RIFs por requisição no Coaf e os problemas dogmáticos do passado
20 de novembro de 2023, 8h00
Há aproximadamente 20 anos, e muito antes das afamadas operações conhecidas como mensalão e “lava jato”, enfrentávamos no país uma de suas fases mais difíceis, desde a promulgação da Constituição de 1988: a protagonizada pelos órgãos de persecução penal que, na apuração de possíveis práticas delitivas muitas vezes resultantes de superficiais denúncias anônimas, se valiam de interpretações extensivas da Lei 9296/1996 — que dispõe sobre a interceptação telefônica e período de sua manutenção -, assim como da Lei 9613/1998 — que dispõe sobre lavagem ou ocultação de bens, e que apontava como “crime” antecedente, naquela época, a organização criminosa, embora não tipificada em nenhuma lei penal —, para obtenção de mandados de busca e apreensão e no mesmo período para obtenção da então temida prisão temporária, disposta na Lei nº 7.960/1989.
Como hoje sabemos, não houve preocupação com a melhor e mais apropriada interpretação dogmática dessa legislação: bastava uma denúncia anônima para instaurar um inquérito policial pela prática genérica do crime de lavagem de dinheiro, tendo muitas vezes como antecedente o “crime” de organização criminosa, para, em seguida, conseguir o deferimento de uma interceptação telefônica, que era muitas vezes renovada, sucessiva e automaticamente, sem qualquer fundamentação idônea, por meses, para, ao final, e com fundamento no que era parcialmente degravado depois de muito tempo de escuta, dar cumprimento aos mandados de busca e apreensão e de prisão temporária, obtidos em primeiro grau de jurisdição.

A ausência de interpretação dogmática mais apropriada, em especial da Lei 9613/1998, naquela época, ensejou o deferimento de mandados de busca e apreensão inclusive em escritórios de advocacia, embora sem qualquer demonstração da participação efetiva de advogados em operações de suposta lavagem de dinheiro que eram, apenas, ainda investigadas e atribuídas a determinados clientes, que não se confundiam com seus constituintes; foram inúmeras operações seguindo essa mesma temática, até que a OAB conseguisse reforçar o comando de proteção da inviolabilidade do local e instrumentos de trabalho dos advogados, com a aprovação da Lei 11.767/2008, e, sobretudo, até que os Tribunais Superiores, instados a se manifestar, começassem a dar os contornos da interpretação mais cuidadosa para instauração de inquéritos policias com fundamento em denúncias anônimas, assim como a dar os contornos da interpretação mais cuidadosa da Lei 9296/1996 — em especial sobre o período de autorização legal para a interceptação telefônica de investigados —, e, por fim, e principalmente, os contornos da interpretação mais cuidadosa da Lei 9613/1998 — em especial sobre a ausência de tipificação do “crime” antecedente apontado na época, no artigo 1º, inciso VII, como organização criminosa.
No que se refere à instauração de inquéritos policiais com fundamento em denúncias anônimas — e devemos estender isso a todo e qualquer procedimento investigativo, tal como os promovidos pelo Ministério Público nos denominados Procedimentos Investigativos Criminais —, a jurisprudência, de um modo geral, se consolidou no sentido de que é necessário, antes da formalização de uma investigação motivada apenas por essas circunstâncias, o que se classificou como sendo diligências preliminares, aptas e idôneas para sustentar a fundamentação fática, concreta e adequada para a instauração do inquérito policial.
No que se refere aos sucessivos períodos de autorização de interceptação telefônica disposta na Lei 9.296/1996, a jurisprudência, de um modo geral, praticamente se consolidou no sentido de que o prazo legal de quinze dias pode ser renovado, enquanto perdurar a necessidade da medida, desde que respeitados rígidos requisitos que de um modo geral impõem concreta e fundamentada decisão judicial para essa finalidade, e em cada hipotética renovação, sendo categoricamente ilegais as motivações padronizadas ou reproduções de modelos genéricos, como se viu em demasia e repetidamente naquele período, época em que os órgãos de persecução penal concentravam seus esforços quase que unicamente nessa medida investigativa.
E no que se referia à legitimidade de investigações decorrentes de possível prática do crime de lavagem de dinheiro, com a redação antiga da Lei 9613/1998, que previa como “crime” antecedente a organização criminosa, a jurisprudência, de um modo geral, praticamente também vinha se consolidando no sentido de que não seria possível sustentar uma investigação ou mesmo processo com essa formatação, na medida em que não havia tipificação de organização criminosa, e isso, portanto, por si só, afrontava o princípio basilar da legalidade, circunstância, entretanto, que acabou sendo superada com o advento da Lei 12.683/2021, que extinguiu o rol taxativo dos crimes antecedentes na Lei de Lavagem de Dinheiro, e o advento da Lei 12.850/2013, que tipificou, concretamente, ainda que de forma deficiente, o que hoje se conhece como organização criminosa.
Ocorre, entretanto, que, até que isso tudo fosse de fato concretizado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, inúmeros inquéritos policiais foram instaurados; inúmeras pessoas foram presas; inúmeras denúncias foram oferecidas; e inúmeros processos foram iniciados, para, logo depois, serem seguidamente anulados. Se por um lado preservou-se, ainda que tardiamente, a legalidade, por outro dissipou-se, na sociedade, o sentimento de aparente impunidade. E some-se a essa conjuntura, ainda, o significativo prejuízo financeiro suportado pelo próprio Estado, com o custo disponibilizado para cobrir grandes operações que foram sendo paulatinamente anuladas pelos Tribunais Superiores.
Nesse sentido, e retomando-se ao período atual em que vivemos, com a desordenada requisição de Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs), pelos órgãos de persecução penal, diretamente, no Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), prenuncia-se, como no passado longínquo, e também no mais recente, com a própria operação Lava Jato, mais uma fase difícil para todos que trabalham com o Direito Penal.
Embora o STJ, nos RHCs 83.233-SP e 14707-PA, e o STF, no RE 1.055.941-SP, tenham enfrentado uma parte desse tema, não houve, até o momento, concreta e fundamentada apreciação sobre essa especificidade, o que na prática tem ensejado, em toda e qualquer investigação, mesmo que de mera e hipotética prática de contravenção penal, igualmente a atribuição genérica de lavagem de dinheiro prevista na Lei 9.613/1998, para obtenção de imediata remessa de requisição de RIFs ao Coaf.
O tema é sensível e demanda urgente posicionamento bem especifico dos Tribunais Superiores, na medida em que embora a Constituição Federal não tenha indicado reserva de jurisdição para essa finalidade, demandando, especificamente, autorização judicial apenas para os casos de expedição de mandados de prisão, de mandados busca e apreensão e interceptação telefônica e telemática, o Poder Judiciário, por vezes, já estendeu a exigência de autorização judicial também para acesso aos dados bancários e fiscais, tendo, entretanto, atualmente, se posicionado no sentido de que isso não seria necessário, resta imperioso decidir sobre a legalidade de os órgãos de persecução penal buscarem, diretamente, no COAF, os RIFs por meio de requisição.
O Coaf vem se fortalecendo a cada ano, e deve seguir com o aprimoramento de sua função. E isso passa, também, pelo controle de legalidade na difusão de informações sobre toda e qualquer pessoa, seja diretamente investigada, tal como identificada nas requisições de RIFs promovidos pelos órgãos de persecução penal, seja indiretamente apontada, na grande maioria das vezes apenas por ter realizado alguma transação que nada tem a ver com o espoco do fato investigado.
O amplo espectro de informações atualmente reunidas pelo Coaf deve servir para específicas finalidades, de modo que ainda que se possa defender a necessidade de os órgãos de persecução penal buscarem esses dados por meio de pedidos, encomendados, de RIFs, diretamente no Coaf, isso definitivamente não pode ser realizado sem rigoroso controle para preservação de todo sistema.
E parte da manifestação do ministro Dias Tofoli, no RE 1.055.941-SP, enfatiza bem o problema: (…) “pode não ser na forma de requisição, mas faz na forma de requerimento. E, em 3 anos, foram 1.165. Quatorze deles, especificamente, feitos pela Procuradoria-Geral da República. Requerimentos de Ministério Público estaduais: 2.820. As (sic) 6.000 RIFs que existem envolveriam as tais 600 mil pessoas físicas e jurídicas, pois cada RIF tem umas 100 pessoas envolvidas, 100 CNPJ ou 100 CPF.
Vejam, os ministérios públicos estaduais requereram 2.880 e receberam, de ofício, 2.300, ou seja, os ministérios públicos estaduais requereram mais do que receberam de ofício. RIF encaminhados por requerimentos da PF (Polícia Federal) é recordista — : 3.211. Praticamente a metade dos RIFs a PF recebeu por requerimento próprio. RIF encaminhados de ofício à Polícia Federal: 2.845. Ou seja, a PF recebeu menos de ofício e requereu mais por moto-próprio (sic). São alguns dados que são importantes. E olha que, para chegar a receber esses dados, ministro Celso, ministro Marco Aurélio, foi necessário dar uma decisão bastante dura (…)”.
A ausência de parâmetros sobre esse tema tem resultado em circunstâncias inusitadas, como por exemplo o indeferimento de pedido de acesso ao próprio RIF pelos advogados de pessoas intimadas em procedimentos penais, sob a justificativa de que essas informações seriam sigilosas e de manuseio exclusivo dos órgãos de persecução penal. Na mesma conjuntura, já se vê também decisões judiciais, ainda que pontuais, indicando a nulidade de prova oriunda de RIFs juntados sem qualquer cuidado e demonstração de sua fonte originária pelos órgãos de persecução penal.
Os erros dogmáticos do passado tiveram grande repercussão no país, de modo que repetir isso de novo, agora sob esse novo formato, de nada servirá para o fortalecimento das instituições, nem muito menos para o aperfeiçoamento da interpretação dogmática sobre os reflexos da Lei de Lavagem de Dinheiro e a contribuição que o Coaf pode dar para o eficaz — e legal — combate do crime organizado; nessa conjuntura, a autorização judicial para requisição de RIFs diretamente no Coaf, pelos órgãos de persecução penal, parece salutar, e certamente materializará a segurança jurídica que todos que trabalham com o Direito Penal precisam nesse momento.
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