Opinião

Plano unitário na recuperação judicial dos grupos de empresas

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29 de março de 2023, 6h13

Nos primeiros 15 anos de vigência da Lei nº 11.101/2005, tornaram-se bastante comuns os pedidos de recuperação judicial formulados em grupo, fundados na repercussão econômica da crise entre os seus integrantes. 

Em boa parte deles, os diferentes devedores foram tratados como se fossem uma empresa só, ignorando-se completamente o fato de possuírem personalidades jurídicas e patrimônios distintos. Às vezes, desde o ajuizamento da ação, as relações de credores eram apresentadas de forma consolidada, sem discriminar a qual devedor se referiam; noutros casos, era o próprio administrador que realizava tal consolidação, no mais das vezes sem pedido, tampouco decisão autorizando tal expediente. 

Isso quase sempre resultava na formulação de plano de recuperação que, além de não distinguir a situação particular de cada devedor, não previa quem pagaria quem, fazendo-se de conta que o grupo em si possuiria personalidade jurídica. E o pior de tudo é que esse plano era submetido à aprovação de uma única Assembleia Geral de Credores, indistintamente formada pelos credores de todos os devedores, com evidente alteração do poder individual de influência de cada devedor sobre o resultado da deliberação.

Coube à doutrina esclarecer aos operadores do direito que esse proceder era gravemente irregular, dado que, mesmo agrupadas, as sociedades conservam personalidade jurídica e patrimônio independentes umas das outras, de modo que o mero ajuizamento da recuperação judicial em conjunto não autorizava que elas fossem tratadas como um ente só. 

A consolidação dos ativos e passivos, para os fins da recuperação judicial, só se justificaria em hipóteses excepcionalíssimas, quando verificado insuperável embaralhamento jurídico entre as sociedades devedoras por conta de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, tornando impossível distinguir as suas respectivas esferas de imputação. Ainda assim, dependeria de prévia autorização judicial.

Com a reforma promovida pela Lei nº 14.112/2020, esse entendimento restou positivado na seção que trata da consolidação processual e da consolidação substancial, expressões importadas do direito norte-americano que buscam distinguir a mera formação do litisconsórcio (consolidação processual) do expediente que permite tratar ativos e passivos de devedores diferentes como se pertencessem a um único devedor (consolidação substancial).

De acordo com a sistemática legal, a formação do litisconsórcio na recuperação judicial não produz efeito material algum em relação aos créditos, tampouco autoriza que o plano de recuperação desconsidere a separação entre os patrimônios de cada devedor. Nesse sentido, o artigo 69-I, caput, da LRF é expresso ao estabelecer que a consolidação processual acarreta apenas a coordenação dos atos processuais, ficando "garantida a independência dos devedores, dos seus ativos e dos seus passivos".

Mesmo optando pela formulação de plano único, os devedores haverão de propor meios de recuperação independentes e específicos para a composição de seus passivos (LRF, artigo 69-I, § 1º, da LRF), o que não significa que esse plano deva ser reduzido à mera instrumentalização de planos completamente autônomos num único documento, como tem sustentado a doutrina a partir de leitura apressada da lei.

Ao dispor que os meios de recuperação deverão ser independentes para a composição de seus passivos, o legislador quis dizer que esses meios não poderão desconsiderar a separação patrimonial ou a independência jurídica dos devedores. E ao prever que serão específicos, indicou que a finalidade imediata do plano de recuperação deverá ser a superação da crise econômico-financeira de cada devedor individualmente considerado, ainda que indiretamente viabilizada por medidas que alcancem ou beneficiem todo o grupo.

A razão dessas disposições tem a ver não apenas com a independência patrimonial das sociedades agrupadas, mas com o regime de subordinação de interesses a que estão submetidas. Nos grupos de fato (que não são regidos por uma convenção), não é dado ao controlador estabelecer uma direção econômica unitária contrária aos interesses particulares de cada uma das sociedades, de modo que o plano de recuperação não poderá tratá-las como se fossem um ente só.

Ainda assim, isso não impede que os devedores se vinculem conjuntamente a uma mesma e única proposta de recuperação ("plano único"), que poderá prever operações ou medidas combinadas entre os devedores, desde que respeitados os limites da subordinação de interesses tolerados pela legislação societária ou que os eventuais prejuízos impostos a determinado devedor sejam compensados (LSA, artigo 245).

Além de amparada pela autonomia privada, a previsão de medidas conjuntas ou interligadas poderá ser absolutamente indispensável para lidar com a repercussão econômica da crise entre os devedores, mesmo quando inocorrente qualquer tipo de confusão patrimonial.

Embora viabilize o tratamento global da crise do grupo, o plano único não se confunde com o "plano unitário", que será apresentado somente quando deferida pelo juiz a consolidação substancial, medida excepcional reservada às hipóteses de insuperável embaralhamento jurídico entre os devedores, que torne impossível distinguir os seus respectivos ativos e passivos sem excessivo dispêndio de tempo ou de recursos (LRF, artigos 69-J). 

A ordem de consolidação substancial produz a ineficácia temporária da separação dos patrimônios dos devedores para os fins do processo concursal, permitindo que os ativos e passivos de todos eles sejam rearranjados sob a suposição de que pertenceriam a uma única entidade (LRF, artigo 69-K). Além disso, ela opera uma mudança de vetor: deixa-se de mirar o restabelecimento individual de cada devedor, para perseguir a recuperação do grupo, segundo a ideia de que os credores das sociedades agrupadas são, na verdade, credores do grupo. 

A consolidação substancial também suspende os limites impostos pela lei ou pela convenção grupal à subordinação de interesses entre os devedores, admitindo o favorecimento de uma sociedade em prejuízo da outra independentemente de compensação. De sorte que o plano unitário poderá autorizar, por exemplo, que os recursos de uma devedora sejam empregados para a quitação de obrigações de outra, já que todos eles serão tratados como credores do grupo. No limite, determinadas unidades do negócio poderão ser completamente sacrificadas para que o grupo sobreviva (por exemplo, mediante a alienação de todos os ativos de determinado devedor para o pagamento das dívidas dos demais).

Para além de viabilizar solução para o concurso de devedores cujas personalidades estão embaralhadas, o plano unitário serve para recompor a condição das sociedades como centros autônomos de imputação, reescrevendo os contornos das respectivas responsabilidades individuais e definindo, para o futuro, os direitos e obrigações de cada um. Se assim não fosse, a disfunção societária que deu causa à consolidação substancial acabaria se perpetuando, o que é absolutamente inaceitável. 

Diferentemente do que se passa em relação ao plano único, que deverá ser submetido à aprovação individual dos conjuntos particulares de credores de cada devedor, em assembleias separadas, o plano unitário se submete a uma única Assembleia Geral de Credores, formada pelos credores de todos os devedores alcançados pela ordem de consolidação substancial (LRF, artigo 69-L), que ficam, assim, vinculados ao mesmo destino. Logo, se o plano unitário for rejeitado, caberá ao juiz decretar a falência de todos os devedores sob consolidação substancial (LRF, artigo 69-K, §2º).

De tudo isso se conclui que tanto o plano único, apresentado no cenário de mera consolidação processual, quanto o plano unitário, formulado quando deferida a consolidação substancial, permitem tratar a crise do grupo de forma global e unificada. No entanto, as possibilidades e limites de um e outro são completamente diferentes, já que o plano único se acha vinculado à independência patrimonial dos devedores e ao regime de subordinação de interesses do grupo, ao passo que tais restrições não se aplicam ao plano unitário. 

Por tais razões, não se pode admitir a formulação de plano unitário sem que tenha sido autorizada a consolidação substancial pelo juiz, nas estritas hipóteses mencionadas no artigo 69-J da LRF. Ao administrador judicial e ao Ministério Público, por sua vez, compete zelar pelo cumprimento da lei, alertando o magistrado sempre os devedores se valerem de alguma manobra para implementarem a consolidação substancial sem prévia autorização judicial, como mediante a apresentação de relação de credores unificada (sem distinção dos devedores a que se referem) ou mesmo pela indevida submissão de plano unitário.

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