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Licitação, segregação de funções e improbidade administrativa

27 de outubro de 2023, 8h00

Por Guilherme Carvalho

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Ainda que ao agente público desonesto não pairem recatos ou melindres diante de qualquer prospecção não republicana que ruine o patrimônio público, onde o terreno das contratações públicas é, por certo, o solo mais fértil, aos gestores probos a simples ameaça de uma interpretação fugitiva ao fiel intento do ato administrativo praticado é o bastante para causar a inquietude temerosa que paralisa a máquina pública.

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Por razões suficientemente claras, ninguém pretende adsorver qualquer responsabilização alheia, nomeadamente quando nada se lhe impõe quanto à materialização do ato concretizador do dano ou qualquer outra hipotética ilicitude propiciadora a um ou outro tipo de penalização.

Logo por isso, e, certamente, de forma exagerada – em evidente perissologia normativa –, o legislador regula a segregação de funções ao longo da Lei nº 14.133/2021, no intuito (sempre relativo) de proteger os que não praticaram o ato passível de condenação ou mesmo de objurgar os que, decididamente, tornaram-se essencialmente responsáveis pela existência do condenável ato administrativo.

Lograsse haver o legislador sofreado intepretações atônitas de qualquer agente público (extravagantemente os agentes que compõem os órgãos de controle), os quais, por competência normativa, possuem a atribuição de perscrutar a idoneidade de uma determinada conduta praticada por um agente público – ou mesmo privado, desde que relacionado a um invencível liame obrigacional com a coisa pública (expressão exultante genérica, porém servível para o quanto interessa) – a solução estaria em uma mera retórica semântica constante na própria lei, cuja expressividade nominativa refratária impediria avançar além daquele a quem não houvesse sido segregada a função.

Falácias à parte, a segregação de funções, vangloriada, inclusive (não se sabe por qual influxo), como princípio – nobilitação endossante a algo para além de uma mera regra –, não representa salvo-conduto específico, a menos que, minuciosa e detalhadamente, decorresse interpretação sistemática contributiva para eliminar toda e qualquer dúvida quanto à individualização das condutas.

A inverdade (por vezes, patranha) revela-se pelos mais distintos motivos, especialmente os absortos à lei. Tanto quanto possa ser revelado, não se pode deduzir de onde não há o dedutível, sendo impossível nadar em piscina seca ou mergulhar em rio sem água. Logo, só se segrega se existem as funções que possam ser segregadas.

A grande dificuldade de aplicação de uma lei nacional em um país de dimensão continental, com os mais dissemelhantes e desconformes cenários, é atribuir a mesmíssima interpretação a todo e qualquer órgão licitante. Tanto mais inexistentes funções que possam ser desmembradas, maiores são as possibilidades de concentração de atos.

Em tal compasso, torna-se substancialmente mais fácil responsabilizar em conjunto, sendo que a prática dos atos no curso do processo de contratação pública tende a propiciar uma espécie de "improbidade administrativa por arrastão".

Ocorre que, mesmo disperso desse extrínseco aspecto, alguns pontos, contidos na própria Lei nº 14.133/2021, dão conta de noticiar o arsenal de embaraços que o próprio legislador, ambiguamente, cuidou de dispersar ao longo dos incontáveis artigos.

Movidos por dois maquiavélicos paradigmas, o legislador impôs solucionamentos práticos quase que impossíveis de atingimento pacífico, quando, por exemplo, aponta a segregação de funções com matiz principiológica e, compassadamente, ordena um planejamento estratégico, condicionando toda a "alta administração" (conceito sumamente vago) a assimilar, em corroboração legitimadora, o que fora praticado pelos que têm funções segregadas.

Vários exemplos constam na novel legislação em tal sentido, especialmente na parte relacionada ao órgão de assessoramento jurídico, talvez a mais caricata apologia à multitudinária responsabilização. Tal porque, se o artigo 53, da Lei nº 14.133/2021 conforma várias e específicas atribuições ao órgão de assessoramento jurídico " sem desconsiderar, em igual tônica, outros tantos normativos dispersos ao longo de todo o texto legal ", não pairariam, em tese, confrontos quanto à individualização de condutas. No entanto, todas elas chancelam uma dubiedade concernente à implicação conjunta ou separada do parecerista com a autoridade jurídica superior.

A incontestabilidade (soando como holófrase) de jargões corriqueiros, todos no sentido de que "se faz necessário regulamentar a lei", "promover a capacitação dos agentes envolvidos no processo de contratação pública", "definir funções" (…), dentre tantas outros dislates instrutivos, vibram como o reflexo de uma "não solução", seja por ausência de praticabilidade, seja pela inócua viabilidade efetiva e factual.

Se se pudesse expressar acabamento retórico terminante – atitude indolentemente audaciosa, sobretudo para um bisonho intérprete de uma lei jovial e, desde o nascedouro, cambaleante e instável – tenderia a assimilar por umbrático, sob quaisquer esguelhas, a imposição delimitada de uma formação de precedentes quanto ao tema.

A instabilidade jurisprudencial que já assombra o assunto – e os réus (não muito raro, vítimas) – da improbidade administrativa passa a ser acompanhada de nova cinemática vetorial, com francas suspeitas de ter por hospedeiro a Lei nº 14.133/2021, porém, sem a maleabilidade de uma grandeza escalar, quiçá a formação de referências tendentes a galvanizar uma unidade de interpretação.