Ambiente Jurídico

Reflexões sobre emergência climática e desenvolvimento

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7 de outubro de 2023, 10h32

As secas e chuvas periódicas aparecendo como emergências ou tragédias nos obriga a meditar sobre o que está acontecendo. As mudanças climáticas são uma realidade que pouco a pouco vai convencendo os incrédulos: a redução da calota polar no Ártico que, alguns dizem, logo será um oceano livre para a navegação; a redução do gelo na Antártida, liberando enormes quantidades de gelo e água e alterando o nível dos oceanos e o ecossistema marinho; o aquecimento da Corrente do Golfo, que refletirá gravemente no clima do Atlântico Norte e países vizinhos; o aquecimento das estepes siberianas, com a liberação de gases de efeito estufa e diluição da permafrost; as secas intensas e prolongadas em vários lugares do mundo, no nordeste e agora no norte do Brasil; as chuvas súbitas e intensas, provocando enchentes e deslizamentos; ventanias e ciclones a que não estamos habituados, com derrubada de telhados e casas.

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A questão entre nós passa por uma avaliação do passado e do presente, para que tenhamos uma visão do futuro; pois o futuro está sendo construído e formado agora, não é algo distante à nossa espera. O passado indica a falta de planejamento e a visão de curto prazo; as enormes áreas foram sendo ocupadas pela população crescente, de uma forma caótica, inicialmente expandindo a área rural e depois se concentrando na área urbana — onde foi se amontoando nos espaços livres, morros, várzeas de rios, sem qualquer tipo de controle. A notável expansão econômica igualmente não considerou o futuro, avançando nos recursos naturais, no desmatamento, na exploração predatória e em uma produção industrial desatenta às consequências ambientais e sociais da atividade.

Hoje, com o crescimento das tragédias e da consciência ambiental, avulta o falso dilema preservação x desenvolvimento. À supressão criminosa da vegetação da Amazônia o governo responde com promessa de desenvolvimento econômico da população ali residente; ao avanço do desmatamento do cerrado, a que nunca se deu a atenção devida, o governo lentamente responde com promessa de uma regulação que já tarda; à supressão do Pantanal e dos pampas, a resposta é a mesma. O Congresso brasileiro, pelo que se nota das notícias recentes, se inclina fortemente pela visão econômica e parece acreditar que pela economia os problemas serão resolvidos.

Essa visão traz um erro histórico e conceitual. O erro histórico é que o desenvolvimento econômico, como a nossa história mostra, nunca se fez de modo ordenado e paulatino e nunca considerou todas as variáveis e consequências dele mesmo. O belo plano urbanístico de Brasília, admirado no mundo, não considerou que parte relevante dos trabalhadores que vieram para construir a capital não iriam embora e que outros seriam atraídos, passando a viver de modo improvisado e sem planejamento adequado nas chamadas cidades satélites, hoje centros populosos sem a estrutura e o planejamento da capital (por quê?); a abertura de uma estrada, e a Transamazônica é um exemplo desse planejamento precário, traz toda uma população que vai se instalando ao longo dela e degradando paulatinamente a mata ao redor; a expansão da agricultura mais recente (quando essa consciência já devia existir) no cerrado e no norte ocorreu à custa da supressão de milhares de hectares de mata nativa, sem a preservação de áreas mínimas (quanto mais da reserva legal!) e trazendo hoje preocupação quanto ao ecossistema, à recarga dos aquíferos, das nascentes e dos rios. Como temos a tradição de repetir os erros, não os acertos, o presente vai repetindo o passado e, apesar da crescente consciência ambiental aqui e no mundo, é grande a preocupação com o futuro que vamos construindo a cada dia.

O erro conceitual é transplantar para as áreas e regiões inexploradas ou pouco exploradas a visão ocidental, europeia, econômica e social. O desenvolvimento econômico da mata amazônica, do cerrado, da caatinga, do pantanal, dos mangues, exige uma compreensão maior de como nesses lugares se estabelece e desenvolve a vida, o ecossistema, a sociedade que ali se instalou e que, pela baixa quantidade e pela reduzida exploração econômica, pouco alterou o equilíbrio ambiental. O aumento da atividade econômica, ainda que centrada na bioeconomia ou no desenvolvimento dos recursos naturais ali existentes (o açaí, plantas medicinais, crustáceos, pescados, etc), implica no que vem em seguida: aumento do transporte, da população envolvida, da construção de instalações e novas moradias, atração de novos trabalhadores, crescimento da população que necessita de uma maior estrutura. São locais em que a vida tem outro ritmo e em que o equilíbrio exige um cuidado maior, pois o tempo da natureza é mais lento que o tempo dos humanos; e tal cuidado não pode ser negligenciado, como tem ocorrido, sob a falsa ideia de que a degradação daqui não refletirá na vasta extensão à frente. O desenvolvimento econômico descuidado, voltado ao hoje, é implacável com a natureza e com a vida amanhã, que vai chegar um dia.

No entanto, a estrutura jurídica do país, se compreendida e aplicada, é suficiente para minorar ou, talvez, evitar esse futuro sombrio. As diversas leis que protegem a flora e a fauna desde 1934, das quais cito a LF nº 12.651/12 de 25-5-2012, o Código Florestal [1], a LF nº 9.605/98 de 12-2-1998, a Lei dos Crimes Ambientais [2], regulam minimente a atividade econômica e a proteção ambiental; a LF nº 9.985/00 de 18-7-2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza [3], classifica as diversas áreas e o uso de maior ou menor restrição das áreas protegidas. A visão de como o país se desenvolveu ao longo desses séculos (sobram apenas 12% da Mata Atlântica, a maior parte preservada por estar em locais inacessíveis à exploração econômica) e a sobrevivência apenas das áreas protegidas, hoje representadas pelos Parques Nacionais, Estaduais e Municipais e pelas áreas indígenas, denota a difícil convivência dos humanos com a natureza e a urgente necessidade delas serem ampliadas.

A propriedade, de que tanto se fala ultimamente, igualmente precisa ser mais bem compreendida. O conceito antigo de que a propriedade implica em usar, gozar e abusar, não sobrevive hoje; cresce na Constituição e nas leis a ideia de que a propriedade tem uma função social a permitir a regulação de seu uso e a consciência de seu reflexo na vida e no interesse dos outros, em uma visão solidária e não mais autocentrada de seu uso. Abstraída a fase anterior e sem adentrar a complexa questão dos povos originários, a partir da ocupação europeia a corte portuguesa assumiu para si a propriedade de todo o território conquistado, de modo que a partir dela se foi atribuindo a propriedade da terra a particulares e a entidades públicas e privadas. Permanecem, portanto, no domínio do poder público as áreas não atribuídas que abrangem a quase totalidade da Amazônia Legal e de boa parte do cerrado e da caatinga, em que a ocupação que não se sobrepõe ao domínio da União ou dos estados. Não são terras de ninguém à espera de um dono; são terras da população brasileira, de todos os cidadãos, que só podem ser ocupadas depois de destinadas para um ou outro fim pela administração: exatamente o planejamento e a visão de futuro que nos falta — e que, dada a mencionada dificuldade de convivência com a natureza, aconselha a separação, preservação e afastamentos dos humanos das áreas a preservar.

Falei antes de um erro conceitual, que aqui transparece com clareza. Essa antiquada visão desenvolvimentista, econômica, imediata, parte do princípio de que a natureza são apenas recursos a serem explorados e que, se um retorno econômico não é extraído, ocorre um desperdício. É uma visão ultrapassada. Hoje se sabe, e há estudos claros a respeito, que a floresta em pé traz retorno econômico imediato e mediato e que os chamados serviços ambientais assumem a médio prazo um valor mensurável maior que a sua exploração pelo método usual. Não há desenvolvimento econômico, esse a que estamos habituados, sem uma degradação e destruição correspondente e maior da natureza; e se não pode ser evitado, há de ser planejado e executado de uma forma diferente do que temos feito. A emergência climática que vivemos hoje na Amazônia Legal, no sul e no nordeste são exemplos dramáticos do país que estamos preparando para nossos filhos e netos.

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