Opinião

Entidade paraestatal e funcionário público equiparado na Lei de Licitações (parte 1)

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26 de março de 2023, 6h31

Introdução
Recentes inovações restaram operadas pela Lei nº 14.133/2021, que instituiu novo Estatuto de Licitações e Contratos e revoga, de forma expressa e integral, a partir de 1º de abril de 2023, a Lei nº 8.666/93 (lei velha/anterior), conforme mandamento contido no artigo 193, II, da lei nova revogadora, muito embora pudesse a administração optar por já aplicar suas disposições desde sua publicação e vigência (cf. artigo 191), de modo a revelar que os efeitos contidos, na verdade, são efeitos latentes e incidem sobre as situações concretas, a critério do poder público.

Nesse contexto, é total a pertinência em tematizar os efeitos penais de extinção da punibilidade (artigo 5º, XL, da CF/88; artigos 2º e 107, III, do CP) para imputações de crime funcional e próprio assentadas na conceituação de entidade paraestatal e de servidor público equiparado, extraída do caput e do §1º do artigo 84 da revogada Lei nº 8.666/1993.

Pontua-se que o eg. STF firmou entendimento quanto a ser, o §1º do artigo 327 do Código Penal, "norma penal em branco", cuja complementação de sentido jurídico se faz pelo artigo 84, § 1º, da Lei de Licitações e Contratações (Lei nº 8.666/1993) [1].

Restou consolidado o entendimento de que o conceito e o significado do termo "entidade paraestatal", a que se refere o artigo 327, §1º, do Código Penal, estão no artigo 84, § 1º, da Lei nº 8.666/93, inclusive quanto às entidades qualificadas como "Organização Social", muito embora não mencionadas expressamente nessa disposição legal, o que encontraria justificativa nos fatos de a Lei de Licitações datar do ano de 1993 e a titulação de organização social ter sido criada no ano de 1998 (Lei nº 9.637/1998).

Sabido por todos, para que a "abolitio criminis" ocorra, temos como requisitos que o tipo penal seja formalmente revogado e nenhum crime semelhante ao revogado seja tipificado em seu lugar, na mesma ou em outra lei.

De seu turno, o fenômeno jurídico denominado "novatio legis in mellius" encontra-se em lei nova e benéfica ao jurisdicionado/réu, contudo, sem excluir a tipificação do delito imputado.

Destaca-se o fato de que normas despenalizadoras ou que eliminam os elementos que informam ou sustentam a norma penal em branco constituem "novatio legis in melius", que devem ser aplicadas a fatos anteriores, ainda que decididos por sentença penal condenatória transitada em julgado.

Tratando-se de norma que tem ânimo definitivo e força retroativa, configura-se, sem dúvida, "novatio legis in melius" em relação a condutas e atos praticados na seara intestina de entidades particulares e empresas privadas por seus dirigentes e empregados, ficticiamente equiparados a entidade paraestatal e servidor público com base no artigo 84, caput e §1º, da Lei nº 8.666/1993 (revogada).

O entendimento do eg. STF sobre a temática impõe considerar que a superveniente alteração do complemento retroagirá e terá efeitos de extinção da punibilidade, pois, revela que tal consequência é inerente à estrutura aberta da tutela penal adotada e implementada pelo ordenamento jurídico-penal-constitucional pátrio.

Nessa trilha, a superveniência de norma que revoga outra que fundamentara o processamento e a punição de particulares, pessoas da sociedade civil, por crime funcional também possui efeitos concretos de extinção da punibilidade dos atos praticados durante o período em que vigorou norma anterior em que se sustentavam a denúncia, a sentença condenatória, o acórdão confirmatório de segundo grau e os acórdãos das instâncias superiores.

De fato, a consequência apontada, nos casos analisados neste estudo, terá por efeito incidência completa da "novatio legis in mellius" na hipótese de imputação de prática de crime funcional com fundamento nas equiparações veiculadas pelo artigo 84, caput e §1º, da Lei nº 8.666/1993 (revogada).

Nessa linha de pensamento, tem-se abalizada doutrina.

De fato, Heleno Cláudio Fragoso assevera:

"Merece atenção o caso das leis penais em branco, nas quais, por alteração sucessiva dos seus complementos, ocorra situação diversa, que beneficie o réu.
"A solução que a doutrina formula para tais casos não é pacífica.
(…)
"A doutrina prevalente pronuncia-se em contrário, entendendo que a alteração das disposições que integram a lei penal em branco modificam o estado jurídico total em que o réu se acha, não podendo deixar de ser consideradas caso venham a beneficiar o acusado.

"Parece-nos que a hipótese não permite solução unitária. Em regra, a alteração dos complementos da norma penal em branco, se descriminar a ação ou beneficiar o réu, não pode deixar de retroagir. As disposições que complementam as leis penais em branco integram o conteúdo de fato da conduta incriminada e sua alteração representa uma nova valoração jurídica do mesmo" [2].

De igual modo, Juarez Cirino dos Santos assevera que "Se o tipo de injusto não existe sem o complemento legal ou administrativo" (…), "então o complemento é elemento do tipo de injusto e, na hipótese de complemento posterior mais favorável, retroativo" [3].

Na hipótese de crime funcional, exige-se a qualificação de servidor público originário (quem exerce cargo, emprego ou função pública ou política na administração pública, autarquias e fundações) ou servidor público equiparado (quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal ou quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para execução de atividade típica da administração pública).

Note-se que, conforme doutrina abalizada, havendo um elo de dependência entre o núcleo do injusto penal e o complemento atingido pela normação superveniente, sequer eventual inconstitucionalidade afastaria a retroatividade, pois, nesse contexto, sempre haveria retroação.

Outro prisma, o Parágrafo único do artigo 2º do Código Penal, ao utilizar as expressões "de qualquer modo" e "ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado", está afirmando e impondo o entendimento de que tem aplicação às inteiras a lei posterior que favorecer o sujeito de qualquer modo; está afirmando e impondo o entendimento de que o princípio da retroatividade da norma benéfica é incondicional.

Portanto, independentemente da natureza do complemento da norma penal em branco, diante da jurisprudência e de abalizada doutrina e por força e mérito do inciso XL do artigo 5º da Constituição e do Parágrafo único do artigo 2º do Código Penal, os efeitos da revogação do §1º do artigo 84 da Lei nº 8.666/1993 devem ser aplicados aos fatos anteriores, ainda que estejam acobertados pela coisa julgada

Para melhor compreensão, debatem-se a existência e os efeitos de complemento de norma penal em branco.

Complemento da norma penal em branco
Consigne-se que havendo alteração do complemento da norma penal em branco [4], aplica-se a retroatividade penal da norma mais favorável.

Sobre o §1º do artigo 327 do Código Penal e sua condição de "norma penal em branco", cuja complementação de sentido jurídico se faz pelo art. 84, § 1º, da Lei de Licitações e contratações (Lei nº 8.666/1993), já o disse o STF [5], seguido pelo STJ. Portanto, referido dispositivo do Código Penal é norma penal em branco, sem dúvida.

Há autores que sustentam sempre haver retroatividade benéfica com a alteração do complemento da norma (Paulo José da Costa Junior e Basileu Garcia); que sustentam ser necessário verificar o critério de temporariedade no complemento da lei penal em branco, ou seja, existindo a temporariedade, haverá ultratividade, inexistindo a temporariedade haverá a retroatividade in mellius (Fernando Capez e Luiz Régis Prado).

O STF sustenta que em se tratando de norma penal em branco homogênea (complemento de mesma hierarquia normativa, sem excepcionalidade) sempre haverá efeitos retroativos e, em se tratando de norma penal em branco heterogênea, revestindo-se o complemento de excepcionalidade, não há retroatividade.

Como já dito, em sede de "novatio legis in mellius", a lei mais benéfica ao agente sempre prevalecerá por força e mérito da Constituição mesma (Inciso XL do artigo 5º), o que encontra leito farto nas normas contidas no artigo 2º, caput e Parágrafo único, do Código Penal.

Dotti exemplifica que: "o advento de uma lei nova poderá beneficiar o agente não apenas quando descriminaliza o fato anteriormente punível, mas quando institui uma regra de Direito Penal que: (a) altera a composição do tipo de ilícito; (b) modifica a natureza, a qualidade, a quantidade ou a forma de execução da pena; (c) estabelece uma condição de punibilidade ou processabilidade; (d) de qualquer outro modo é mais favorável" [6].

Por se tratar de uma revisão da própria pretensão punitiva estatal, não há que se falar em desrespeito à coisa julgada que representa uma garantia do indivíduo frente ao Estado. Bem por isso, mesmo sobre aqueles processos transitados em julgado e sobre a execução penal, seja a "novatio legis in mellius" seja a "abolitio criminis" têm aplicação imediata e direta, retroagindo para beneficiar o agente, aplicando-se de forma imediata aos processos em andamento, sentenciados ou não.

Diante da consolidação de entendimento no sentido de que o conceito e o significado do termo "entidade paraestatal", a que se refere o artigo 327, §1º, do Código Penal, estão no artigo 84, § 1º, da Lei nº 8.666/93, inclusive quanto às entidades qualificadas como "Organização Social" (cf. julgados do STF e do STJ, citados), resta-nos, agora, analisar os efeitos da revogação integral dessa referida lei federal, o que será feito na parte 2 deste estudo.

Continua na parte 2

 


[1] e.g. HCs 125.287/DF, 144.473/DF e 146.736/DF, 1ª Turma, relatora ministra Rosa Weber. Publicação no DJe de 30/11/2017, dentre outros.

[2] Lições de Direito Penal, 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 105/106.

[3] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 4ª ed. Florianópolis: Conceito, 2010, p. 51.

[4] Normas penais em branco: aquelas em que há uma precisão de complementação para que se possa entender melhor o âmbito da aplicação de seu preceito originário

[5] Conforme julgados indicados na Nota 1.

[6] DOTTI, Rene Ariel. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 3. Ed. São Paulo: RT, 2010.

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