Punitive damages no Brasil: evolução da legislação civil e da técnica hermenêutica?
10 de novembro de 2023, 6h00
Bruno Miragem afirma que, em função do desenvolvimento da sociedade com o transcurso do tempo, há a necessidade de evolução, nos limites das técnicas hermenêuticas, da legislação civil (Miragem, 2023, pág. 02)
Em vigor desde 2003, o Código Civil brasileiro é motivo de debate constante, sofre críticas de doutrinadores e juristas que o consideram desatualizado em algumas áreas.
Nas contendas sobre a responsabilidade civil assevera-se que ela se amolda, em todo o tempo, ao direito obrigacional partindo da proposição de que o ato ilícito gera no indivíduo-autor a obrigação de reparar o dano, patrimonial e moral. Mas, surge na esteira da evolução novas teorias, novas proposições que levam ao questionamento sobre a possibilidade, ou não, de se sair de um campo onde o dano moral tem apenas um caráter compensatório e caminhar para a punição do ofensor e a prevenção do ilícito. Porém, não há no Código Civil brasileiro previsão expressa de indenização com caráter punitivo. Além disso, o artigo 944 do mesmo diploma legal estabelece que “a indenização se mede pela extensão do dano”. Mais recentemente, floresce na seara jurídica o questionamento se a indenização pode ser tratada como instrumento hábil à punição do agente causador do dano, tendo este, por exemplo, por meio de produção de prova clara, atuado imbuído de dolo, má-fé ou culpa grave.

Analisando a evolução do direito civil, no que tange à interpretação legal, doutrinária e jurisprudencial da responsabilidade civil, inicialmente observa-se que, dentro da visão clássica subjetiva, conforme escreve Carlos Roberto Gonçalves, ela está sedimentada em três pressupostos: dano, culpa do autor do dano e nexo de causalidade entre o fato culposo e o dano. Os três justificam a indenização (Gonçalves, 2020, pág. 41).
Há outra vertente assentada na legislação civil atual, expressada no Código Civil de 2002, na Constituição de 1988 e na legislação do consumidor que é a previsão da responsabilidade objetiva, sem a necessária comprovação da culpa, quando o ofensor deve responder por prejuízos causados a terceiros independentemente da existência de culpa, indenizando-o.
Mas, surge a dúvida: Há, ou não, a possibilidade da indenização punitiva, do instituto dos punitive damages, como nomeado nos Estados Unidos? (Andrade, 2009, pág.186)
Os punitive damages, o Código Civil brasileiro e a sua aplicação
A indenização punitiva ou punitive damages, ou também chamada teoria do valor do desestímulo, tem como função a punição do ofensor que cometeu o ilícito por procedimento insultuoso, além de servir de arquétipo para situações futuras e semelhantes.
“O instituto dos punitive damages, ou indenização punitiva, é um mecanismo indenizatório típico da Common Law. Trata-se, em um conceito breve, de uma indenização conferida com intuito de punir o autor de algum ilícito por sua conduta ultrajante e dissuadir o ofensor e o restante da comunidade de condutas similares no futuro” (WALKER, 2018, pág. 170).
A concessão de indenizações punitivas se tornou um dos mais controversos e importantes aspectos da responsabilidade civil no Direito americano. Embora tenham surgido no século 18 na Inglaterra os, hoje debatidos e conhecidos, punitive damages, se expandiram nos EUA. Mas, até a metade do século 20, não eram comumente utilizados neste último país. Lá, não há uma legislação federal regulando os critérios de aplicação universal dos punitive damages. Os pressupostos e requisitos para a sua aplicação nos EUA são diferentes em cada Estado e foram construídos ao longo dos casos judiciais precedentes. Hoje, os punitive damages são o centro das maiores batalhas contemporâneas no tema da responsabilidade civil americana, por meio da tort reform (SOUZA, 2013, pág. 359).
No Brasil, Penteado Gattaz, ao realizar pesquisa na jurisprudência nacional do STF, do STJ e dos Tribunais de Justiça do Estado de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso, Distrito Federal e Territórios, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, em 2016, apontava que apenas 9% dos acórdãos analisados admitem a aplicação dos punitive damages no direito brasileiro, sendo que 22% não admitem e 69% admitem uma aplicação “restrita”, ou seja, com ressalvas (PENTEADO GATTAZ, 2016, pág.7-8).
No Brasil, a aplicação dos punitive damages, ou teoria do valor do desestímulo, é, por variados doutrinadores e juristas, rechaçada. Há entendimento de que, para ser inserido nas decisões judiciais pátrias a teoria deverá ser compatibilizada com o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa. E é exatamente esse o argumento contrário à sua utilização por parte da doutrina e jurisprudência, tendo em vista que o princípio inviabilizaria a sua incidência de maneira radical. Para tanto, se utiliza como escopo o artigo 884 do Código Civil.
“Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários” (BRASIL, 2002).
Também para contrariar a doutrina de aplicação dos punitive damages na indenização do dano moral é apresentada a tese da ausência de previsão legal do instituto na legislação civil, assim também no Código Civil, apontando que não poderia aplicar-se a pena na seara civil pela inexistência do dispositivo prevendo o dano punitivo. Ou seja, vigoraria na legislação pátria o brocardo nullum crimen, nulla poena sine lege, só se permite aplicar pena quando prevista em lei.
Por outra vertente, pode-se buscar fundamento para a teoria do valor do desestímulo no texto constitucional vigente que influenciará, de maneira hierarquicamente superior, a interpretação do Código Civil e legislação esparsa. Ali se encontra o fundamento constitucional de que o dano moral é decorrente da violação de algum direito inerente à dignidade da pessoa humana, à sua personalidade.
O dano moral e os punitive damages
Pesquisa realizada por esta autora em site institucional e de referência jurisprudencial no Brasil, JusBrasil, em 21 junho de 2023, utilizando-se como critério amplo, todos os tribunais, qualquer data, e a palavra punitive damage, encontrou-se 7.244 citações do termo. Analisadas 100 dessas citações, definidas pela ordem em que se apresentaram, observou-se, sem emitir percentuais, que grande parte da jurisprudência brasileira, principalmente dos TJs, admite a função punitiva e inibitória, com intuito de impedir novas lesões, do ofensor. Nas 100 citações, as palavras “caráter pedagógico do dano moral” são frequentes, apareceram em 57 ementas de decisão. É comum e persistente a utilização dos semelhantes termos: “O objetivo da reparação atende à dupla finalidade: a justa indenização do ofendido e o caráter pedagógico em relação ao ofensor”. Outra vezes se encontra referência unificada dos termos: “função punitivo-pedagógico”.
Segundo o desembargador Fernando Lins (TJ-MG), é no mínimo desaconselhável insistir no apego à concepção punitivista. Adverte ele que, a decisão não implica acolher critério pelo qual a indenização por danos morais tenha de ser necessariamente módica. Entende que danos morais maiores reclamam indenizações maiores, observada a regra de proporção pela qual deve se guiar o intérprete no particular. O desembargador afirma que segundo artigo 944 do Código Civil “a indenização mede-se pela extensão do dano”. Ainda aponta que o parâmetro da compensação/reparação, aplicado com razoabilidade e proporcionalidade, é suficiente para levar ao arbitramento de quantum indenizatório que, não sendo demasiado pequeno, aproxime-se de um ponto que se possa chamar justo, sem implicar enriquecimento ilegítimo da vítima. (LINS, Fernando. Apelação Cível Nº 1.0000.20.064338-5/001, 2020) [1].
Em sentido oposto, encontram-se diversas jurisprudências nos tribunais brasileiros que adotam a tese de aplicação dos punitive damages. Em recente julgado do TJ-SP sobre a responsabilidade civil, no dia 29 de junho de 2023, nos seus argumentos decisórios para a majoração da indenização por danos morais visando servir tanto para compensar a vítima, como para inibir o ofensor à recidiva de conduta, o relator desembargador José Augusto Genofre Martins afirma que a reparação moral devida apresenta natureza punitiva e compensatória, à maneira dos “punitive damages” [2].
No STF, a intepretação do punitive damages no Brasil ainda não foi cabalmente discutida e definida. Pesquisa realizada no site institucional do tribunal encontra dois acórdãos, 13 decisões monocráticas e um informativo. Mas, o STF não enfrenta especificamente o tema. Afirma, genericamente, que as instâncias de origem estabelecem o valor da indenização com base na análise dos fatos e provas constantes nos autos o que não pode ser reexaminado em recurso extraordinário, conforme a Súmula 279 do STF. Decisões proferidas pelo STF apresentam argumentos pró tese punitive damages como a emitida pela ministra Rosa Weber:
“Há casos, como o dos presentes autos, que o dano moral é evidente, justamente em razão dos vícios construtivos constatados não se tratarem de pequenos consertos, de fácil solução, sem que a parte tenha que desocupar o imóvel. Na quantificação do dano moral deve-se sopesar as circunstâncias e peculiaridades do caso, as condições financeiras dos envolvidos, o nível de compreensão do ilícito, sua repercussão e a participação do ofendido para configuração do evento danoso. Ademais, o quantum da indenização deve ser arbitrado em especial considerando-se o caráter punitivo (punitive damages) que também devem representar, embora buscando se evitar o enriquecimento sem causa de quem sofre o dano” (ARE 1.426.667 relator(a): min. presidente. Decisão proferida pelo(a): Min. Rosa Weber. Julgamento: 30/03/2023) [3].
O STJ também vem aplicando o instituto a algum tempo, porém faz uma análise mais profunda do caso antes de chegar à conclusão de aplicação ou não da teoria no caso concreto, com isso o tribunal busca sanar falhas cometidas na hora de aplicar a teoria do valor do desestímulo, mas pauta-se no princípio da reparação integral para adotá-la. O ministro relator Honildo Amaral de Mello Castro na ementa da decisão do AGA 850.273 afirma:
“….A aplicação irrestrita das “punitive damages” encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio que, anteriormente à entrada do Código Civil de 2002, vedava o enriquecimento sem causa como princípio informador do direito e após a novel codificação civilista, passou a prescrevê-la expressamente, mais especificamente, no art. 884 do Código Civil de 2002″ (Agravo Regimental no Agravo De Instrumento 2006/0262377-1. Relator Honildo Amaral Carvalho de Mello Castro. STJ. Julgado 03/08/2010) [4].
Os precedentes jurisprudenciais atuais refletem o caminhar no sentido de ser aplicável no ordenamento jurídico brasileiro os punitive damages, ou Teoria do Valor do Desestímulo, isto quando a conduta é dolosa ou praticada com culpa grave ou gravíssima, nesse caso o comportamento do ofensor deve ser reprovável, com as adaptações necessárias à observância dos princípios e regras constitucionais e legais aplicáveis, inclusive, como dito, da premissa da vedação ao enriquecimento sem causa.
Para aplicar ou não os punitive damages, entende-se que o justo será o meio-termo ou no contexto legal a necessária utilização da proporcionalidade e razoabilidade como princípios fundamentais das necessárias decisões.
Referências
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. São Paulo, SP: Editora Saraiva Educação S.A., 2020.
MIRAGEM, Bruno. Código Civil de 2002 e o direito civil do futuro. Revista dos Tribunais online. Thomson Reuters. In Revista de Direito do Consumidor | vol. 145/2023 | p. 209 – 233. Disponível em: https://brunomiragem.com.br/artigos/030-Codigo-Civil-de-2002-e-o-direito-civil-do-futuro.pdf acesso em 25 de junho de 2023.
PENTEADO GATTAZ, Luciana de Godoy. Punitive damages no direito brasileiro. Revista dos Tribunais: 2016 RT VOL.964
SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Punitive damages nos Estados Unidos e danos morais no Brasil. TJSP. São Paulo: 2013. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/ObrasJuridicas/rc14.pdf?d=636680468024086265 Acesso em 03 jun.2023.
WALKER, Mark Pickersgill; SILVA, Rafael Peteffi da; REINIG,Guilherme Henrique Lima. Punitive damages: características do instituto nos Estados Unidos da América e transplante do modelo estrangeiro pela jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Revista de Direito do consumidor. vol. 115. ano 27. p. 169-204. São Paulo: Ed. RT, jan.-fev. 2018.
[1]MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível Nº 1.0000.20.064338-5/001. Disponível em: http://www8.tjmg.jus.br/themis/baixaDocumento.do?tipo=1&numeroVerificador=100002006433850012020821645 acesso em 27 jun.2023
[2] De acordo com Apelação Cível nº 1004101-87.2018.8.26.0566 -Voto nº 7156. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/ acesso em 29 de jun.2023
[3] Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho1392459/false acesso em 27/06/2023
[4] Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp acesso em 23/06/2023
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