Opinião

Enfim, uma reforma de volta para o futuro

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28 de novembro de 2023, 7h00

Noite fechada na Central do Brasil. Por mais improvável que fosse, exatamente como previra anos antes o tax professor (“in english!”, como sempre lembrava) Ernesto “Wolf Towers” Braum, raios abundantes cortavam os céus cariocas naquele fim de novembro de 2023. Embora não torrencial, a chuva batia forte no para-brisas do Gurgel Carajás 88 verde metálico, robusto e devidamente “envenenado” para a viagem. Se seus cálculos estivessem corretos, em exatos cinco minutos eu deveria infringir as leis de trânsito e cruzar as gambiarras elétricas por ele preparadas em frente ao prédio que leva o nome do Imperador amigo do Pai da Eletricidade a precisos 88 quilômetros por hora. Caso conseguisse, como bom mestre tributarista que era, dr. WT Braum garantia que vivenciaríamos “algo muito sério”.

Eu não tinha ideia de que experiência seria essa, mas o fato é que não dava para desacreditar o “Doc”. Não mais. Naquele mesmo ano, ele provara ter sido um dos poucos a assegurar que o futuro, finalmente, chegaria. E não era uma afirmação qualquer, mas sim a de que o Brasil teria sua reforma tributária (aguardada, talvez, desde as caravelas de Cabral).

Leandro Santos/Supervia

Entre várias vozes, por anos a sua havia sido uma das raras dissonantes em meio a milhares de lives, seminários e eventos de autopreservação e “inconstitucionalidades frontais”. É verdade que era voz rouca, por vezes de timbre não muito forte. Mas é verdade também que era sim Voz, necessária e há muito aguardada. É claro que compreendia o que era possível, já que no que Brasil a politicagem e a nossa cultura de postergação e preservação do status quo não têm qualquer pudor de andarem de mãos dadas. E isso, fosse pela pecaminosa Copacabana, ou pela esnobe Faria Lima, ou pela promíscua Praça dos Três Poderes. Tudo junto e (bem) misturado.

“Melhor sentir o gosto de uma Reforma amarga, mas servida em prato democrático, do que uma ‘doce e ideal’, mas empurrada goela abaixo pela ditadura”, sempre fazia questão de dizer, lembrando da última mudança estrutural do sistema tributário, na década de 1960 (que resultara na promulgação do Código Tributário Nacional).

Assim, a ideia do ufanista Doc. WT era me fazer viajar 20 anos no futuro. Permitir que eu conhecesse o Brasil de 2043, dez anos após a implementação completa do modelo a ser aprovado agora, em 2023. Atestar como será nosso país com IBS, CBS e IS (Imposto Seletivo) e sem ICMS, ISS, PIS/Cofins e IPI, cujas extinções completas estão previstas para ocorrer no último dia de 2032. Com isso, eu teria a oportunidade de presenciar o que teria dado certo ou não. E voltaria ao presente levando sugestões aos nossos congressistas de hoje, tentando corrigir os (previsíveis ou não) erros de amanhã.

Quase 22h. Apenas mais um minuto para o toque grave do grande relógio do edifício D. Pedro II ser abafado pelos gritos dos trovões. Para o professor advogado-cientista, restava pouco tempo mais para últimos ajustes no Besourão Verde “Ulysses Guimarães”. Ventos galopantes aumentavam o poder da natureza, mas também a sensação de segurança: a fúria do planeta ferido deixara ruas e calçadas desertas, afastando trabalhadores e praticamente toda a bandidagem que parasita uma das regiões contraditoriamente mais perigosas do Centro do Rio de Janeiro (ali, ao lado do Comando Militar do Leste, QG do Exército brasileiro).

Poucos segundos. Doc. corre para o poste abaixo das gambiarras. Entro no Besourão. Programo a viagem: 24/01/2043 (auto-homenagem aos meus 64 anos). Ligo os motores. Cerca de 500 metros à frente, ele aperta os últimos botões da engenhoca que chama de “Torre de Comando” (um grande controle remoto com cara de celular da década de 90). Sinal de “positivo”. Acelero. Em meio a raios e trovões, o velocímetro do velho Ulysses sobe rapidamente. 50, 60, 70, 80… Tudo começa a brilhar dentro e fora do Carajás. A poucos metros do poste e da sua fiarada, vejo Doc. WT uma última vez. Seus olhos estão arregalados, quase saltam do rosto. 85, 86, 87… E um clarão atinge o edifício D. Pedro II.

Até hoje não tenho como saber, mas acredito que naquela fração de segundo, em que tive sensação de inexistência, a noite tenha virado dia nos céus cariocas.

***

Ainda estava escuro, mas já dava para perceber um pouco da claridade por detrás da montanha do Corcovado. Em poucos minutos, o Redentor e a cidade que Ele faz o seu melhor para abraçar acordariam. Como em déjà vu dos meus 18 anos, reconheci a arborizada Coelho Neto, onde as nights toscas e encachaçadas terminavam após rotineiras desventuras amorosas. Inclusive, fora depois de uma dessas que, ainda abalado pelo fiasco, decidira que trocaria o jornalismo pela advocacia. E que nessa o caminho seria o direito tributário: “Chega de ser f…”, sentenciei, usando autoargumento de autoridade na troca de uma ilusão por outra.

Por mais que a rua que levava o nome do “Príncipe dos Prosadores” ainda tivesse cara e lembrança de passado, o agora desacelerado Besourão especialmente destoava em meio a calçadas vazias de gente, mas cheias de veículos aparentemente individuais e voadores.

(Não sei se fora influência do Imposto Seletivo ou do “diferencial de competitividade” previsto na Emenda Constitucional 123 lá da minha década de 2020, mas é fato que aqueles monstrengos — misto de skate e prancha de surfe, típico de um filme dos anos 1980, cujo nome meio que não me lembro — dominavam o horizonte. Em boa parte delas, selinhos ao lado da entrada de combustível com o desenho de uma folha verde. Pelo visto, o mundo era dos biocombustíveis.)

Seja lá o que fosse, eu teria que torcer para que ainda existisse diesel naquelas duas décadas adiante do meu tempo, já que o Professor não havia conseguido adaptar nenhum outro combustível ao guerreiro Carajás 88. Do contrário, erros e acertos tributários seguiriam seus cursos, enquanto eu teria me perdido em futuro que não me pertencia.

Como combinado com Doc., levaria Ulysses a um posto ali adiante, na Pinheiro Machado, pouco depois do Estádio das Laranjeiras (com sua bela inscrição “Campeão da Libertadores 2023” e de outros anos que não consegui enxergar bem). Se esse combustível ainda existisse, poderia otimizar ao máximo minha necessariamente curta passagem por época por mim desconhecida: abasteceria o Besourão — confirmando se os tempos caóticos de tributação de combustíveis teriam mesmo ficado no passado — e compraria todo tipo de conveniência na lojinha com logotipo colorido e nome de quem não dorme (falta de consumo não seria problema para meu estudo tributário…).

Após os clássicos sete minutos de sinal vermelho, virei à direita e logo avistei a grande vogal amarela sob o forte fundo azul. Ainda que pré-histórico, tive certeza de que, se havia um lugar onde meu Carajás 88 poderia encontrar combustível até para viajar no tempo, seria “Lá”.

“Amigo, é aqui que tem diesel com incidência única, alíquota uniforme e específica, para essa belezura verde voar?”, perguntei ao senhor gordinho, com camisa quadriculada e cara desconfiada, me valendo de piadinha nerd de quem passara anos estudando e tentando entender como ICMS com cargas distintas, tributação no destino e substituição tributária para frente poderiam coexistir em um mesmo universo.

(Aqui vale outra lembrança: quando desisti de tentar compreender a origem desse Big Bang tributário, meu apoio ao regime monofásico passou a ser quase o mesmo que eu dava nas arquibancadas do Maior do Mundo ao Time de — outros — Guerreiros, como eu. Tanto que meu gol de barriga havia sido a edição da Lei Complementar nº 192, no início de 2022, que aplicara essa sistemática ao agora finado ICMS para diesel, biodiesel, gasolina, álcool anidro e GLP. Recordo-me de como esse mecanismo — previsto desde o longínquo ano de 2001 no artigo 155, § 2º, XII, ‘h’ c/c § 4º, I da CF/88 — trouxera mais simplicidade, racionalidade e transparência para o sistema tributário, com sua incidência única no produtor ou no importador, além das ditas alíquotas uniformes e específicas em todo o Brasil. De uma só vez, acabou-se com a guerra fiscal no segmento até então mais relevante financeiramente para os Estados, bem como fecharam-se as portas para os repulsivos devedores contumazes, “contribuintes” que se valiam da complexidade doida do ICMS para sonegar, violando a concorrência e toda a sociedade. Golaço também contra uma das principais fontes de receita do crime organizado e semente plantada para a reforma que traria ao país o aguardadíssimo “modelo IVA” da CBS e do IBS no ano seguinte.)

A cara de espanto do senhor era a de quem se depara às 6h da manhã de sábado com cidadão que dirige veículo com beleza questionável até para a época do lançamento e que faz pergunta retórica cuja solução qualquer criança de maternal saberia. Por mais que esperasse resposta lacônica e com sotaque caipira, o que me foi oferecido foi o melhor do sorriso carioca largado e de “arraXXXtado” linguajar, chiado e com surra de “X”:

“Irmão, não sei o que ‘tu tomou’ por aí, mas todo mundo sabe que esse negócio de tributo não é só aqui, não. Há uns 20 anos é igual em qualquer lugar…”, ensinou o improvável tributarista, ostentando ser mais conhecedor das regras fiscais que muitos especialistas da minha época. “E aí, vai de completão?”

“Sim, por favor”, respondi segundos depois, atordoado, mas feliz. Talvez o principal propósito das longas reuniões, das lives ansiosas, dos textos metafóricos e das viagens no tempo tivesse sido buscar meios de ajudar na criação de modelo tributário mais simples e transparente, justamente para que pessoas como aquele senhor pudessem exercer na plenitude sua cidadania fiscal.

Enquanto aguardava pelo fim do abastecimento, fui à lojinha e pedi de tudo: pão de queijo, refrigerante, biscoito, barra de cereais, cerveja e até cigarros. Independentemente de consumir ou não esses produtos, meu ouro ali seria a documentação fiscal, com as informações que me fizeram viajar primeiro nos estudos e, depois, no tempo.

Avisado pelo senhor da camisa quadriculada de que o tanque estava cheio, puxei a carteira para pagar ao rapaz da loja com dinheiro, mesmo sob o risco de nova desconfiança.

(Doc. e eu não tínhamos ideia se o papel-moeda existiria 20 anos no futuro, nem mesmo se o Real seguiria vivo. Mas, como seria improvável conseguirmos usar cartão de crédito com validade tão longa, não encontramos solução diferente para “concretizar” nossa série de experiências tributárias.)

Entre olhar lateral e sorriso de canto de boca, o gozador, mas simpático atendente pegou meu bolo de notas e pediu um minuto para conseguir o inesperado troco em cash.

“E não se esqueça da nota fiscal física, por favor”, ainda lhe pedi, potencializando meu risco de ser descoberto como alienígena.

Após alguns instantes, meu objeto de desejo ganhava vida, nascendo da impressora. Parece bizarro, mas estava, sim, bem nervoso: anos de trabalho seriam resumidos no pedacinho de papel que, de onde eu vinha, era em geral desprezado, embolado no meio do dinheiro na carteira, amassado junto com as compras do mercado ou mesmo jogado na lixeira mais próxima.

Ao me entregar, o tempo parou. As mãos trêmulas e o coração acelerado tinham dificuldade para acreditar no que os vibrantes e arregalados olhos lhes mostravam: lá estavam, bem à vista, discriminados todos os (altos!) valores de IBS e CBS. Calculados por fora do preço, apontavam com clareza quanto caberia de recursos à União, ao estado e ao município do Rio de Janeiro em cada uma das minhas compras. Além disso, quando havia a cobrança do IS, estava destacada, sem “pegadinhas”.

Já no caso do diesel, o documento indicava a “uniforme e específica” alíquota de CBS e IBS logo no cabeçalho, em linha com o que o senhor me dissera: “esse negócio de tributo não é só aqui não”. Não era mesmo. Pelo visto, uma geração de brasileiros nascidos em meados da década de 2020 já convivera com transparência fiscal, visualizando a cada compra quanto dela lhes custava o Estado. Tinham condições de melhor conhecer e refletir sobre sua cidadania fiscal, ponderando concordâncias e questionando discordâncias a respeito da carga tributária que suportavam. Diferença gigantesca da minha geração e das anteriores, acostumadas com a obscuridade dos “cálculos por dentro”, “da não-cumulatividade cumulativa”, “das restituições não restituídas”, “das substituições tributárias sem substituídos”, todos sintetizados naqueles cupons fiscais faz-de-conta de “valor aproximado de tributos”.

Ali em 2043 não era mais assim. A realidade tributária estava ao alcance das mãos em cada consumo. Fosse no pão de queijo, na cerveja, no diesel, no cigarro, no refrigerante. Palpável, tangível, concreta. Tanto no papeizinho colado entre os dedos, quanto na fala do amigo “frentixxxta”.

No entanto, mesmo nessa minha curta e limitada permanência, percebi que outras questões por certo geravam, no mínimo, debate social. Ao menos no Rio de Janeiro.

(Lembremos: cada estado e cada município tinham autonomia para definir suas alíquotas, em total respeito ao quase sagrado Pacto Federativo. Afinal, como ensina a vida, independência é dinheiro em caixa.)

É claro que precisaria de mais tempo e experiências naquela minha viagem épica, mas é conclusão razoavelmente simples que a soma de CBS e IBS de mais de 30% dava alguns recados:

  • Primeiro, foram confirmados alguns “temores” de 20 anos antes, de acordo com os quais a alta tributação que teríamos no consumo não seria apenas “na largada”, mas que viria para ficar por muitos anos. Afinal, ninguém quer perder arrecadação;
  • Segundo, era provável que muito dessa alta carga se daria também pelas muitas exceções postas na Constituição a bens, serviços e atividades que pagariam menos IBS/CBS lá na origem (convenhamos que nossa história ensinara, ao menos até 2023, que quem começou pagando menos, dificilmente passaria a pagar mais em duas décadas, e que quem não estava no clube do benefício, deve ter feito de tudo para a ele se associar);
  • Terceiro, o Imposto Seletivo ratificou as previsões e crescera, já que, ao menos na minha mão, estava, sim, nos cigarros e na cerveja, mas também no refrigerante, no biscoito e no diesel (sem “certos” e “errados”, não exponho aqui juízo de valor, até por que tributar bens e serviços pelo IS teria sido resultado de debate social do qual não participei; logo, apenas atesto o fato de que esse imposto “bombara”);
  • Quarto, se a tributação do consumo seguia alta, das duas uma: ou não avançamos como deveríamos em outras fontes de expressão de riqueza menos regressivas (e mais progressivas e “justas” — meu lado pueril) como renda ou patrimônio, ou sim, avançamos, mas nossa carga global estaria beirando os 50% (teríamos nos tornado Noruega, Suécia ou Dinamarca em 20 anos?).

Fosse como fosse, avanços e atenções me aguardam em 2023 para serem construídos e refletidos. Meu tempo no futuro havia acabado. Com minhas sugestões no porta-luvas de Ulysses, precisava voltar à época em que realmente poderia ajudar a fazer diferença. Aquela mesma, sinônimo de dádiva e livre-arbítrio, maior riqueza (ainda não tributada) que poderia ter. O (meu) Presente me chamava.

Assim, me despedi do atendente simpático e debochado, do “frentixxxta” tributarista e do tempo que não era o meu. Entrei no Carajás, parti para a Pinheiro Machado, acelerei e, antes da chegada ao túnel Santa Bárbara, as luzes me atingiram.

***

Mais um dia em que o despertador tocava a música tema de Rocky, um Lutador às 4h40. Procurei as luzes do Carajás 88, mas achei apenas a do celular no chão, estrategicamente distante para evitar minutos adicionais de sono. Quem me acompanhava não era Dr. WT, mas sim minha igualmente visionária (e sonada) mulher, com quem o casamento era incrivelmente ainda mais gratificante do que o que eu fizera com o Direito Tributário (orgulho de ambos). Além dela, na cabeceira, cópia de capítulo de “Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário”, do professor Ricardo Lobo Torres, minha suave leitura de véspera.

Ideias em ebulição, era hora de começar mais um dia: levantar, preparar o café e sentar de frente para o computador.

***

É raríssimo começar qualquer texto pelo título. Costumo “deixar fluir”, ver para onde a viagem do dia me leva. Mas naquela madrugada, ainda sem saber onde sonhos e realidades teriam (ou não) se esbarrado, preferi que a mistura de dúvidas desse as cartas. Afinal, a mescla de jornalista (outrora) “raiz” com tributarista Nutella curte o estágio de imaginação que metaforiza a história. Em especial naquele fim de 2023, quando a mítica reforma tributária brasileira tinha tudo para nascer.

A página em branco é sempre desafiadora, ainda mais com sua dupla evidência: de que nada foi feito, mas de que tudo pode ser. Diante dessa realidade — e é sempre importante reconhecê-la e enfrentá-la —, larguei as primeiras “tintas no papel” virtual. Nele, surgiu o seguinte:

“Enfim, uma reforma de volta para o futuro.”

A primavera – estação das flores – de meados de novembro explode de vida e, com ela, as primeiras luzes do dia Presente me fazem companhia e cortam a escuridão bem cedinho. Sob seus raios ainda tímidos, musiquinha de ortografia duvidosa, mas ritmo contagiante e “chiclete” nasceu na minha mente:

“Vamos, brasileiros, chegou a hora de que nós avancemos.”

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