MP: da meta constitucional à realidade — será possível?
17 de novembro de 2023, 8h00
No dizer de Marcelo Goulart, ao Ministério Público cabe “a tarefa de definir e participar de ações político-jurídicas modificadoras da realidade, objetivando a construção do projeto constitucional de democracia” [1].

Levando-se em conta as formas sociais (modos relacionais constituintes das interações sociais, objetificando-as) que estruturam a reprodução do capitalismo e são o núcleo da sua sociabilidade, tudo e todos são mercadorias. Nesse contexto, as forças contratuais unirão os sujeitos, passando a ser o liame entre os que trocam as mercadorias (inclusive a mercadoria força de trabalho). Imprescindível as formas políticas e jurídicas que constituirão tais contratos, nascendo assim, os sujeitos de direito. O direito proporcionará juridicidade às subjetividades, assegurando a legalidade nos vínculos de troca. Com tal dinâmica, o capitalismo, que é um modo de produção de conflito e crise, necessita de uma instituição pretensamente mediadora, possibilitadora de uma paz social, na medida em que tem como missão a garantia dos direitos fundamentais.[2]
O Ministério Público seria esta instituição, com relevante papel definido no artigo 127, da Constituição da República de 1988. De fato, em uma síntese das expressões utilizadas pela doutrina, encontram-se as seguintes atuações esperadas: modificar a realidade; construir o projeto democrático; estar acessível às demandas da sociedade; agente transformador; concretizar os direitos e fins sociais e valores fundamentais da sociedade; defender os interesses de relevância social; promover valores democráticos e ser a voz do cidadão.
Mas, segundo Sadek, o Ministério Público brasileiro não passou “dos preceitos à realidade” [3]. E a prática dos cotidianos dos sistemas de justiça criminal e juvenil demonstra que a crítica se faz realista e que uma necessidade urgente de reflexão da instituição acerca dos caminhos que precisa tomar caso queira, efetivamente, ocupar a função relevante que a Constituição da República e parte da doutrina lhe atribuem, deve ser feita.
Na temática da chamada “guerra às drogas”, o Ministério Público atua em centenas de processos que chegam aos montes em seus gabinetes, diariamente. Uma breve leitura desses autos apresenta um cenário que merece grave atenção, eis que vai na contramão do que a doutrina aponta como mister dos membros e membras ministeriais.
Na seara da Justiça Criminal, pequenos traficantes, muitas vezes flagrados com porções de drogas menores que um sachê de sal, são duramente punidos com penas desproporcionais ou, quando absolvidos ou condenados com penas em regime aberto, merecem recurso por parte do Ministério Público, em um claro controle social da população jovem, hipossuficiente e, em sua maioria, negra. Ao contrário, apreensões de grande quantidade de entorpecentes, em que os acusados possuem poder aquisitivo elevado, recebem outro tratamento, o que se dá, principalmente, em razão da advocacia privada e cara que se dedica com afinco ao caso e argumenta com veemência quanto às provas trazidas aos autos nesta espécie de crime, geralmente duvidosas e fracas. Enquanto, há indicadores no sentido de que “o mercado mundial de drogas gire em torno de US$ 320 bilhões por ano” [4], as prisões nacionais estão repletas de homens e mulheres que, em verdade, nada mais são do que marionetes no grande negócio da mercancia de entorpecentes.
Neste ponto, não se pode esquecer que as prisões são espaço de violações de direitos humanos, já reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal [5]. Por unanimidade dos votos, neste mês de outubro de 2023, o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de um cenário de grave violação massiva de direitos, em que são negados às pessoas privadas de liberdade, por exemplo, os direitos à dignidade e integridade física, alimentação, higiene, saúde, estudo e trabalho, comprometendo a capacidade do sistema de cumprir os fins de garantir a segurança pública e “ressocializar” o indivíduo.
No que se refere ao sistema de justiça juvenil, adolescentes, também em sua maioria negros e pobres, enfrentam procedimentos de ato infracional que podem levar — e levam — à privação de sua liberdade, por acusações de tráfico de entorpecentes.
Importante registrar que tais acusações, em quase cem por cento dos casos, são embasadas exclusivamente na prova testemunhal dos mesmos policiais envolvidos na diligência, meramente repetida em juízo. Importante registrar também que estes adolescentes se apresentam nas audiências em condições de vulnerabilidade e miséria e que, em quase todas as vezes, necessitam de amparo de políticas públicas socioassistenciais. Muito embora a Organização Internacional do Trabalho (OIT), há décadas, alerte para o fato de que o envolvimento de crianças e adolescentes em tráfico de entorpecentes seja uma das piores formas de trabalho infantil, muito pouco se tem feito no enfrentamento a esta realidade [6].
Fato é que tanto a Justiça Criminal quanto a Justiça Juvenil se debruçam, todos os dias, sob uma parcela da sociedade brasileira atravessada por questões de raça, classe e condições econômicas, hiper — representada nos processos judiciais e nas estatísticas criminais.
No embate com o pequeno varejo do cotidiano dos becos e das biqueiras das comunidades periféricas, o grande negócio das drogas permanece ileso, enquanto unidades prisionais e socioeducativas são preenchidas somente por seres humanos que integram um mesmo recorte social. Jovens negros, periféricos e vulnerabilizados migram do sistema socioeducativo para o sistema prisional, da liberdade para a prisão, da vida para a morte, no jogo de poder alimentado pelo sistema de justiça. Certidões de antecedentes infracionais, ao arrepio das determinações de direitos humanos internacionais, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Constituição da República, são utilizadas pelo sistema de justiça para a rotulagem de adolescentes e jovens adultos como perigosos traficantes de drogas e, assim, amparar decisões de privação de liberdade. A contradição se repete: será que a figura do sujeito de direito vem garantindo a individualidade e a dignidade de todas e todos [7]?
Em várias situações tal contradição se escancara, no entanto, o alerta da OIT parece ser uma das mais contundentes. Ilona Szabó e Melina Risso iniciam o capítulo sobre as Drogas, em seu festejado livro sobre Segurança Pública, com a seguinte sentença: “Independentemente de sermos liberais ou conservadores, quando o assunto é drogas, todos temos os mesmos objetivos. Queremos proteger nossas crianças e adolescentes(…)” [8].
Enquanto acreditamos em uma história ideal, a história real acontece e, infelizmente, ela é negada. Exemplo disto é a difícil tarefa de se defender/entender no meio jurídico o trabalho infanto-juvenil que vem ocorrendo diuturnamente na engrenagem do tráfico de drogas que, nada mais nada menos, segue a lógica capitalista de proprietários do modo de produção e trabalhadores, onde a força de trabalho é forma mercadoria que, contudo, ao chegarem nos gabinetes do Judiciário e do MP, na maioria das vezes, perdem, na prática (ou na história real), o seu papel de sujeito de direito, na medida em que o sistema de justiça acaba alimentando, rotulando e os colocando, em alguns casos, inclusive, em risco absoluto [9].
Ocupando um lugar nesta engrenagem, o Ministério Público, se contribuir para este cenário de coisas, não atuará para a construção de um projeto democrático, transformando realidades e emancipando jovens vulnerabilizados, como deseja a Constituição da República e a doutrina. O Ministério Público surge numa sociedade de crise como o agente distinto de todas as partes (mas também é parte, em uma verdadeira relação interna e externa fragmentada), com a missão constitucional de minimizar os impactos desastrosos da exploração de uma parcela da sociedade (artigo 127 da CF).
Contudo, como instituição materializada pela forma política vem sendo a garantidora da manutenção da reprodução social tal qual ela está hoje plasmada [10].
Integrantes de uma instituição que deveria ser catalisadora dos objetivos constitucionais de uma sociedade livre, democrática, plural, estão, na verdade, impregnados com os mesmos estereótipos, preconceitos e ideais de senso comum que afligem o ser humano em sua individualidade [11].
Para sermos e ocuparmos, efetivamente, o lugar de agente de transformação social, resta a questão: seremos capazes de romper com as amarras da subjetividade maculada que nos constitui?
[1] GOULART, Marcelo Pedroso. Princípios Institucionais do Ministério Público: a necessária revisão constitucional da unidade institucional e da independência funcional. MP-MG Jurídico, Belo Horizonte, Ano III, n.14, p. 10-14, outubro/novembro/dezembro 2008.
[2] Temas desenvolvidos nas obras de autoria do jurista, filósofo e professor da USP, Alysson Leandro Mascaro, Estado e Forma Política, Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro e Crise e Golpe.
[3] SADEK, Maria Tereza. Ministério Público: A Construção de uma Nova Instituição. In: OLIVEN, G.R, RIDENTI, M., BRANDÃO, G.M. (orgs.). A Constituição de 1988 na vida brasileira. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores: AMPOCS, 2008.
[4] SZABÓ, Ilona; RISSO, Melina. Segurança Pública para virar o jogo. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
[5] ADPF 347 – arguição de descumprimento de preceito fundamental proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, que pede que o STF declare a existência de um estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro, tendo em vista o cenário de grave e massiva violação de direitos fundamentais dos presos. Pede, ainda, a determinação de um conjunto de medidas para reduzir a superlotação das prisões e promover a melhoria das condições de encarceramento.
[6] OIT – Organização Internacional do Trabalho. Convenções nº 182 e nº 190.
[7] Em sua obra assim expõe Mascaro: “Trata-se de uma história ideal e fantasiosa, como também é a narrativa de que o sujeito de direito e o direito subjetivo surgiram como garantidores da individualidade e da dignidade humana.” (MASCARO, A. L. B. Crise e golpe. São Paulo: Boitempo, 2018, p.227)
[8] Ob cit., p.85.
[9] Inúmeros membros e membras do Judiciário, Promotores e Procuradores de Justiça, da República e do Trabalho lutam, incessantemente, por demandas reais do povo brasileiro. Aqui não se trata de competência ou desalinho com a missão proposta pela Constituição de 88 de defesa dos interesses de relevância social. Cuida-se da impossibilidade, diante do potente e impartível vínculo entre direito e capitalismo, posto que “o direito se estrutura a partir de um talhe igual ao das contradições da sociedade da mercadoria, pois a exploração capitalista se arma exatamente a partir da subjetividade jurídica”. (Crise e Golpe. São Paulo: Boitempo, 2018, p.205).
[10] Mascaro, em sua obra Crise e Golpe (São Paulo: Boitempo, 2018, p. 228), faz importantes reflexões acerca do tema quanto ao Poder Judiciário.
[11] Edson Baeta, Procurador de Justiça de Minas Gerais, em seu TCC (Inovações Institucionais Do Ministério Público: há legitimidade na utilização de quaisquer estratégias para formular políticas públicas e intervir em agendas políticas?) faz uma análise recente e importante acerca da postura do MP pós-constituição de 88.
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