Opinião

Decreto nº 11.374/2023 e a anterioridade de acordo com o STF

Autor

  • Phillip Krauspenhar

    é advogado do escritório Ferraro Rocha e Novaes Advogados e pós-graduado em Contratos Empresariais pelo Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

31 de março de 2023, 9h22

Tendo em vista a complexidade do sistema tributário brasileiro e o impacto da alteração tributária para os contribuintes, a Constituição traz, no item "c", do inciso III, do artigo 150, o princípio da anterioridade nonagesimal, no qual o Fisco só pode exigir um tributo instituído ou majorado decorridos 90 dias da data em que foi publicada a lei que os instituiu ou aumentou, objetivando evitar que os contribuintes possam ser surpreendidos com a alteração inesperada de tributos. Em que pese a incidência dos princípios seja matéria pacífica no direito tributário, não raro o judiciário brasileiro enfrenta discussões relacionadas às hipóteses concretas em que estes devem ser observados ou não. 

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Nesse sentido, recente discussão quanto às alíquotas do PIS e Cofins incidentes sobre receitas financeiras, no regime não cumulativo, vem trazendo novos questionamentos quanto a forma e efetiva incidência do princípio da anterioridade nonagesimal.

Em 30 de dezembro de 2022, penúltimo dia do governo anteior, foi editado e publicado o Decreto nº 11.322/22, que alterou o de nº 8.426/15 que estabelecia que as alíquotas do PIS e Cofins, no regime não cumulativo, sobre receitas financeiras, inclusive decorrentes de operações realizadas para fins de hedge, seriam de 0,65% e 4%, respectivamente, passando a prever a alíquota do PIS/Pasep em 0,33% e da Cofins em 2%. Assim, a partir de 1º de janeiro de 2023, as alíquotas do PIS e da Cofins incidentes sobre as receitas financeiras das pessoas jurídicas sujeitas ao regime de apuração não-cumulativa seriam substancialmente reduzidas.

Ocorre que, no dia 2 de janeiro de 2023, já sob novo governo empossado, foi publicado o Decreto nº 11.374/2023 que revogou o de nº 11.322/22 e, consequentemente, restabeleceu as alíquotas de PIS e Cofins incidentes sobre as receitas financeiras em 0,65% e 4%, respectivamente.

O problema surge com o fato de que o Decreto nº 11.374/2023 prevê, em seu artigo 4º, que sua vigência seria a partir da sua publicação, em dissonância ao princípio da anterioridade nonagesimal, que, de acordo com item "c", do inciso III, do artigo 150, e §6º do artigo 195, ambos da Constituição Federal, o fisco só pode exigir um tributo instituído ou majorado decorridos 90 dias da data em que foi publicada a lei que os instituiu ou aumentou.

A questão ganhou força a partir de diversas decisões proferidas em todo o território nacional, por meio das quais juízes e desembargadores suspenderam a aplicação imediata do Decreto nº 11.374/2023.

Foi o caso de varas federais do Rio Grande do Sul (TRF-4) e de São Paulo (TRF-3), que concederam liminares para que as empresas contribuintes apenas recolham as alíquotas de 0,65% e 4%, respectivamente, após 90 dias da publicação do Decreto nº 11.374/2023, em 2 de abril de 2023.

O Tribunal Regional Federal da 3 ª Região (TRF-3) também se manifestou sobre o tema, mantendo liminar para que uma associação de empresas recolha o PIS e Cofins com alíquotas reduzidas até 02/04/2023

A previsão de incidência imediata contida no Decreto nº 11.374/2023 e a existência de decisões divergentes quanto ao início da vigência da majoração dos tributos provocou o surgimento de diversos questionamentos, como, por exemplo, se o decreto de 2023 deve respeitar a anterioridade nonagesimal no caso do PIS e Cofins e anterioridade anual no caso da AFRMM (adicional ao frete para renovação da marinha mercante); se houve majoração das alíquotas ou mero restabelecimento de alíquotas anteriores; se os decretos de 2022 eram inconstitucionais, dentre outros. 

Valter Campanato/Agência Brasil
O hoje senador general Hamilton Mourão, então na Presidência da República, assinou decreto baixando alíquotas de impostos na antevéspera do fim do seu mandato
Valter Campanato/Agência Brasil

A fim de sedimentar de uma vez por todas o debate, as questões relacionadas ao PIS e Cofins foram submetidas ao Supremo Tribunal Federal por meio de duas ações constitucionais, sendo elas, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.342  e a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 84.

Alega-se, por meio da ADI 7.342, que o Decreto nº 11.374/2023 afrontaria diretamente a regra de anterioridade nonagesimal prevista nos artigos 150, III, "c", e 195, §6º, da Constituição, vez que houve uma redução das alíquotas de PIS e Cofins com a publicação do Decreto nº 11.322/22 e uma posterior majoração com o Decreto n° 11.374/2023, quando do reestabelecimento das alíquotas de 0,65% (PIS) e 4% (Cofins), previstas na redação original do artigo 1º do Decreto nº 8.426/2015, razão pela qual deveria aguardar 90 dias para iniciar a validade. Aplica-se, para tanto, a lógica utilizada pelo STF quando do julgamento do RE nº 1.043.313/RS (submetido à sistemática da repercussão geral — Tema nº 939) e a ADI nº 5.277/DF, nas quais se concluiu que a redução e subsequente restabelecimento de alíquotas do PIS e da Cofins, representa a majoração de carga fiscal e deve ser submetida ao princípio da anterioridade nonagesimal.

Já a ADC 84, ajuizada pela AGU (Advocacia Geral da União), defende que o Decreto nº 11.322/22, que reduziu as alíquotas do PIS e Cofins, foi revogado no mesmo dia em que teria sua eficácia iniciada, afinal, não obstante o Decreto 11.374/23 tenha sido publicado em 2 de janeiro, foi disponibilizado no site do Planalto no dia 1º de janeiro, data em que foi dada a devida publicidade, de modo que seus efeitos devem ser considerados no mesmo dia. Nesse sentido, defende a União que, tendo em vista que a redução das alíquotas prevista no Decreto nº 11.322/22 foi revogada no dia em que passaria a produzir efeitos, na prática, foram mantidas as alíquotas que incidiam desde 2015, não ocorrendo qualquer redução. 

Tanto a ADC 84 quanto a ADI 7342 foram distribuídas à relatoria do ministro Ricardo Lewandoski, o qual proferiu decisão liminar na ADC em 08/03/2023 para "suspender a eficácia das decisões judiciais que, de forma expressa ou tácita, tenham afastado a aplicação do Decreto 11.374/2023 e, assim, possibilitar o recolhimento da contribuição para o PIS/Cofins pelas alíquotas reduzidas de 0,33% e 2%, respectivamente, até o exame de mérito".

De acordo com o ministro relator, verifica-se que "o Decreto 11.374/2023, ao revogar o Decreto 11.322/2022, repristinou as alíquotas até então vigente nos termos do Decreto 8.426/2015, sem, com isso, majorar tributo de modo a atrair o princípio da anterioridade nonagesimal". Assim, o "Decreto 11.374/2023 não pode ser equiparado a instituição ou aumento de tributo e, por isso, não viola os princípios da segurança jurídica e da não surpresa, na medida em que o contribuinte já experimentava, desde 2015, a incidência das alíquotas de 0,65% e 4%. Destarte, não há falar em quebra da previsibilidade ou que o contribuinte foi pego desprevenido".

No caso em questão, ainda de acordo com o ministro, a fim de afastar o precedente do RE 1.043.313/RS (Tema 939 da Repercussão Geral) e na ADI 5.277/DF, não se trata de restaurar a alíquota do PIS e Cofins incidente sobre receitas financeiras, mas sim de manter o índice que já estava sendo pago pelo contribuinte. Em discussões semelhantes sobre a aplicação da anterioridade, o ministro Gilmar Mendes, no RE 566.032, afirmou que os contribuintes tinham apenas uma "expectativa de diminuição de alíquota", e a Corte decidiu que não reconheceria um "direito adquirido a regime jurídico".

A discussão ainda está pendente de julgamento de mérito, mas considerando os posicionamentos prévios das Suprema Corte sobre a matéria, acredita-se que a posição defendida pela AGU e acolhida pelo ministro relator deverá prevalecer, com a consequente rejeição da tese da anterioridade e a determinação de aplicação imediata do Decreto 11.374/2023.

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