Opinião

A inconvencionalidade da tese fixada no RE 776.823

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17 de novembro de 2023, 20h45

Discutiu-se no Recurso Extraordinário 776.823 se há ou não a necessidade de trânsito em julgado da condenação por crime doloso para caracterização da falta grave.

O órgão ministerial afirma não haver violação ao “princípio da não culpabilidade” caracterizar como falta grave a prática de fato definido como crime doloso mesmo que não haja sentença condenatória transitada em julgado. Argumenta-se que o cometimento de crime doloso poderá ser considerado para caracterização de falta grave, uma vez que a punição no âmbito administrativo decorreria da própria Lei 7.210/1984 (Lei de Execução Penal). Nessa linha de raciocínio, o Ministério Público defendeu que se tratava, na verdade, de formas autônomas e independentes de punição.

Dessa maneira, o Ministério Público postulou em seu recurso que o acordão recorrido aplicou de má forma o princípio da presunção de inocência previsto no inciso LVII do artigo 5º da Constituição da República de 1988.

Assim, o Supremo Tribunal Federal no dia 7/12/2020 fixou a seguinte tese “O reconhecimento de falta grave consistente na prática de fato definido como crime doloso no curso da execução penal dispensa o trânsito em julgado da condenação criminal no juízo do conhecimento, desde que a apuração do ilícito disciplinar ocorra com observância do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, podendo a instrução em sede executiva ser suprida por sentença criminal condenatória que verse sobre a materialidade, a autoria e as circunstâncias do crime correspondente à falta grave”.

Contrário à tese fixada, é importante ressaltar que dispensar o trânsito em julgado da sentença penal condenatória para o reconhecimento de falta grave trata-se de uma interpretação restritiva do princípio constitucional da presunção de inocência incompatível com a ordem constitucional vigente. Como explicitado pelas professoras Janaina Matida e Rachel Herdy (2016):

“A regra conhecida como “presunção de inocência” não se ampara numa regularidade observável empiricamente segundo a qual a maior parte dos acusados são, em realidade, inocentes; seu objetivo é o de expressar a preferência moral institucionalizada de tornar as condenações mais difíceis do que as absolvições, pois, entre os resultados equivocados “condenar inocentes” e “absolver culpados”, o segundo tipo representa uma injustiça menos pior do que o primeiro”.

Dessa forma, o “princípio da presunção de inocência” é uma verdadeira regra de tratamento do acusado e um dever de comportamento do magistrado. Tal regra é uma preferência moral estabelecida no rol de direito fundamentais, não podendo ser afastada por interpretação subversiva. As autoras (2016) continuam:

“A regra que estabelece que ‘Todo acusado deve ser presumido inocente até que se prove o contrário’ encaixa-se com perfeição no esquema oferecido pelas regras de ônus às inferências probatórias normativas do julgador. Isso porque, apesar de que o arquiteto do sistema jurídico tenha empregado a terminologia das presunções, a regra que determina que o fato “inocência” deve ser tomado como verdadeiro para fins de decisão carece de qualquer fato que possa ser apontado como fato básico. Inexiste, nessa situação, um fato que convém ser provado pela parte beneficiada pela regra, a partir do qual se possa reconstruir uma inferência rumo ao fato a ser presumido”.

Nesse contexto, é notório admitir que o cometimento de crime doloso sem trânsito em julgado da decisão caracterize falta grave contraria frontalmente o dever de tratar o acusado como inocente até que se prove o contrário. Isso porque irá considerar que a pessoa em cumprimento de pena é autora de um fato sem que se tenha havido o devido processo legal e o respectivo trânsito em julgado.

Para além do debate de constitucionalidade, menciona-se a inconvencionalidade do entendimento do Ministério Público sobre a questão. Isso porque a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em diversas situações, afirmou que tanto os textos dos Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos quanto a sua jurisprudência compõem o parâmetro convencional que deve ser observado pelos Estados-Membros (Opinião Consultiva número 21/2014).

Nesse sentido, o artigo 8.2 da Convenção Americana de Direito Humanos (CADH) que expressa de forma clara que ninguém poderá considerado culpado enquanto não se comprove legalmente sua culpa não pode ser afastado pelo Poder Judiciário dos Estados que assinaram e ratificaram a CADH.

Ainda, demonstra-se flagrante tratamento desigual entre a pessoa que cumpre pena e aquela que não cumpre. Isso porque caso aceitássemos que o apenado sofresse consequência de uma conduta tida como crime antes do trânsito em julgado estaríamos tratando-o de forma diversa das pessoas que não estão em cumprimento de pena. Vejamos o que Guilherme de Souza Nucci escreve sobre a impossibilidade de discriminação do apenado:

“Portanto, a lei ordinária não tem a menor necessidade de repetir o óbvio. Aliás, o art. 3.º, caput, também já previu que ao condenado e ao internado são assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. E não haveria a menor possibilidade, pois seria inconstitucional, de se estabelecer em sentença ou lei a discriminação a pessoas condenadas criminalmente (2018, página 28).”

Nessa esteira, é importante lembrar entendimento fixado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal nas Ações Declaratória de Constitucionalidade 43 e 44 que fortalece ainda mais o caráter protetivo imposto pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição da República [1]. Na decisão, ressalta-se o posicionamento do ministro Dias Toffoli em que o mesmo afirma ser possível verificar três normas no princípio da presunção de inocência: (1) norma de tratamento, (2) norma de juízo e (3) norma probatória, assim sendo:

“Em sua mais relevante projeção como norma de tratamento, a presunção de inocência implica a vedação de medidas cautelares pessoais automáticas ou obrigatórias, isto é, que decorram, por si sós, da existência de uma imputação e, por essa razão, importem em verdadeira antecipação de pena.”

Em tal ação constitucional, o STF entendeu que o artigo 283 do Código de Processo Penal é compatível com a Constituição uma vez que este condiciona a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da decisão penal condenatória. É dizer, a regra da presunção de inocência deve imperar mesmo havendo decisão condenatória, seja ela de primeiro ou segundo grau, desde que não tenha ocorrido o trânsito em julgado. Nas palavras do ministro Dias Toffoli,

“(…) a execução provisória da pena, por tratar o imputado como culpado e configurar punição antecipada, violaria a presunção de inocência como “norma de tratamento”, bem como a expressa disposição do art. 283 do Código de Processo Penal.”

 Nesse diapasão, nota-se que se o princípio da presunção de inocência implica afirmar que até mesmo aqueles com sentença/ acordão ainda não transitado em julgado devem ser tratados como não culpados, maior razão resta, portanto, para que haja impossibilidade de reconhecimento de fato tido como crime doloso como falta grave antes do devido processo legal e consequentemente o trânsito em julgado da decisão. Tal comportamento representaria violação mais escancarada ao princípio até então trabalhado.

Assim, não é proporcional a sanção disciplinar com base na mera prática de fato definido como crime doloso, uma vez que isso provocaria o deslocamento da intervenção punitiva estatal do momento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória para o momento da ação supostamente delitiva. Haveria, portanto, mitigação da segurança jurídica e intensificando a força da fluidez de um juízo de probabilidade.

Ressalta-se que o reconhecimento de falta grave em razão de novo crime representa um enorme encargo ao sentenciado, por isso que a própria lei federal (Lei 7.210/1984) se ocupa de definir exaustivamente o que seria falta grave, delegando apenas para legislação local especificar quais seriam as faltas leves e médias. Segue algumas consequências do cometimento de falta grave:

  1. cumprimento de punição via administrativa, com o isolamento de até trinta dias; [2]
  2. o réu será regredido de regime e terá o reinício da contagem de prazo para fins de progressão de regime no processo em que já cumpre pena; [3]
  3.  o cometimento de falta grave nos últimos 12 meses impede o livramento condicional; [4]
  4. pena restritiva de direitos pode ser convertida a pena privativa de liberdade; [5]
  5. revoga as saídas temporárias; [6]
  6. revoga até 1/3 do tempo remido; [7]
  7. pode sujeitar o condenado ao Regime de Disciplinar Diferenciado (RDD); [8]

É dizer, a caracterização da falta grave representa uma verdadeira barreira para apenado atingir o status de liberdade novamente. Dessa forma, é preciso que haja cautela para o seu reconhecimento. Diante de todas as consequências que estão em jogo, nada mais adequado que se sirva do devido processo legal, previsto no Código de Processo Penal, onde é assegurado ao acusado defesa técnica, ampla defesa e contraditório, juiz natural e outras garantias para definir se o fato imputado foi cometido e se é caracterizado como crime doloso.

Dessa forma, permitir que o reconhecimento da falta grave seja por fato tido como crime sem que haja o trânsito em julgado da decisão penal condenatória implica dizer que o Estado brasileiro promove a flexibilização do prolongamento das penas, sobretudo aquelas privativas de liberdade. Sobre o tema cita-se trecho da dissertação de mestrado de Ana Luiza Pinheiro Flauzinha:

“Do outro lado dessa ciranda estão os excluídos com suas práticas e estereótipos demonizados. Na direção desse setor o sistema penal lança todo o seu aparato e edita leis como a dos crimes hediondos, que eleva penas e impede a progressão de regimes (Lei nº 8.072 de 25 de julho de 1990) e que impede a concessão de liberdade provisória e a apelação em liberdade nos casos de crime organizado (Lei nº 9.034 de 3 de março de 1995), para citar apenas alguns dispositivos.

Assim, enquanto para o primeiro segmento deve-se evitar a prisão a qualquer custo, para o segundo deve-se construí-la como possibilidade, prolongando ao máximo a permanência do infrator no estabelecimento” (2017, página 101/102).

Somado a esse forte viés neoliberal-encarcerador do sistema punitivo brasileiro, que nada mais é que um problema do controle do tempo livre na revolução do capital videofinanceiro (Malagutti, página 115, 1995), vivencia-se um contexto de extrema insalubridade nos sistemas penitenciários em todo o país. Como exemplo, cita-se a Ação de Controle Concentrado de Constitucionalidade (ADPF 347/ DF), protocolado pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), na qual há como pedido o reconhecimento da figura do “Estado de Coisas Inconstitucional” relativamente ao sistema penitenciário brasileiro e a adoção de providências estruturais em face de lesões a preceitos fundamentais dos presos.

Nessa esteira, a tese de doutoramento do professor Carlos Alexandre de Azevedo Campos conclui:

“Primeiramente, o sistema prisional brasileiro revela violação massiva e generalizada de direitos fundamentais dos presos quanto à dignidade, higidez física e integridade psíquica. A superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que inobservância pelo Estado da ordem jurídica correspondente, configuram tratamento desumano, degradante, cruel, ultrajante e indigno a pessoas que encontram-se sob sua custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas; os presos tornam-se “lixo digno” do pior tratamento possível, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre. Como disse o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, os presídios brasileiros são ‘masmorras medievais’, ocasionando, segundo Daniel Sarmento, ‘a mais grave questão de direitos humanos do Brasil contemporâneo’ (2015).”

Nessa perspectiva, considerando os princípios da presunção de inocência/ não-culpabilidade, ampla defesa e contraditório como verdadeiros orientadores de resolução da controvérsia em questão, deve-se priorizar a máxima proteção da pessoa em cumprimento de pena em detrimento da celeridade de aplicação da sanção administrativa. Somado a isso, o entendimento que melhor respeita os tratados internacionais de direitos humanos, tutelando de forma mais ampla a dignidade da pessoa humana é aquele que garante que o indivíduo só poderá ser considerado culpado após o devido processo legal e superveniente trânsito em julgado da decisão penal condenatória.

Não deve haver, portanto, espaço para flexibilização de garantias e direitos fundamentais, sobretudo no contexto penitenciário brasileiro abordado nas ações constitucionais supramencionadas e em momento de superencarceramento. Por fim, cita-se Angela Davis, ativista política, sobre a oposição radical ao complexo prisional e seu apelo a que todos tenhamos solidariedade com essas pessoas em situação de cárcere, vejamos:

“A oposição radical ao complexo industrual-prisonal global vê o movimento antiprisional como um meio vital para expandir o terreno no qual a busca pela democracia possa se desdobrar. (…) ele exige a abolição da prisão como forma dominante de punição, mas ao mesmo tempo reconhece a necessidade de solidariedade genuína para com os milhões de homens, mulheres e crianças que estão atrás das grades” (página 112, 202)

REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Ação Declaratória de Constitucionalidade 54 e 44, J. 07/11/2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Arguição de Preceito Fundamental 347, J. 09/09/2015.

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Da Inconstitucionalidade por Omissão ao “Estado de Coisas Inconstitucional”. Rio de Janeiro, 2015.

DAVIS, Angela. Estarão as Prisões Obsoletas? 5º Edição. Editora Difel. Rio de Janeiro, 2020.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: o Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro. 2º Edição. Editora Brado Negro. Brasília, 2017.

MALAGUTI, Vera. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. 2º Edição. Editora Revan. Rio de Janeiro, 2012.

MATIDA, Janaina; HERDY, Rachel. As inferências probatórias: compromisso epistémicos, normativos e interpretativos. Epistemologias Críticas do Direito (edição José Ricardo Cunha). Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2016, p. 209-237.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Execução Penal1º Edição. Editora Forense. Rio de Janeiro, 2018.


[1] LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

[2] Artigo 53, IV da LEP;

[3] Artigo 112, 6º da LEP;

[4] Artigo 83, III, b) do Código Penal;

[5] Artigo 44, §4º do Código Penal;

[6] Artigo 125 da LEP;

[7] Artigo 127 da LEP;

[8] Artigo 52 da LEP;

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