Quem tem direito à revisão do Pasep?
20 de novembro de 2023, 7h10
Depois de 50 anos, vem à tona que o único banco responsável por administrar o patrimônio bilionário do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep) cometeu erro que afeta servidores — civis e militares — em todo o país. O Banco do Brasil, sortudo em administrar sozinho essa dinheirama, e evidentemente sendo comissionado pelo serviço, foi à cadeira dos réus no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Após detida análise, o tribunal constatou que o banco errou feio. No voto do ministro Herman Benjamin, relator do tema 1.150, o administrador do Pasep foi acusado de falha na prestação do serviço, saques indevidos, desfalques e má gestão dos valores, além da ausência de aplicação dos rendimentos estabelecidas pelo conselho diretor do referido programa. Por mais intrigante que seja conceber erro dessa proporção por tanto tempo, o banco estatal não apresentou singelo pedido de desculpa ou mesmo tomou providências para reparar quem foi lesado.
A decisão do STJ, festejada por muitos que vão recuperar as perdas, de fato é uma notícia muito boa. Mas nem todos poderão usufruí-la. É que a pretensão ao ressarcimento dos danos havidos em razão dos desfalques em conta individual vinculada ao Pasep se submete ao prazo prescricional decenal previsto pelo artigo 205 do Código Civil: “a prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”. Portanto, embora se trate de perdas financeiras que atravessaram gerações, iniciado na ditadura militar na década de 1970, passando pela redemocratização em 1985, Constituinte de 1988 até os dias atuais, haverá um funil para esta correção — talvez, o maior erro cometido por instituição financeira no país.
Somente quem iniciou no serviço público entre 1970 até 4 de outubro de 1988, e que tenha sacado o Pasep há menos de dez anos, poderá reivindicar as perdas da conta vinculada. A Justiça brasileira demora a uniformizar as demandas e, quando o faz, essa mesma demora deixa alijada milhares de pessoas que teriam direito, mas ficarão de fora por causa do prazo. Portanto, somente um contingente bem menor do que deveria poderá reclamar a reparação da má gestão de valores depositados em contas individuais do fundo Pasep, exemplificada nos seguintes atos: (a) falha de serviço decorrente da inobservância das normas pelo Banco do Brasil; (b) dos parâmetros determinados e fixados pelo Conselho Diretor na gestão do Fundo para a correção monetária; e (c) aplicação de juros e de rendimentos (d) e perfectibilização de saques no saldo credor de participantes.
Se o prazo para recuperar as perdas é inflexível, o escopo dos legitimados a terem recomposição do saldo é mais abrangente. O perfil dos interessados na revisão do Pasep vai desde empregados públicos — a exemplo de funcionários dos Correios, Petrobrás, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal — a servidores públicos no âmbito federal, estadual e municipal. Além dos civis, os militares também podem se enquadrar. Profissionais das Forças Armadas, a exemplo do Exército, da Marinha e da Aeronáutica que estejam na reserva, bem como os militares estaduais (policiais militares, bombeiros militares e brigada militar) também foram alcançados pela má gestão do Pasep. Na hipótese de tais servidores terem falecido, os herdeiros, desde que observados os requisitos acima, também poderão reivindicar a revisão do Pasep.
Outro ponto que merece destaque na revisão é o termo inicial para a contagem do prazo prescricional. O STJ definiu que o início da contagem do prazo de dez anos é o dia em que o titular, comprovadamente, toma ciência dos desfalques realizados na conta individual vinculada ao Pasep. E quando é isso? A partir de quando o servidor tomou conhecimento da decisão do STJ, do recolhimento das últimas contribuições para o Pasep em 1988 ou do saque do Pasep logo após a aposentadoria? A corte cidadã definiu que o início da contagem é o dia em que o titular toma ciência dos desfalques na conta individual vinculada ao Pasep.
Embora a decisão do STJ não tenha sido muito clara nesse tocante, em várias decisões judiciais vem se adotando que tal data seria a do próprio saque, quando ali o aposentado “em tese” teria condições de se deparar oficialmente com o valor pago a menor. É verdade que o aposentado, leigo, não tem condições técnicas de questionar se o valor apresentado respeita os rendimentos fixados pelo conselho diretor do referido programa. Essa dificuldade em se dar conta da aplicação incorreta dos índices, aliada ao pensamento coletivo de que o banco estava agindo de boa fé na execução do encargo confiado por todos esses anos, talvez justifique a demora em o problema ser levado ao crivo do Judiciário e, por consequência, ocorrer a condenação por má gestão.
Tardiamente constatado, o erro do Pasep se limitará apenas ao ressarcimento financeiro. O STJ entendeu que esse tipo de deslize bancário não acarreta condenação do Banco do Brasil S/A ao pagamento de indenização por danos morais. Eventuais saques/desfalques indevidos, no entender da corte, não passam de mero dissabor, que não tem o condão de resultar em abalo ao psíquico do aposentado. Em outras palavras, o fato de o banco ter por mais de 50 anos gerido com erro o patrimônio coletivo, ocasionando aperto financeiro para muitos e enriquecimento ilícito em favor da instituição, e não ter ressarcido amigavelmente nenhum servidor, já que todos terão que procurar a Justiça para buscar a revisão, não enseja dano moral.
Paradoxalmente, o mesmo STJ decidiu no tema repetitivo 466 que as “instituições bancárias respondem objetivamente pelos danos causados por fraudes ou delitos praticados por terceiros — como, por exemplo, abertura de conta corrente ou recebimento de empréstimos mediante fraude ou utilização de documentos falsos —, porquanto tal responsabilidade decorre do risco do empreendimento, caracterizando-se como fortuito interno”.
Ora, se o banco responde por atos de terceiros que causem lesão financeira ao correntista, o que dizer da lesão financeira causada por funcionários da própria gestão? Se o banco responde por terceiros que violam o a segurança do patrimônio dos clientes, com mais razão o banco deveria ser condenado se ele mesmo deu azo ao prejuízo financeiro em larga escala. Principalmente pelo fato de que as diferenças de correção têm grande amplitude, chegando em alguns casos a aumentar em cinquenta vezes o valor pago pelo banco.
Outra contradição é que a jurisprudência do STJ foi construída no fato de que a indenização por danos morais por saque indevido em conta corrente pode ser mitigada, se posteriormente o valor desviado for restituído. No caso do Pasep, o Banco do Brasil não esboçou até a presente data qualquer interesse em devolver o dinheiro, nem tampouco de fazê-lo de forma amigável. Assim, nem tão cedo ocorrerá restituição espontânea dos valores, obrigando aposentados a procurarem seus direitos na justiça.
Portanto, ao afastar o dano moral no caso dos erros do Pasep, o STJ foi na contramão do que ele mesmo vem decidindo acerca de temas, como a responsabilidade objetiva do banco em responder por atos de terceiros e do risco do empreendimento bancário (REsp 1199782/PR), do saque fraudulento ser suficiente para justificar dano moral (AgRg no AREsp n. 395.426/DF, AgRg no REsp 1237261/RO e AgRg no REsp 1137577/RS), ou pela perspectiva de que o dano moral não é devido se o banco restituir o valor discutido (AgInt no AREsp 1622003/SP e AgInt no AREsp 1407637/RS), o que não vem ocorrendo no caso do Pasep.
O Banco do Brasil S/A, sociedade de economia mista com controle acionário do governo federal, integra a administração pública indireta e foi escolhido para assumir a responsabilidade de gestão do Pasep justamente por ser o banco estatal que é. E, portanto, deveria primar pelo princípio da legalidade e seguir estritamente a observância das normas jurídicas, sobretudo aquelas que preservam e reajustam o patrimônio salarial de milhares de servidores públicos civis e militares em todo o país. Em vez de zelar com rigor pelo patrimônio alheio, já que a execução desse encargo foi feita de forma onerosa, o que se observou foi um dos maiores erros protagonizado por banco público brasileiro.
Primeira instituição financeira do Brasil, idealizada pelo Rei D. João VI no ano de 1808, o Banco do Brasil em toda sua longevidade se depara com uma condenação judicial que evidencia um dos maiores erros de sua existência, se não for o maior erro que se tem notícia em tantos anos de atuação, cometido contra milhares de brasileiros. Inobstante, não se viu um pronunciamento da instituição financeira se retratando publicamente. Sem desculpas, sem dano moral, sem restituição espontânea do Pasep.
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