não compreendem que se trata de uma violência estrutural.

Importante lembrar que o feminicídio foi introduzido no Código Penal por proposição da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) da Violência contra a Mulher, do Congresso Nacional. O objetivo foi nomear as mortes de mulheres antes classificadas como homicídios cometidos por motivo torpe ou fútil. A qualificadora do crime de homicídio é definida juridicamente como morte de mulher por razões da condição do sexo feminino (VII 7º, artigo 121, CP) e há "razões do sexo feminino" em situações de violência doméstica, menosprezo ou discriminação à condição da mulher (§ 2º, I, II, artigo, 121, CP). As circunstâncias nomeadas nesse parágrafo indicam três possibilidades de ocorrência do feminicídio: violência doméstica, menosprezo e discriminação.

Em geral, os feminicídios são cometidos por (ex)companheiros, (ex)maridos, em contexto de violência doméstica (inciso I). Poderíamos dizer que em todos os crimes de feminicídio em contexto de violência doméstica há discriminação porque o homem ou não aceita a separação ou a autonomia feminina.

No entanto, há casos de feminidios praticados, não em contextos de relações de conjugalidade, mas por desprezo ou discriminação contra mulheres, como por exemplo, em uma situação em que um homem mata sua chefe por não aceitar receber ordens de uma mulher. Ou ainda, quando uma mulher é morta porque um homem não concorda que ela estude, como por exemplo, no caso da ativista Mallala que sofreu tentativa de feminicídio. Sem esquecer dos transfeminicídios, que podem se dar em relações de violência doméstica, ou por desprezo ou discriminação.

Os surfistas do gênero tendem a interpretar as circunstancias da qualificadora em casos de feminicídio em relações de conjugalidade (violência doméstica e familiar), consumado ou tentado, em conjunto com o desprezo e a discriminação, quando essas duas pretendem identificar situações não abarcadas pela primeira.

Vulnerabilidade, hipossuficiência, subjugação, dependência, etc. como requisitos para aplicação da lei Maria da Penha
Os surfistas de gênero sustentam que, para a aplicação da Lei Maria da Penha, especialmente para a concessão de medidas protetivas, deve haver "motivação de gênero", essa entendida como vulnerabilidade, hipossuficiência, subordinação, etc. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que os dois primeiros são presumidos e que é desnecessária a demonstração da subjugação feminina [1]. Importante frisar que tais critérios não estão previstos na LMP, decorrem de intepretação restritiva e são excludentes e discriminatórios, pois impedem que mulheres que não se enquadram nesses requisitos acionem a proteção da lei, contradizendo o princípio da proteção integral. Além disso, reforçam estereótipos de gênero porque colocam as mulheres em situação de violência doméstica como vulneráveis, subordinadas, dependentes, etc, e não como mulheres que resistiram à violência e tiveram coragem para acionar o sistema de justiça. Decorre disso, a interpretação equivocada dos surfistas do gênero de que, em casos de violência entre irmã e irmão, entre avó e neto, ou mesmo entre mulheres, por exemplo, não há violência de gênero.

Suspensão condicional do processo (SCP)
Os surfistas do gênero defendem a possibilidade da aplicação da suspensão condicional do processo em casos de violência doméstica, em dissonância com a decisão do Supremo Tribunal Federal (ADC 19), afirmando que as mulheres não querem processar o agressor (o que pode ser verdadeiro). Mas será que os surfistas do gênero alguma vez perguntaram e ouviram o que as mulheres desejam? Afirmam ainda, que conseguiram ótimos resultados com a SCP. A pergunta que não quer calar: quem avaliou esses resultados? Quais são as evidências de que os resultados são ótimos?

Por fim, os surfistas de gênero, diante de uma seleta plateia, pretendendo demonstrar seu conhecimento sobre violência baseada no gênero, fazem o quˆ???? Piadas de gênero!

 


[1] AgRg na MPUMP 6/DF, rel. ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 18/5/2022, DJe 20/05/2022; AgRg no AREsp 1.643.237/GO, rel. ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 21/9/2021, DJe 29/9/2021