Opinião

Standard probatório e racismo em processos penais

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  • é defensor público no Rio Grande do Sul.

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  • Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Criminologia e Direito Público. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Defensor Público no Estado do Rio Grande do Sul. Idealizador do Projeto Defensoria das Famílias em Caxias do Sul no âmbito do qual se elaborou a Cartilha Cidadã: a Defensoria Pública e as Famílias e o Guia Prático do Estagiário. Autor de livros e artigos nos campos do Direito e da Psicanálise.

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20 de novembro de 2023, 6h06

Logo após o término dos debates, o professor Aury Lopes Júnior, com sua reconhecida argúcia crítica, perguntou aos debatedores sobre a relação entre racismo e prova penal. Antes de organizar as ideias para construir uma resposta, houve a necessidade de recordar a frase-chave da apresentação cujo tema era o racismo estrutural: “Quem somos, de onde viemos e por onde vamos?”, escrita pelo mestre Kabengele Munanga.[i]

As teorias e os conceitos raciais devem ser cuidadosamente articulados com as categorias jurídicas, sob pena de o “por onde vamos” tornar-se um labirinto sem saída, talvez um caminhar em círculos, ou pior, um coro de vozes bem-intencionadas, mas desprovidas de eco em nosso sistema de justiça criminal, que bem expressa pela violência oficializada as formas de imposição da branquitude brasileira: encarceramento, letalidade policial e homicídios contra a população negra.

A pergunta do professor Aury, que não teme submeter o processo penal à necessária crítica constitucional em um país adoecido pelo aprisionamento desmedido e estruturais violações de direitos e garantias constitucionais, possui um grau de complexidade que nos obriga à transversalidade jurídica, histórica e sociológica.

No que concerne ao percurso histórico, Silvia Hunold Lara, quando trata da repressão penal aos abusos senhoriais no século XVIII, destaca que determinado projeto de lei “não admitia que o escravo pudesse testemunhar contra seu senhor”.[ii] Lara também trata da apuração da morte do escravizado Manoel, “achado enforcado num ramo baixo de uma ingazeira, pendurado pelo baraço e com os pés no chão, presos por grilhões”. Apesar de o auto de exame de corpo de delito descrever ferimentos típicos de chicotadas nas regiões lombares, o caso foi encerrado como suicídio.[iii]

Nesse ponto, já é possível dizer que o Brasil, desde os primórdios coloniais, possui um regime metódico de produção e validação de verdades que nada mais é do que a expressão das dinâmicas em que se estabelecem as relações de poder, que, por aqui, se estruturam a partir de processos de racialização, ou seja, da tecnologia usada para demarcar o lugar no negro na sociedade, seja na unidade produtiva escravocrata ou, depois, liberto, sobretudo em espaços marginalizados. E são verdades, como observa Foucault, que “não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos do poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque essas produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que nos unem”.[iv]

Como princípio estruturante das relações sociais, os racismos — sempre plurais — desvelam hierarquias de verdades, onde o negro, subalternizado, é, historicamente, um “não-cidadão”. O corpo negro, abordado indiscriminadamente, move-se pelas avenidas e fronteiras internas despido da proteção constitucional da presunção da inocência, princípio que exige das instituições policiais e judiciais um dever de tratamento não restritivo do status libertatis. E esse estado de coisas normalizado busca legitimação nas construções em torno da categoria de “fundada suspeita”,[v] que, no imaginário policial, posiciona o negro em um quadro paranoico de suspeição generalizada, desde o século XIX, quando ele se distanciou da unidade produtiva escravocrata para ocupar lugares públicos.

O negro categorizado como suspeito é, então, submetido à efêmera interação social com a ordem posta, a abordagem policial configurando o exemplo máximo dessa interação. O “parado, polícia!” descortina táticas de controle social construídas sob a égide da economia política do castigo — tecnologias de castigo (tortura) alicerçavam o regime de produção escravocrata.

O corpo negro também é violentamente submetido ao controle de gestos (“mão na cabeça”, “vira de costas”, “afasta as pernas”, “vai pra parede” e “busca pessoal”) sob a motivação de que a ingerência corporal busca a localização de armas e drogas. A suspeição tem de ser confirmada, o aparato repressivo trabalha para isso em nome da estabilização da relação de opressão entre raças e classes.

A inconstitucional suspeição generalizada ainda subsidia a distribuição de etiquetas nas práticas policiais e judiciais. Se não há in dubio pro reo, o corpo negro é capturado em tipos penais e em sentenças condenatórias produtoras de verdades que dispensam provas para além da dúvida razoável. Exemplo claro é o do tráfico de drogas, cujo combate só se mostra comprovadamente eficiente se admitimos que seu objetivo é trancafiar o maior número possível de pretos e pardos já marginalizados.

Na ausência de critérios legais claros e objetivos, bem como do necessário controle judicial, os agentes que atuam no policiamento ostensivo, aos quais é autorizada a prisão de pessoas sem investigação prévia, desenvolveram, por exemplo, estratégias permeadas por ampla discricionariedade para a construção do traficante de drogas. Duas ou três frases mágicas perante um juiz — também na denúncia — (“local conhecido como ponto de venda de drogas”, “denúncia anônima”, “tirocínio policial”, “apreensão de dinheiro fracionado”) são suficientes para redefinir o destino das pessoas presas em flagrante delito por tráfico de drogas.

Assim, se “o racismo estrutura relações hierárquicas entre grupos sociais por meio de um processo a partir do qual um grupo consegue estabelecer uma relação de superioridade sobre outro”,[vi] o negro no banco dos réus é vítima de um regime de produção de verdades que autoriza condenações sem provas idôneas e lícitas as quais se mostrem efetivamente capazes de superar a dúvida razoável. A palavra do negro, engolfada no racismo estrutural, é incapaz de produzir verdades, até porque ao corpo negro, sob a lógica racista, não é dado o direito de testemunhar contra aqueles que assumiram os serviços de açoites e herdaram o poder escravocrata de controlar o negro.

O racismo estrutural rebaixa o standard probatório, de modo que o cenário atual demonstra, como regra, a existência de condenações sem investigações policiais, havendo estranha preponderância de um único tipo penal, que é o tráfico de drogas, na justificação do aprisionamento de pessoas, em que a seleção é marcada pela prática do perfilamento racial (abordagens policiais que consideram a raça como requisito preponderante).

No critério que estabelece a prova além da dúvida razoável, “a hipótese precisa ter uma probabilidade bastante elevada de ocorrência e, além disso, as demais hipóteses alternativas não podem ser aceitáveis”.[vii] Todavia, ao negro não é permitido formular hipóteses defensivas no regime de produção de verdades balizado pelo racismo estrutural, o crime é ser negro, como explica Sueli Carneiro: “a cor opera como metáfora de um crime de origem da qual a cor é uma espécie de prova, marca ou sinal que justifica essa presunção de culpa. Para Foucault, ‘ninguém é suspeito impunemente’, ou seja, a culpa presumida pelo a priori cromático desdobra-se em punição a priori, preventiva e educativa”. [viii] Um a priori cromático que reproduz as relações de poder e de classes da origem escravista de um país que ainda não decidiu ter futuro.

Temos, portanto, que as práticas repressivas, da abordagem ao encarceramento, não deixam dúvidas de que o racismo rege a produção probatória no âmbito do processo penal. No Brasil, se o sistema da prova tarifada não é o que formalmente vigora, a práxis nos demonstra que, substancialmente, a prova, que amiúde retrata (in)verdades policialescas apressadamente ratificadas nas instâncias judiciais, é valorada, recordando-se de Frantz Fanon, com o peso da melanina.

Concluindo, em termos penais e processuais penais, a única verdade que é dada ao negro produzir é a prova da própria culpa, especialmente a do tornar-se negro e assim contrariar os ideais de branquitude regentes das relações de poder nas quais lhe é unicamente reservado o papel de oprimido.


[i] Qual é o lugar do negro no Brasil depois de 200 anos de independência? In: SANTOS, Hélio. A resistência negra ao projeto de exclusão racial: Brasil 200 anos (1822-2022). São Paulo: Jandaíra, 2022, p. 239.

[ii] LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 48.

[iii] Idem ibidem, p. 62.

[iv] FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002, p. 224.

[v] “Art. 244.  A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.”

[vi] MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.

[vii] Vasconcellos, V. G. de (2020). Standard probatório para condenação e dúvida razoável no processo penal: análise das possíveis contribuições ao ordenamento brasileiro. Revista Direito GV, 16(2), e1961. https://doi.org/10.1590/2317-6172201961

[viii] CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

Autores

  • é defensor público no Rio Grande do Sul, dirigente do Núcleo de Defesa Criminal, mestre em Ciências Sociais pela UFSM e especialista em Criminologia pelo ICPC-PR.

  • Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Criminologia e Direito Público. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Defensor Público no Estado do Rio Grande do Sul. Idealizador do Projeto Defensoria das Famílias em Caxias do Sul, no âmbito do qual se elaborou a Cartilha Cidadã: a Defensoria Pública e as Famílias e o Guia Prático do Estagiário. Autor de livros e artigos nos campos do Direito e da Psicanálise.

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