Opinião

Restrições impostas aos recursos de processos de baixa complexidade no Carf

Autor

  • Deonísio Koch

    é advogado tributarista professor de Direito Tributário ex-conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina (TAT) e ex-auditor fiscal estadual.

23 de março de 2023, 15h09

A Medida Provisória nº 1.160, que teve como principal finalidade reintroduzir o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), segundo a previsão no §9º do artigo 25, do Decreto nº 70.235/72, instituiu, além dessa matéria, impactante alteração nos limites de ascensão dos processos do contencioso tributário ao colegiado paritário daquele órgão de julgamento.

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O artigo 4º da MP introduziu o artigo 27-B na Lei nº 13.988/20, que ampliou o valor do contencioso fiscal que será julgado em última instância no órgão colegiado da Delegacia da Receita Federal (DRJs), sem direito a recorrer ao colegiado paritário do Carf. Este novo valor passou a ser de mil salários mínimos, o que equivaleria, segundo o legislador, a contencioso de "baixa complexidade", como se houvesse uma correlação entre valor do lançamento e complexidade técnica na sua narrativa impositiva.  

A questão posta aqui para o debate é se essa regulamentação de acesso ao Carf paritário, baseada em valor do processo, é legítimo e não viola o princípio do contraditório e ampla defesa.  

Disciplinar matérias tributárias que resultam em alguma restrição de direito, com base unicamente em valores, cria distorções no âmbito da isonomia e da proporcionalidade, visto que o valor é sempre uma grandeza relativa, variando o seu impacto de acordo com o poder econômico do contribuinte a ele relacionado. Determinado valor pode ser insignificante para um contribuinte de grande porte, mas ser insuportável para um pequeno empreendedor.

Dessa forma, mil salários mínimos certamente não será representativo para um grande contribuinte, de modo que tal inovação não irá tirar o sono dos seus gestores e sócios, mas pode ser responsável pela falência de um pequeno estabelecimento, certamente enquadrado no Simples Nacional. Para este segmento societário, mil salários mínimos pode representar um valor irreal, desproporcional, de acordo com sua capacidade financeira, enfim, um crédito tributário impagável. Mesmo assim, a sua lide tributária submetida a julgamento, cuja decisão pode significar um divisor entre a continuidade da empresa ou a sua extinção, não será analisada na via recursal pelo colegiado paritário do CARF, o que evidencia que o critério baseado em valor é inidôneo para regular a tramitação do processo, em especial, para servir de critério de restrições ao direito recursal.

Na verdade, este critério serve unicamente à Fazenda Pública, que supõe dar cumprimento aos princípios da racionalidade, da economicidade e da eficiência da Administração Pública, mas em contrapartida viola os princípios da isonomia e, principalmente, o do direito ao contraditório previsto no artigo 5º, LV, da Constituição Federal, que assegura ampla defesa no processo judicial e administrativo, com os meios de recurso a ela inerentes, sem distinção ou discriminação sob qualquer critério. Não deixou o constituinte qualquer abertura para que a norma infraconstitucional regulasse a matéria com imposição de quaisquer restrições, ainda que sob a alegação da proteção do interesse público. É plausível o entendimento de que o constituinte previu o duplo grau de jurisdição, tanto no processo judicial, como no administrativo.  

Não está passando desapercebida por essa análise a condição estabelecida na norma para o julgamento final nas DRJs, a observância da jurisprudência do Carf, o que, no entanto,  não parece suficiente para negar o acesso ao órgão paritário, visto que o entendimento expresso na jurisprudência não é vinculante e pode ser modificado.  

Talvez para criar um disfarce do critério baseado em valor do litígio e fazer parecer um critério mais adequado para a retenção do julgamento nas DRJs, a norma se utilizou da condição de "baixa complexidade", para logo em seguida dizer que esta condição equivale ao lançamento fiscal ou controvérsia não superior a mil salários mínimos. Ora, nada mais impróprio. Sabemos que não há relação entre complexidade e valor de lançamento. Pode haver uma exigência fiscal de ofício com uma narrativa complexa e valor diminuto, enquanto outro lançamento de alto valor pode ter a sua motivação de extrema simplicidade. Portanto, o critério, de fato, continua sendo o do valor do crédito tributário em litígio. A "baixa complexidade" inserta na norma parece ser uma tentativa de desviar a atenção deste critério injusto e inidôneo baseado em valor.

Os defensores desta medida de controle de acesso ao Carf em instância recursal certamente buscarão fundamentos na norma pré-existente que aponta para essa mesma direção, como por exemplo, o faz a Lei nº 6.830/80, que em seu artigo 34 instituiu uma alçada para o recurso de apelação, dispositivo este julgado constitucional pelo STF, no ARE 637975, tema 408, firmando orientação para os tribunais judiciais.     

No entanto, a lei de execução fiscal dispõe sobre cobrança de crédito inscrito em dívida ativa da Fazenda Pública, crédito este que goza de presunção de certeza e liquidez e tem o efeito de prova pré-constituída, nos temos do artigo 204, do CTN, presumindo-se esgotadas todas as instâncias de julgamento, seja no processo administrativo ou judicial, no caso da exigência tributária, ressalvada a hipótese de o contribuinte não ter impugnado a exigência. A mesma presunção de procedência do crédito não se verifica num lançamento de ofício impugnado pelo contribuinte, de maneira que não há uma perfeita identidade entre as duas situações comparadas para justificar as restrições impostas aos recursos pela referida medida provisória. 

Além do mais, sem pretender desmerecer qualquer posição contrária amparada em decisão do Poder Judiciário, é preciso lembrar que qualquer análise jurídica não precisa se conter nos limites das decisões judiciais; pelo contrário, a doutrina não deve se limitar a fazer um inventário da jurisprudência e sobre ela desenvolver pequenos comentários cosméticos; a doutrina precisa questionar, ousar, com suas reflexões científicas, sempre buscando o melhor direito, o que não significa desrespeitar ou descumprir a ordem judicial.  

Por fim, pensamos que a nova medida vem em prejuízo ao direito do contraditório que afetará especialmente os contribuintes de menor porte, contra os quais, naturalmente, são lançados os créditos tributários de menor valor, dentro do limite de mil salários mínimos.

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    é advogado tributarista, professor de Direito Tributário, ex-conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de SC (TAT) e ex-auditor fiscal do Estado.

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