Opinião

Data venia, termo circunstanciado de ocorrência é peça investigativa

Autor

22 de março de 2023, 6h32

Muito se discute sobre a natureza jurídica do termo circunstanciado de ocorrência. Para parte da doutrina, essa peça assemelha-se a um boletim de ocorrência, mais minucioso em seu conteúdo, elaborado de forma a conter narração razoavelmente detalhada dos fatos, a indicação do autor e da vítima e o rol de testemunhas [1]. Dito isso, entende-se, majoritariamente, tratar-se de mera peça informativa, sem natureza de ato investigativo.

O termo circunstanciado de ocorrência está previsto na Lei nº 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais), sendo destacado no artigo 69, in verbis: "A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários" [2].

Outra celeuma ressai da atribuição de lavrar o termo circunstanciado de ocorrência. A lei previu como competente a "autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência". Quem, então, seria essa autoridade policial? O delegado de polícia, exclusivamente, como dirigente das funções de polícia judiciária (artigo 144, §4º, da Constituição  [3] c/c artigo 2º da Lei nº 12.830/2013 [4]) ou qualquer integrante das forças policiais (Polícia Militar, Polícia Rodoviária, Polícia Ferroviária).

Há voz de peso pela exclusiva atuação do delegado de polícia, nesse sentido:

"Assim, referir-se ao termo circunstanciado de ocorrência por meio de eufemismos como 'mero registro de fatos' ou 'boletim de ocorrência mais robusto' consiste em discurso enganoso para tentar legitimar usurpação de função pública. Ainda que o TCO não seja complexo, sua lavratura não consiste em simples atividade mecânica, mas jurídica e investigativa, na qual o delegado de polícia decide sobre uma série de questões, tais como tipificação formal e material da infração penal, concurso de crimes, qualificadoras e causas e aumento de pena, nexo de causalidade, tentativa, desistência voluntária, arrependimento eficaz e arrependimento posterior, crime impossível, justificantes e dirimentes, conflito aparente de leis penais, incidência ou não de imunidade, erro de tipo, apreensão dos objetos arrecadados, restituição de objetos apreendidos, requisição de perícia, requisição de documentos e dados cadastrais, representação por medidas assecuratórias, representação por busca e apreensão domiciliar, reprodução simulada dos fatos, entre outras atribuições de polícia judiciária e de apuração de infrações penais comuns" [5].

Também há voz em contrário, veja-se:

"A despeito da posição majoritária da doutrina, preferimos que, em razão da baixa complexidade da peça, nada impede que a lavratura fique a cargo da Polícia Militar. Na expressão autoridade policial constante do caput do artigo 69 da Lei nº 9.099.95 estão compreendidos todos os órgãos encarregados da segurança pública, na forma do art. 144 da Constituição Federal aí incluídos não apenas polícia federal e civil, como função institucional de polícia investigativa da União dos Estados, respectivamente, como também a polícia federal, a polícia ferroviária federal e os policiais militares. O artigo 69, caput, da Lei nº 9.099/95, refere-se, por tanto a todos os órgãos encarregados pela Constituição Federal de defesa e segurança pública, para que exerçam plenamente sua função de restabelecer a ordem e garantir a ao execução da administração, bem como do mandamento constitucional de preservação da ordem pública" [6].

Num primeiro momento, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconheceu como função exclusiva da polícia judiciária a elaboração do termo circunstanciado de ocorrência, consoante decisão prolatada na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.614, relator ministro Gilmar Mendes, DJe 23/11/2007, e no Recurso Extraordinário 702.617, relator ministro Luiz Fux, DJe 21/3/2013.

Nesse trilhar, a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), na Ação Direita de Inconstitucionalidade 5.637, sustentou o entendimento pretérito da Corte Suprema de ser atribuição exclusiva dos Delegados de Polícia. Contudo, em overruling, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, declarou a constitucionalidade da lei questionada (Lei do Estado de Minas Gerais nº 22.257, de 27 de julho de 2016), e, por consequência, julgou improcedente a referida ação direta, nos termos do voto do relator (Plenário, Sessão Virtual de 4/3/2022 a 11/3/2022), reconhecendo a possibilidade de a Polícia Militar lavrar Termo Circunstanciado de Ocorrência.

Segundo a Suprema Corte, conforme informações extraídas do acórdão, a lavratura de termo circunstanciado não configura atividade investigativa, nem é atividade privativa da polícia judiciária. Ademais, no âmbito da competência concorrente, estados e Distrito Federal têm competência para definir as autoridades legitimadas para a lavratura do documento. E ainda, como não há atribuição privativa de delegado de polícia ou mesmo da polícia judiciária para a lavratura do termo circunstanciado, norma estadual que atribui essa competência à Polícia Militar não viola a divisão constitucional de funções entre os órgãos de segurança pública [7].

Na mesma linha, decisões recentíssimas do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceram a possibilidade da Polícia Rodoviária Federal lavrar termo circunstanciado. O entendimento ratificado é extraído das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.245 e 6.264. Foi fixada a seguinte tese de julgamento: "O Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) não possui natureza investigativa, podendo ser lavrado por integrantes da polícia judiciária ou da polícia administrativa" [8].

Ao que parece, então, a jurisprudência enveredou-se pela mera concepção de ser o termo circunstanciado documento desprovido de caráter investigativo e desprovido de iniciativa exclusiva do delegado de polícia.

A realidade, entretanto, é outra.

Por vezes as forças policiais, com legitimidade reconhecida pela jurisprudência, deixam de lavrar o documento e acabam por apresentar a situação na delegacia sob a presidência de um delegado de polícia. Até mesmo situações flagranciais acabam sendo levadas aos expedientes e plantões das delegacias de polícia, já exacerbadas de trabalho.

Há um verdadeiro paradoxo, pois instituições policiais diversas arvoram-se em funções que, a princípio, não seriam suas e, mesmo com o assente da jurisprudência, deixam de lavrar o documento e seguem apresentando as situações ao chefe das unidades de polícia judiciária. E, quando lavram o documento, por vezes as partes são apresentadas ao delegado para que sejam colhidos os depoimentos ou haja o compromisso de comparecimento ao fórum para as audiências preliminares. No mínimo, um contrassenso. Esvai-se a atribuição exclusiva do delegado, verdadeira autoridade policial, mas mantém o seu protagonismo como presidente da apuração via termo circunstanciado.

Outra problemática ressai dos termos circunstanciados lavrados em face dos autores do crime de posse/porte de droga para consumo pessoal (artigo 28 da Lei nº 11.343/2006). A custódia da droga fica para a polícia judiciária ou para força policial que lavrou o termo. Como ficam o termo de exibição e apreensão, a perícia de constatação provisória, a remessa para a perícia oficial? Na prática, devem estar aí motivos dos termos serem feitos quase que a unanimidade na delegacia de polícia sob a presidência de um delegado de carreira.

Fato é que, com a devida vênia aos posicionamentos em contrário, o termo circunstanciado de ocorrência é sim um peça investigativa em que é atribuída infração penal de menor potencial ofensivo a um suspeito, devendo ser colhidas as declarações de todos os envolvidos, representação nas infrações que a exigem, juntadas das provas materiais existentes, requisitadas as perícias necessárias e ajustado previamente com o fórum as datas de apresentações dos envolvidos.

Inclusive, em verificação preliminar das informações, filtro do cidadão contra acusações arbitrárias e providência mais importante do delegado de polícia, poderá haver o entendimento pelo titular das investigações de não ser o caso de instauração do termo circunstanciado de ocorrência, arquivando-se o boletim de ocorrência com a liberação das partes. Claro, tal providência não deve mitigar o controle externo do Ministério Público consagrado no texto constitucional.

Por derradeiro, a garantia de ser investigado pelo delegado natural revela-se verdadeiro direito fundamental do cidadão, seja a ele atribuída infração de menor gravidade perseguida mediante termo circunstanciado, seja de média ou alta potencialidade lesiva apuradas via inquérito policial, não podendo haver usurpação dos papeis do que venha a ser polícia ostensiva e polícia investigativa.

 


[1] BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 208.

[2] BRASIL, Lei nº 9.099/95. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm. Acesso em: 13 de março de 2023.

[3] BRASIL, Constitui Delegado ção da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 13 de março de 2023.

[4] BRASIL, Lei nº 12.830/2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12830.htm. Acesso em: 13 de março de 2023.

[5] CASTRO, Henrique Hoffman Monteiro de. Termo Circunstanciado deve ser lavrado pelo delegado, e não pela PM o PRF. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-set-29/academia-policia-termo-circunstanciado-lavrado-delegado#_ftnref13. Acesso em: 13 de março de 2023. 

[6] LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal Comentado. Vol. único. Salvador: Jus PODIVM, 2016. p. 1422.

[7] STF, ADI 5637, relator Edson Fachin, DJe em 26/04/2022.

[8] STF, ADI 6245, Rel. Roberto Barroso, DJe em 01/03/2023 e STF, relator Roberto Barroso, ADI 6264, relator, DJe em 01/03/2023.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!