Como a ausência de consenso político pode se deslocar para a arena do consenso judicial
13 de novembro de 2023, 16h08
Que a legislação precisa sempre buscar sua atualização, senão no texto, ao menos na interpretação, para que esteja em consonância ao mundo da vida, isso já não é novidade. Faz parte de um sistema democrático o processo legal, tendo na figura do Estado um ejetor de normas, visando regular condutas humanas e, com isso, traduzir-se no exercício de direitos e cumprimento de deveres.
A teoria tripartite de Montesquieu buscou operacionalizar a potestade estatal de modo que seus órgãos encontrassem um equilíbrio no exercício de suas competências, evitando-se, dessa forma, que todo o poder ficasse centrado nas mãos de uma única pessoa, em plena oposição ao modelo absolutista que figurou por anos a fio na história. A esse sistema dotou-se de freios e contrapesos, traduzidos na divisão de atribuições de cada um de seus poderes: ao Legislativo competiria, originariamente, a elaboração das leis, ao Executivo, executar os planos de governo dentro das quatro linhas do ordenamento jurídico e ao Judiciário competiria julgar as lides que lhe fossem trazidas.
Tudo isso é bastante basilar, mas, atualmente, o checkand balances vem sintomatizando alguns problemas funcionais que se enraízam profundamente em nossa sociedade e que precisam ser enfrentados a fim de que não estejamos diante de uma representatividade de aparências.
Para melhor compreender a razão desta carga crítica, a qual atribui uma distribuição de aparências nas competências entre os três órgãos do Estado, parto da premissa de que em algumas questões de elevado grau de polêmica e de possíveis repercussões negativas perante a opinião pública, o Legislativo tem adotado uma posição de duplo risco: 1) ou se queda, estrategicamente, silente, deixando o encargo ao Judiciário que, não raras vezes, é acusado de ativista, ainda que tal manobra possa, de fato, trazer o embrião do risco de um sério desequilíbrio de atuações, ou, 2) adota posição de auto sobrevivência, mesmo que a atitude não condiga ao funcionamento sistêmico de uma democracia, reservando, novamente, ao Judiciário o endosso ou o expurgo normativo mediante reconhecimento de antijuridicidade.
Tal premissa se fundamenta no fato de que a representatividade partidária deveria seguir a lógica de uma tradução proporcional às parcelas sociais de toda carga axiológica e ideológica que tais eleitores representam sob a sigla da legenda atuante no Parlamento. Ocorre, entretanto, que a arena de disputas políticas tem encontrado um terreno espinhoso tanto interna, quanto externamente. Sob a ótica interna, passamos por aquilo que LaPalombara e Weiner (1966, p. 13-14) denominam de crises e cargas, ou seja, “uma crise ocorre em decorrência do fato de que as elites políticas estabelecidas não querem ou não são hábeis para lidar com isso de modo a inibir o estabelecimento de organizações políticas de oposição”, ou, em outras palavras, para que um partido tenha um mínimo de oposição, ele deve abarcar um maior número de interesses em termos de eleitorado possível, revestindo-se no denominado modelo de partido catch-all.
Se internamente esta maior amplitude busca resolver uma crise gerada pelo aumento de identidades (e oposições, portanto) no âmbito social, por outra e externamente, cria-se a carga no sistema representativo, modelando o padrão e a evolução que os próprios partidos tomam, evitando-se, sobretudo em períodos de intensa polarização política, uma tomada de decisões que possam desagradar parcelas significativas deste eleitorado.
Resta, deste modo, a alternativa de não se desagradar gregos e nem troianos, e o Parlamento não encara temas sensíveis e que urgem normatização, tal como o aborto de feto anencefálico ou o lobbying, ou pior, quando encaram tais temas, acabam por trazer grandes retrocessos, qual a proibição do casamento homoafetivo, por acreditarem que a maioria do seu eleitorado assim o deseje, sufocando a compreensão de que uma democracia não é uma ditadura de maiorias, conforme já alertara Alexis de Tocqueville e, novamente, não dando vazão à representatividade de grupos minorizados.
Tais omissões no ordenamento jurídico desaguam em mandados de injução ou ações diretas de inconstitucionalidade (por omissão ou não), de modo que o consenso que deveria se estabelecer e se traduzir em letra de leialinhada ao espírito inclusivo de nossa Constituição acaba saindo da arena parlamentar e ganhando o debate judicial. Não se repassa, com isso, apenas uma incumbência estatal de colmatação tutelar, repassa-se o sintoma de uma representatividade incompleta.
Ademais, em conjunto à omissão estratégica, há sintomas de uso da competência normativa para sobrevivência das siglas partidárias. Em decorrência do esfacelamento deliberativoque era a força motriz para seu modo de agir, as agremiações voltaram-se mais para uma atuação entranhada às bases estatais e menos preocupada com a esfera social. Isso, todavia, não implica dizer que estejam indiferentes à opinião pública e nem, tampouco, que os frutos de sua atuação não agreguem em termos de benefícios à sociedade, mas em uma compreensão heurística, os partidos políticos correm o sério risco de atuar muito mais no seio estatal, buscando em seus recursos e instituições a garantia de longevidade, do que no poder da representatividade, perante a sociedade. Um argumento que corrobora tal constatação é a presença de coalizações cujas alianças parlamentares se voltam mais à garantiade reciprocidade de favores, deixando de serem concorrentes para serem parceiras.
Quiçá o exemplo mais emblemático desta percepção seja a PEC 9/2023, a qual não permitia aplicação de sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução e recolhimento de valores, multa ou suspensão do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça nas eleições de 2022 e anteriores.
Essa ampla anistia, não bastasse ir na contramão das expectativas de um fortalecimento representativo, ainda denota este hiato refletido na premissa de duplo risco de atuação que apontamos, porquanto a autodefesa que se vale do processo legislativo feito ao arrepio constitucional, mais uma vez, bateria nas portas do Judiciário para ser ter sua antijuridicidade reconhecida.
Chego ao ponto que pretendia: quando a arena de debates políticos aponta um mal funcionamento, o sistema de freios e contrapesos é ativado e a decisão estatal é deslocada para a seara do Judiciário. A este não cabe o non liquet e a decisão deve ser exarada. Obviamente que lacunas demandam completitude e se ela não veio pelo processo legal, virá pelo processo decisório e motivado de uma sentença ou um acórdão. Se a isso damos o nome de ativismo, mais importante seria analisar as causas da necessidade de colmatação.
Concordo que a premissa do duplo risco de atuação de uma representatividade insuficiente não seja a regra. O legislativo merece o reconhecimento em boas leis que saem de intensos debates. Mas há tempos temos visto o Judiciário sendo acusado de ser legislador e vemos páginas e mais páginas gastas com críticas e defesas desta postura. Pretendi, aqui, antes disso, revelar este fenômeno como um sintoma, seja de um modelo representativo insuficiente, seja de um modelo partidário em crise e que precisa, em se tratando de um sistema, encontrar respostas para dar à sociedade.
Já dizia Tolstoi que o único fim dos Tribunais é o de manter a sociedade em seu estado atual, discordo em parte, parece-me que o fim dos Tribunais tem sido mais o de viabilizar à sociedade algum estado atual e nesta tarefa, mais se assemelha à Atlas carregando o mundo nas costas. É passado o tempo de encararmos que os legitimados à produção normativa não são os julgadores, mas nosso parlamento, eles sim, escolhidos pelo voto popular e cuja coragem para tal mister é mais do que nunca demandada. Enquanto isso, o Judiciário usa dos recursos que tem para sanar omissões e esquecimentos. Agora, se tais decisões refletem ou não a expectativa social, ou se são as melhores em termos democráticos, é um risco que se corre quando os eleitos restam silentes.
Referências
LaPALOMBARA, Joseph & WEINER, Myron. 1966. In: “The origin and development of political parties”. In: LaPALOMBARA, Joseph & WEINER, Myron (orgs.). Political parties and political development. New Jersey: Princeton University Press, 1966, p. 13-14.
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