A Fazenda Pública em juízo e o divã epistêmico
18 de novembro de 2023, 8h00
As partes, em um conceito geral e tradicional do processo civil, não possuem a obrigação normativa de imparcialidade, devendo, basicamente, atuar dentro das regras e observar os princípios processuais-constitucionais, como os expostos, por exemplo, pelos artigos 1º ao 11 do CPC.
No campo dos procedimentos regidos direta e indiretamente pelo Código de Processo Civil, a Fazenda Pública possui, em detrimento dos demais atores processuais, um tratamento especial, chegando a ser discutido se tal tratamento corresponde a prerrogativas ou privilégios [1]. Não é esse o objeto do texto.
A condição de custus legis dos representantes estatais parece, num primeiro plano, ter sua imparcialidade indiscutível — ao menos no campo teórico. É “fora” dessa característica que as divergências ou incondições [2] podem ser mais frequentes, principalmente na esfera processual.
Algumas dessas questões, a partir disso, podem ser ventiladas: qual o nível de (im)parcialidade da Fazenda Pública em juízo, enquanto parte? Essa exigência deve ser a mesma que a do Estado, enquanto julgador? Poderíamos ter, em um mesmo ambiente (processual) dois corpos do rei?
Em um contexto de senso comum teórico [3], a utilização de certos fundamentos jurídicos possui o condão de potencializar arbitrariedades e atuações discricionárias dos agentes estatais que, fundados na tradicional “condição de parte” no processo, podem se valer discricionariamente de argumentos que justifiquem uma atuação parcial — fundados, inclusive, em subterfúgios morais.
Um exemplo dessa utilização é o interesse público. Esse argumento, mal utilizado, pode se tornar uma “expressão que sofre de ‘anemia significativa’, nela ‘cabendo qualquer coisa’, mormente se for a partir do ‘princípio’ da razoabilidade, álibi para a prática de todo e qualquer pragmatismo” [4]. Soma-se a isso a ode ao consequencialismo disposto no artigo 20 da Lindb.
Por estas razões é que compreender as condições de possibilidade e os limites da atuação da Fazenda Pública em juízo, se faz necessário. Essa modalidade de atuação processual, envolto pelo chamado Direito Processual Público [5], precisa ser posta em uma espécie de divã epistêmico [6].
Um ponto de partida, para início desse debate, pode ser a compreensão de elementos advindos da teoria da decisão, em especial da Crítica Hermenêutica do Direito, desenvolvida por Lenio Streck.
A partir da revolução do constitucionalismo que impulsionou a autonomia do Direito [7], e a revolução protagonizada pelo giro ontológico-linguístico [8], um dos pontos nevrálgicos da teoria do Direito inserida no Estado Democrático de Direito tem sido o debate sobe as condições e possibilidades que o intérprete possui para encontrar o que Streck define como “uma resposta que esteja adequada ao locus de sentido fundante, isto é, a Constituição” [9].
É justamente no campo da teoria da decisão judicial que essa discussão é desenvolvida. Para a Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) que apresenta uma teoria da decisão no cenário brasileiro, a decisão constitucionalmente adequada é aplicattio [10], ou seja, parte da superação da cisão do ato interpretativo em conhecimento, interpretação e aplicação, pois entende que “a interpretação do Direito é um ato de ‘integração’, cuja base é o círculo hermenêutico (o todo deve ser entendido pela parte, e a parte só adquire sentido pelo todo)” [11].
Streck é didático em sua proposta de decisão adequada à Constituição:
A decisão (resposta) estará adequada na medida em que for respeitada, em maior grau, a autonomia do Direito (que se supõe produzido democraticamente), evitada a discricionariedade (além da abolição de qualquer atitude arbitrária) e respeitada a coerência e a integridade do Direito, a partir de uma detalhada fundamentação [12].
É impossível exigir dos autores processuais representantes do poder público na condição de parte, uma fundamentação detalhada — capaz de ser submetida à controle —, em todos os atos, até porque, grande parte da atuação não é necessariamente escrita. Em contrapartida, as demais características da proposta de Streck podem perfeitamente ser absorvidas para o contexto de atuação, numa espécie de atuação constitucionalmente adequada.
A discussão sobre o agir estatal, enquanto parte processual, deve, nesta quadra da história, passar pelo respeito à autonomia do Direito, a observância da coerência e integridade do ordenamento jurídico, além de ser pautada em uma agir anti-discricionário.
Investigar as condições de possibilidade da atuação do Estado, como parte, pode representar uma das formas de encontrar um sentido autêntico [13] para desvelar esse fenômeno e estabelecer parâmetros para o controle do agir da Fazenda Pública em juízo, a fim da sua adequação à Constituição.
Para agravar os problemas, além do problema do fisco há a questão da advocacia pública. Como recebem honorários das causas que vencem, é possível que se comportem como advocacia privada, colocando o devedor contribuinte como inimigo do Estado. No fundo, há que se perguntar: qual é o papel do estado e de suas instituições? Pajear contra o cidadão? Voltamos a uma velha dicotomia pré-estado constitucional em que estado era contraposto ao cidadão? Há que pensar sobre isso.
O debate é inicial e nada definitivo. O fato é que as prerrogativas da Fazenda Pública em juízo refletem a sua responsabilidade perante o ordenamento jurídico, e suas respostas, ainda que nem sempre definitivas na atuação processual, são, ao fim e ao cabo, respostas do Estado aos particulares.
[1] Para tanto, ver: BUENO, Cássio Scarpinella. Manual do Poder Público em Juízo. São Paulo: SaraivaJur, 2022; CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 10. ed. São Paulo: Dialética, 2012.; RODRIGUES, Marco Antonio. A Fazenda Pública no Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016; CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados especiais cíveis estaduais, federais e da fazenda pública: uma abordagem crítica. 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[2] Ao passo que existem questões impeditivas (incondições) do Direito Processual como um todo tais quais são a prescrição e a decadência, por exemplo, existem incondições específicas tais quais são a parcialidade e a suspeição (no caso do juiz). Em face disso é que se pretende investigar quais seriam as questões impeditivas do próprio agir da Fazenda Pública enquanto parte. Sobre as incondições, ver QUARELLI, Vinícius. Incondições do Direito e o risco de retorno ao senso comum. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 16 de outubro de 2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-out-16/diario-classe-incondicoes-direito-risco-eterno-retorno-senso-comum2>. Acesso em: 21 jul. 2022.
[3] WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito – vol. I: interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994. p. 13.
[4] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 667.
[5] CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados especiais cíveis estaduais, federais e da fazenda pública: uma abordagem crítica. 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[6] O termo divã epistêmico é uma adaptação pensada a partir do texto de Lenio Streck, no qual o autor questiona a atuação do Ministério Público, transportada, aqui, para os atores processuais enquadrados como Fazenda Pública. Para tanto, ver: STRECK, Lenio Luiz. O MP e o divã: “quem sou?” “Ou tenho os pés de Curupira?”. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 09 de junho de 2022. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2022-jun-09/senso-incomum-mp-diva-quem-sou-ou-tenho-pes-curupira>. Acesso em: 22 out. 2022.
[7] “Mais do que sustentáculo do Estado Democrático de Direito, a preservação do acentuado grau de autonomia conquistado pelo Direito é a sua própria condição de possibilidade, unindo conteudisticamente, a visão interna e a visão externa do Direito. Trata-se, também, de uma ‘garantia contra o poder contramajoritário’ (segundo Guastini, as denominadas ‘garantias contra o Poder Judiciário’), abarcando o princípio de legalidade na jurisdição (que, no Estado Democrático de Direito, passa a ser o princípio da constitucionalidade)”. (STRECK, Lenio Luiz. Verdade, Op. Cit. p. 650).
[8] Sobre o giro ontológico-linguístico, ver: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento; Casa do Direito, 2020. p. 123-126; e OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
[9] STRECK, Lenio Luiz. Verdade, Op. Cit. p. 653.
[10] Sobre o conceito de aplicattio, ver: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento; Casa do Direito, 2020. p. 21-24.
[11] STRECK, Lenio Luiz. Verdade, Op. Cit. 653-654.
[12] Ibid. p. 654.
[13] Quanto a expressão inautêntica, utilizar-se-á no mesmo sentido adotado por Luis Henrique Braga Madalena, a qual “deve ser considerada em seu sentido hermenêutico, ou seja, a partir que posto por Heidegger, quando tratou de existência inautêntica (Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 3 ed. Tradução por Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002). e Gadamer ao tratar da tradição inautêntica (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. 2 ed. Tradução por Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002). Em Heidegger, a questão da existência autêntica, que impede a fixação do sujeito em um projeto inautêntico, resta vinculada à questão do ser-para-a-morte. A morte é o único evento de que não se pode fugir, ou seja, é a ‘possibilidade’ que torna todas as demais impossíveis. Ainda em Heidegger, a existência autêntica consiste na aceitação da própria finitude, quando o sujeito aceita a singularidade da morte como inexorável, não de maneira intelectiva, mas pelo sentido de angústia. Já a existência inautêntica é a tentativa de fugir da angústia provocada da morte por meio de uma vida ‘banal’, visando apenas a preocupação com êxito, sucesso, enquanto futuro, esquecendo-se da mundaneidade. Em Gadamer, na esteira do que desenvolvido por Heidegger, entende-se ser muito difícil a compreensão do sentido da experiência, que acaba por ser substituída por outra característica mais ‘adequada’, donde exsurgem os pré-juízos inautênticos, que acabam por produzir uma tradição inautêntica, levando os verdadeiros prejuízos, conforme aponta Streck. A partir do momento em que se olvida a finitude (Heidegger) e vê-se possível a apreensão de todo o conhecimento, ou seja, sua entificação, não mais se está falando em experiência. A partir do momento que se deixa de perguntar, deixa-se de adentrar em novas experiências, a partir do que se mergulha em uma tradição inautêntica”. (MADALENA, Luis Henrique. Uma teoria da Discricionariedade Administrativa. 2. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p. 79).
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