Sobre a sustentação oral nos agravos regimentais no STF

25 de novembro de 2023, 11h10

Um dia desses, ao pedir que lhe fosse concedido o direito de fazer uma sustentação oral no julgamento do agravo regimental no Habeas Corpus 233.147-SP, o defensor público Esdras dos Santos Carvalho ouviu do ministro Alexandre de Moraes que “a 1ª Turma [do STF] já tem pacificado (…) que nos agravos internos não cabe sustentação oral; o Regimento Interno do Supremo tem força de lei — lei específica —, prevalecendo sobre a norma geral”. O caso se repetiu nesta quinta-feira (23/11), desta feita, no TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Mesmíssima história.

A “norma geral” a que o ministro fez alusão é a Lei Federal 8.906/1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), que prevê o cabimento de sustentação oral nos agravos regimentais contra decisão de relator, dentre outras hipóteses, nos processos de Habeas Corpus (artigo 7.º, § 2-B, VI) como era no caso do doutor Esdras, como era também no caso de anteontem, no TSE.

O posicionamento do ministro, todavia — como também o da Turma, que, segundo ele, tem pacificado a sua jurisprudência nesse sentido —, está incorreto. Primeiro porque a Lei 8.906/1994 não é lei geral na parte em que prevê o cabimento de sustentações orais. Lei geral é aquela que depende de regulamento. É a lei cujas próprias previsões não esgotam o tratamento da matéria, e fica aberta à complementação posterior de norma mais adequada para cuidar dos detalhes das suas instituições. E a lei que diz ser cabível sustentação oral em tal ou qual procedimento não está para completar-se.

Os efeitos que poderia produzir já se extraem integralmente dos seus próprios termos. O “resto” que faltaria prever, os “detalhes” nesse caso se limitariam aos modos de fazê-lo, o tempo etc, detalhes que não complementam a lei em seus efeitos, mas apenas organizam melhor a sua aplicação. Além disso, enquanto o cabimento de sustentação oral é matéria de direito processual, os pormenores de como se lhe deve dar aplicação são matéria de ordem procedimental. Sobre processo legisla o Congresso (CF, artigo 22, I). Sobre procedimento trata o tribunal. Mas jamais será dado que o tribunal, ao ministrar as regras de procedimento, contrarie ou nulifique a disposição da lei relativa ao processo.

Mas também está errado o posicionamento do ministro como da turma pelo fato de considerarem que o Regimento do Tribunal valha mais, juridicamente, do que a lei federal, por ser “norma específica.” O erro consiste em achar que a lei específica pode ser contrária à lei geral, na parte em que a regulamenta. Não pode. O Código de Processo Civil, à guisa de exemplo, prevê sustentações orais em apelações, mas não em agravos de instrumento (salvo nos casos em que se debate a concessão de tutela de urgência).

Regimento interno de tribunal nenhum — ainda que tivesse status de lei específica — poderia contrariar-lhe os termos para, invertendo os casos, permitir as sustentações orais nos agravos de instrumento e vedá-las nas apelações. O princípio segundo o qual lex specialis derogat generalis só se aplica a leis da mesma estatura hierárquica, porque na hipótese, o mesmo legislador terá previsto uma lei para casos gerais e outra para casos específicos. Quando, porém, uma competência subalterna edita norma específica contrária à que lhe é superior, não há revogação, mas ilegalidade. Ora, a Suprema Corte está todos os dias a julgar casos de leis editadas pelo Congresso contrárias à Constituição. Surpreenderia ver um dia a Corte decidir que a lei inconstitucional, na verdade, é mais específica do que a Constituição e que, por isso, nalguma parte a derrogou.

Mas há ainda uma terceira razão pela qual o raciocínio está incorreto. Mesmo que fosse a hipótese de oposição entre lei geral e lei específica, e mesmo que fosse hipótese de níveis hierárquicos equivalentes entre a Lei 8.906/1994 e o Regimento Interno do STF, ainda assim é outro o princípio de aplicação que resolveria o conflito. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) determina que “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (art. 2.º, § 1.º).” Lex posterior derogat legi priori. E o Regimento do STF, no trecho em que exclui o cabimento de sustentações orais nos “agravos” etc (artigo 131) é mais antigo do que a previsão da Lei 8.906/1994 que as permite, incluído pela Lei 14.365, de 2 de junho de 2022.

Concluir que o Regimento Interno de um Tribunal de 11 juízes não eleitos seja superior a uma lei mais nova, de maior hierarquia e de maior adequação aprovada por duas casas legislativas e sancionadas por um presidente — todos eleitos —, é botar qualquer noção de democracia e legalidade abaixo. Mas digo isso retoricamente. Todo mundo sabe que no Brasil já não se tem democracia há um bom tempo, e que a lei não serve para nada, quando estamos sob governo de juízes.

A verdade é que o direito de fazer sustentações orais é o último ato de humanidade nos processos judiciais, que hoje são todos mecânicos. Ninguém vê a cara de ninguém. Sobretudo nas cortes superiores. Falar pessoalmente aos ministros, sem que seja em despachos particulares, não muito distantes de uma conversa fiada, é o que resta de contato humano. É a última oportunidade em que se pode se certificar de que não foi um robô quem julgou até ali. O direito à sustentação oral é o que resta de efetivo no direito à ampla defesa; é o que sobrou de devido processo legal. E o que o Supremo deixa transparecer — não por todos os seus ministros, é verdade — é nada menos do que um enorme desprezo pelos advogados, desprezo pelos argumentos das partes e, em última análise, desprezo pelo due process of law.

O argumento repetido como mantra para justificar essas restrições é sempre o argumento utilitarista da produtividade. Sustentações orais atrapalham fluxo de trabalho do tribunal. Pretende-se julgar com justiça propondo-se a julgar depressa. O devido processo cede à celeridade. Ninguém se lembra, contudo, de quanto de tempo se perde lendo e escrevendo minutas, quando o processo real está em ver e ouvir os argumentos das partes. Sobretudo no STF, sessões plenárias com leituras de votos com dezenas, por vezes centenas de páginas. Quer dizer: para sentar-se no gabinete e redigir epopeias inteiras há tempo de sobra, mas para ouvir advogados… Quantos ministros não escrevem e revisam doutrinas? Quantos não são professores? Quantos não vivem em palestras, seminários, conferências, fóruns? Quantas viagens pelo Brasil afora? Quantas pelo mundo? Isso tudo toma tempo, mas são as sustentações orais nos agravos que tumultuarão os serviços do tribunal.

Não quero, nem posso negar que a Suprema Corte seja um tribunal abarrotado de processos. Tramitam ali muito mais ações e recursos do que a capacidade humana dos onze ministros pode suportar. Quando se gabam de julgar milhares de processo por ano, vangloriam-se ou de uma mentira — porque é impossível a 11 pessoas julgar milhares de processos por ano, gozando de dois recessos anuais, férias etc —, ou de uma injustiça — porque estariam a se jactar de julgamentos feitos sem qualquer critério, de conclusões alcançadas com uma passada de olho. Mas é evidente que se o número de processos não impede viagens, eventos, aulas, recessos, coquetéis, jantares, solenidades e horas de gabinete para redação de votos enormes e prolixos, tampouco deve servir de licença para diminuir o mais básico e civilizatório direito de ampla defesa.

Não é só legal; é justo e cumpre adequadamente o cânone constitucional da ampla defesa o direito à sustentação oral. Não é diferente no caso dos agravos. Principalmente no caso deles, na verdade; porque neles se pede um julgamento colegiado contra decisões de um só. É nos agravos regimentais que se restaura o espírito de tribunal.

Não escapa dessa decisão o fato de o STF, por seus ministros, limitar também o número de processos que são julgados em mesa. A maioria esmagadora dos casos fica relegada ao julgamento virtual, que ninguém sabe como, de fato, se dá. Contra essa forma de julgamento não há nada que se possa fazer, porque o pedido de destaque, único apto a salvar o processo da fossa das deliberações virtuais, só pode ser feito pelos próprios ministros, e só se acharem, eles próprios com suas consciências, que o caso tem alguma relevância. Ora, se o grosso dos agravos é julgado sem que ninguém os veja — sob o véu da virtualidade —, o que desaconselharia que o pouco que deles sobra para ser julgado em mesa pudesse prestigiar o último suspiro de humanidade dos processos judiciais?

Se o argumento da vigência do regimento interno sobre a lei não supera as objeções mais basilares de hermenêutica do direito, e se o argumento do utilitarismo resulta na conclusão absurda dos julgamentos mecanizados — e, portanto, imorais —, seria ilógico permanecer no erro de negar aos advogados o direito de fazer sustentações orais mesmo nos julgamentos de agravos regimentais. Mas lógica e virtude são coisas escassas no Poder Judiciário do nosso século.

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