O critério da decisão jurídica é uma questão de democracia
25 de novembro de 2023, 8h00
Nesta oportunidade não pretendo discutir questões filosóficas inerentes ao real e à verdade. Estou satisfeito com a dissipação de incertezas jurídicas. Afinal, já ensinava o processualista Ovídio Araújo Batista da Silva: “O processo não cuida de fatos tratados em sua materialidade, e sim de ‘fatos jurídicos’, ou fatos juridicizados. Em última análise, o que se busca no processo é o ‘significado’ a ser atribuído aos fatos” (Silva, 2005, p.272).

O regime democrático brasileiro não se deteriora apenas em razão da baixa representação política nos parlamentos em que o vínculo representante-representado encontra-se rompido por uma indiferença mútua. Deteriora-se também pela ausência de integridade e coerência jurídica das “decisões” de juízes que não compreenderam que a figura do juiz em um Estado Democrático de Direito não é a figura do Pretor (Roma antiga). Não temos aqui a “lex” e o “jus”, no sentido dualista em que cabe o texto da lei ao Parlamento e o Direito (descolado da lei) ao magistrado.
Em uma democracia constitucional a lei de forma alguma pode ser um quase direito. Para que todos estejam submetidos a lei (republicanamente) a autoridade judiciária não pode ser a própria expressão da vontade da lei. Não trocamos a irresponsabilidade política do rei absolutista pela irresponsabilidade política do magistrado. Ora, se o constitucionalismo adotou a teoria da separação de poderes (Montesquieu) não se pode admitir justamente a concentração em oficiais estatais não eleitos (juízes) de aplicar a lei, julgar e dizer o significado da lei (formular direito). Quando digo lei não estou falando no sentido do texto, mas no sentido da norma. Evidentemente a lei possui normatividade prévia anterior a judicialização, pois se assim não fosse não haveria sentido os controles prévios de constitucionalidade. A lei possui significado independentemente do que pensa o juiz da causa. Senão não seria uma lei da república, mas uma lei do magistrado.
Nessa perspetiva anti-empirismo jurídico dos juízes cito José Joaquim Gomes Canotilho: “Em primeiro lugar, os tribunais estão sujeitos a lei, de onde deriva não propriamente uma relação de hierarquia órgãos legislativos-órgãos judiciais mas a especificidade da própria função judicial: garantia, concretização e desenvolvimento do direito, revelado, em via inicial, por actos legislativos ou por actos de valor idêntico ou superior (convenções internacionais, normas comunitárias)” (CANOTILHO, 2003, p.658).
Tanto na Roma antiga quanto na fase anterior ao direito burguês pós-revolução francesa tínhamos questões curiosas. Em Roma cabia recurso das decisões dos pretores ao Imperador. Na França a função de juiz era adquirida por meio da compra e venda, e quando havia recurso “devolvia-se” a jurisdição a autoridade que vendeu o exercício da mesma. Não é por outro motivo que ainda utilizamos a expressão “efeito devolutivo” nas apelações.
Nessa toada, em uma república democrática e constitucional como é o caso brasileiro o juiz (estadual ou federal — resquício do império) possui diversas garantias que visam preservar sua imparcialidade para o julgamento da causa, não podendo usá-las para: 1) diminuir o seu ônus argumentativo quando da fundamentação de decisões (inexistência ou insuficiência jurídica); 2) substituir a decisão jurídica por uma escolha (atuação estratégica do magistrado, conforme sua consciência, vontade ou ideologia); iii) desrespeitar a lei/constituição e a jurisprudência do STF e dos Tribunais Superiores escudando-se na dita autonomia funcional/“independência”, sob pena de um deficit democrático e violação a própria hierarquia constitucional.
Some-se a isso os ditames legais de coerência e integridade (Dworkin/Streck), hoje textualmente contidos no artigo 926 do CPC, acrescentando-se, outrossim, a violação a boa-fé objetiva do qual o juiz está obrigado a observar em sua atuação processual (artigo 5 CPC). Além do dever de fundamentação que resta constitucionalizado como um dever do juiz e um direito fundamental do jurisdicionado, sendo o artigo 489, § 1º, do CPC demonstração metodológica e cogente, não uma sugestão ao magistrado.
A norma certamente não é o texto da lei, mas não pode ser aplicada de forma descolada do texto normativo (há um sentido anterior), sob pena de superinterpretação que constitui atividade que desborda do limite legítimo de atuação do magistrado. O Direito existe antes do magistrado e nenhum juiz é a fonte ou grau zero de significação do mundo ou do Direito. Há uma tradição jurídica, uma história institucional do fenômeno jurídico.
Não pretendo aqui discutir condutas ou tipos de juízes: ativistas, autocontidos, protagonistas, progressistas etc. Apenas pontuo que além da crise entre Poderes da República enfrentamos uma grave crise de constitucionalidade e legitimidade democrática no próprio Poder Judiciário em razão de forte atuação emotivista, subjetivista e relativista de juízes que geram um empirismo jurídico (ou “realismo jurídico”), mediante discricionariedade judicial (forte), incompatível com a legislação democraticamente aprovada e com o próprio Estado Democrático. Nas palavras de Lenio Streck: “A integridade é antitética ao voluntarismo, ao ativismo e à discricionariedade” (STRECK, 2016, p. 62).
Não vivemos mais nos tempos arbitrários em que o Poder Judiciário necessitava adotar leis (tidas por injustas/desumanas) tal como no regime nazista, em que o papel da técnica da ponderação (sopesamento) ganhou relevo junto ao Tribunal Constitucional Alemão após findar a Segunda Guerra Mundial. Ao passo que, também já ultrapassamos a revolução francesa em que os juízes eram membros da nobreza vinculados ao regime deposto e que o parlamento, constituído pela baixa burguesia e liderado por Robespierre, necessitava consolidar sua supremacia (significando a supremacia do novo regime político) e a vinculação plena dos juízes ao texto da lei. Acentuado posteriormente com Napoleão “O codificador”.
Vivemos em um Estado ocidental e contemporâneo, caracterizado pelo constitucionalismo democrático, em que o “poder” deve emanar do povo (conjunto de cidadãos) e que a legitimidade do Poder Judiciário advém da Constituição (julgando também em nome do povo), instrumento normativo limitador do Poder do Estado e nesta contemporaneidade limitador também do “poder do povo”, que não é absoluto (contramajoritário).
É necessário que os juízes levem o Direito a sério, assim como os parlamentares levem a política a sério. A política é fonte material do Direito, pois dela emana a lei fundada na moral geral de um povo mediante discussões e votações constantes no palco adequado — o parlamento. E da lei advém o reconhecimento jurídico das demais fontes formais do Direito. Já o Direito é o filtro da moral e das condutas humanas, sendo a atividade do juiz aplicar o Direito posto e não criar o Direito em suas decisões em um empirismo jurídico (“realismo jurídico”) descompassado com a democracia.
A lei não é apenas uma fonte do Direito. É sua principal fonte! Devemos resgatar urgentemente o que já foi um senso comum de grande segurança jurídica que acabou por gerar, inclusive, o “mito da lei” (monismo jurídico francês). A jurisprudência, por seu turno, também é uma fonte relevante que visa uniformizar entendimentos evitando, assim, a frustração do jurisdicionado que muitas vezes recorre ao Poder Judiciário com o Direito “ao seu lado”, mas é surpreendido por interpretações pessoais (e não interpessoais) do juiz de plantão. Não parece ser razoável, democrático e constitucional substituir a legítima expectativa do jurisdicionado por opiniões de um determinado juiz (pela sorte). Anoto que neste texto jurisprudência é entendida em sentido restrito. Nas palavras de Georges Abboud: “Visto de uma forma mais restrita, poderíamos considerar jurisprudência como o conjunto de decisões sobre um mesmo assunto, de um determinado Tribunal, nas quais decidiu-se em um mesmo sentido, formando uma cadeia de sentidos da qual deriva sua força da tradição” (ABBOUD, 2023, p. 107).
O magistrado deve cumprir e fazer cumprir a lei aprovada democraticamente pelo parlamento. Salvo quando, preservando a integridade e coerência do Direito, ocorrer ao menos um dos seis casos apontados por Lenio Streck: a) quando a lei for inconstitucional; b) quando for o caso de aplicação de critérios de antinomias; c) quando aplicar a interpretação conforme a constituição; d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto; e) quando declarar a inconstitucionalidade com redução de texto; f) quando deixar de aplicar uma regra jurídica em razão de um princípio jurídico. Fora isso, teremos juízes agindo de forma ilegítima, isto é, agindo “contra legem” ou aplicando leis constitucionais de forma inconstitucional, portanto estariam aplicando um “não direito”.
Registro que faço tal afirmação afastando-me conscientemente das lições do positivismo normativista de Hans Kelsen, tão prestigiado nas faculdades de Direito, que ao efetivar a separabilidade entre Direito e Moral e separar a “Ciência do Direito” do “Direito” rendeu-se a incontrolabilidade das decisões judiciais, reconhecendo os magistrados como fonte e descrevendo a validade de suas decisões mesmo quando extrapolem a própria moldura hipotética de sua teoria.
Com o devido constrangimento epistemológico não é possível reconhecer qualquer coisa que venha do judiciário como Direito (há também o não direito). Aos que dizem que vindo do judiciário a ordem deve ser cumprida, tal questão funda-se no argumento de autoridade (questão política) e não de legitimidade jurídica. Por exemplo, caso um policial armado dirija uma ordem ilegal a uma pessoa mediante constrangimento fisico ou psicológico certamente tal ordem será acatada, o que não significa que referida ordem tenha o seu acatamento em razão de sua adequação jurídica. No mesmo cenário, aquela dada ordem do policial em nada se distingue fosse um traficante promovendo a ordem ilegal em seu lugar. Em um Estado Constitucional a legitimidade não é inerente a pessoa ou órgão da qual a ordem emana, mas de sua compatibilidade ou não com o ordenamento jurídico.
Desta sorte, assim como o Congresso ou o Poder Executivo não podem prover atos inconstitucionais o Judiciário também não pode realizar determinações inconstitucionais. Na ordem constitucional os três Poderes da República estão submetidos a Constituição e as leis.
Analisando bem, sempre haverá no sistema jurídico uma resposta, ainda que esta não esteja na primeira página de um dado código. Com as incontáveis leis em vigor em nossa república as lacunas são cada vez mais raras, salvo as lacunas ideológicas lançadas pelos próprios julgadores em descontentamento pessoal com as normas postas. A valoração moral dessa resposta jurídica encontrada no sistema do Direito não cabe ao judiciário, resguardada a hipótese em que essa dada moralidade esteja incorporada ao Direito por meio da Constituição, em uma espécie de acoplamento normativo.
A discricionariedade judicial (em sentido forte), principal característica do positivismo jurídico contemporâneo, é a porta para a juristocracia (governo dos juízes) em nítida substituição de funções políticas que devem ser exercitáveis por políticos. Caso a decisão judicial deixe de ser ato de conhecimento de um Direito posto democraticamente e torna-se ato de vontade da autoridade judiciária passa, igualmente, a possuir natureza de um ato estritamente político.
Não me refiro a zonas de incertezas jurídicas, mas de teimosia judicial de reacionários que discordam do Direito e permanecem com suas opiniões, lavrando “decisões” com fundamentação jurídica insuficiente ou fundamentando em critérios não jurídicos, fazendo uso de um poder estatal para impor ao jurisdicionado sua visão de mundo.
Como bem acentuado Lenio Streck “(…) discutir as condições de possibilidade da decisão jurídica é, antes de tudo, uma questão de Democracia”. Daí a relevância da eficácia normativa dos artigos 1º, 5º, 489, § 1º e 926, todos do CPC. Afirma o artigo 5º do CPC: “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”, razão pela qual a boa-fé objetiva é norma de observância obrigatória não apenas pelas partes, mas especialmente pelo juiz. Ao aplicar a lei de forma inconstitucional ou demonstrar-se rebelde a aplicação da jurisprudência o magistrado age objetivamente em inobservância a boa-fé processual e aos ditames democráticos. Desta feita, nem toda decisão judicial é uma decisão jurídica e contra decisões fragrantemente arbitrárias há direito democrático de resistência.
A coerência, integridade e história institucional do Direito devem ser observados obrigatoriamente nos julgamentos judiciais. O Direito deve ser aplicado desprezando convicções pessoais… É o que esperamos em uma Democracia!
Referências:
ABBOUD, Georges. A jurisprudência “Dominante” e o Discurso dos Tribunais. Superinterpretação no Direito. Org. André Karan Trindade, Lenio Luiz Streck. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2023.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. 11 reimp. Coimbra: Almedina, 2003.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jeferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
MULLER, Friedrich. Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia. Tradução: Peter Naumann. 3 ed. São Paulo: Editora Max Limonada, 2003.
RIBEIRO, Darci Guimarães. O Novo Processo Civil Brasileiro: Presente e Futuro. 2 ed. Londrina, PR: Thoth, 2022.
ROUSSEAU, Dominique. Radicalizar a Democracia: Proposições para uma refundação. Tradução: Anderson Vichinkeski Teixeira. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2019.
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Verdade e Significado. Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: programa de pós-graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado. Org. ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio Luiz. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed.; São Leopoldo: UNISINOS, 2005.
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 6ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017.
______. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. 2 ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2016.
______. Compreender direito – hermenêutica. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!