Opinião

Direito do Trabalho e democracia, uma relação indissociável

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22 de março de 2023, 7h12

"(…) só se pode fundar uma paz universal e  duradoura com base na justiça social (…)"
Constituição da Organização Internacional do Trabalho, 1919.

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Alberto Balazeiro, ministro do TST
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No percurso histórico do Direito do Trabalho, a sua relação com o princípio democrático sempre esteve presente, em realidade, desde a sua gênese. De fato, é ponto nodal de qualquer debate acerca da interpretação de preceitos e normas na seara laboral é a compreensão de que o conceito de democracia perpassa toda a construção histórico do Direito do Trabalho, como produto de luta por melhores condições de vida, nascido assim de um associativismo rudimentar mas indutor de posteriores estruturas sindicais, ainda que no caso do Brasil sob o manto intervencionista estatal do período do Estado Novo[1].

Por outro lado, nos próprios temas centrais, como a segurança do trabalho, não faltam mais exemplos da relação simbiótica entre democracia e previsão legislativa ou regulamentar. Eleger livremente membros de Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa), foro em igualdade de condições para correção, prevenção e investigação de condições inseguras de labor (Norma Regulamentadora – NR 05, sendo assegurada estabilidade constitucional aos eleitos nos termos do artigo 10, II, alínea "a" ADCT) — ou ter a espaço tripartite para alterar normas regulamentares da fiscalização federal do trabalho são garantias de que a saúde do operário tem na democracia pressuposto de segurança do próprio sistema laboral.

Se avançarmos no aspecto macro das políticas de saúde, vemos claramente o papel de relevo na escolha por votação dos membros dos conselhos municipais de saúde, entes de controle social e fiscalização das políticas de segurança, inclusive no meio ambiente de trabalho.

O artigo 8º da Carta Constitucional ao consagrar as entidades sindicais livres também sufragou a sua independência como norte de um modelo não intervencionista. Nesse conceito, aliando a capacidade da construção de normas e convenções coletivas de trabalho com a capacidade postulatória em dissídios, a democracia sindical daria sentido à construção de normas nas instâncias.

Evidentemente que a noção de exigibilidade de direitos sociais[2] e a própria constitucionalização da tutela trabalhista confeririam maior importância a esse elo entre direito laboral e preceitos democráticos. Como observa o mestre baiano Josaphat Marinho[3], o percurso de institucionalização dos direitos sociais moldou o ordenamento jurídico brasileiro, sendo certo que "instrumentos normativos como os de conteúdo social, particularmente os disciplinadores da relação de trabalho e dos vínculos daí decorrentes, conferem ao direito o halo de melhor justiça humana".

Nesse sentido, no cenário brasileiro, com a Constituição de 1988, estabeleceu-se, por meio da designação de um Estado democrático de Direito, um paradigma constitucional de interpretação de normas jurídicas, para que sejam compatíveis com esse princípio democrático. Por tal motivo, logo após a abertura do processo constituinte, José Martins Catharino, pontuou, ao dissertar sobre as perspectivas econômicas do Direito e da Justiça do Trabalho na nova Constituição, que o "desenvolvimento econômico deve ser em benefício do social, que dele efetivamente depende, e não o inverso, sob pena de não haver desenvolvimento social, restando incólume, na sua essência, o status quo atual, caracterizado por graves desigualdades e injustiças". "Contra o curso do processo político democrático, pois não pode haver democracia política, de razoável a ótima, sem democracia econômica." [4]

Assim, conforme ensina o constitucionalista baiano Edvaldo Brito, se "a democracia é uma norma-princípio, é porque todo o desdobramento encontrado nas normas que lhe seguirão na Constituição será um desdobramento que terá de atinar com um governo aberto na sua legitimidade outorgada pelo povo e com um governo que administre bens e valores que são do povo".[5]

Com efeito, não obstante a existência de princípios específicos do ramo trabalhista, entendemos, com arrimo no também baiano Luiz de Pinho Pedreira da Silva, que o "fato de não se falar de princípios próprios ou peculiares do Direito do Trabalho não significa necessariamente que todos sejam diferentes de todos os que inspiram os outros ramos jurídicos". [6]

Daí decorre a compreensão de que "o regime democrático é uma garantia geral da realização dos direitos humanos fundamentais". "Vale dizer, portanto, que é na democracia que a liberdade encontra campo de expansão", considerando que esse "Estado democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de valores supremos".[7]

Em outras palavras, entende-se que o Direito do Trabalho, como promotor da justiça social, sustenta um sistema de normas protetivas que possibilitam a manutenção da democracia econômica e, por conseguinte, da democracia política.

Destarte, uma das maiores manifestações deste primado consiste justamente na normatização e regulação das relações de trabalho, porquanto tal necessidade de tutela estatal contribui para a garantia e efetivação dos direitos sociais aplicados à esfera trabalhista, dando cumprimento ao comando constitucional acima referido.

Nesses termos, na lição do ministro Maurício Godinho Delgado,[8] "detectou a Constituição que o trabalho, em especial o regulado, assecuratório de certo patamar de garantias ao obreiro, é o mais importante veículo (senão o único) de afirmação comunitária da grande maioria dos seres humanos que compõem a atual sociedade capitalista, sendo, desse modo, um dos mais relevantes (senão o maior deles) instrumentos de afirmação da democracia na vida social".

Para o citado autor, "à medida que democracia consiste na atribuição de poder também a quem é destituído de riqueza — ao contrário das sociedades estritamente excludentes de antes do século 19 , na história —, o trabalho assume o caráter de ser o mais relevante meio garantidor de um mínimo de poder social à grande massa da população, que é destituída de riqueza e de outros meios lícitos de seu alcance".[9]

Não se concebe a estruturação sólida de um Estado democrático de Direito sem que, em sua matriz, esteja a garantia de um Direito do Trabalho eficiente, inclusivo e plural, pautados pela 1) garantia da dignidade da pessoa humana na vida social; 2) garantia da prevalência dos direitos fundamentais da pessoa humana no plano da sociedade; 3) subordinação da propriedade à sua função social; 4) garantia da valorização do trabalho na atividade econômica; 5) do primado do trabalho e do emprego na ordem social; e da 6) desmercantilização de bens e valores cardeais na vida socioeconômica e justiça social.[10]

O Tribunal Superior do Trabalho tem adotado, por diversas vezes, esse entendimento. No Agravo de Instrumento em Recurso de Revista 1000534-26.2020.5.02.0201, em que se julgava a responsabilidade da Administração Pública por encargos devidos ao trabalhador, vaticinou que "o raciocínio consequencialista que se admite desenvolver, em um Estado de Direito democrático, ancorado na supremacia do interesse público, no respeito aos direitos fundamentais e no paradigma da responsabilidade, é de exigência da eficiência administrativa na prestação dos serviços públicos, com respeito aos direitos trabalhistas e sem gasto indevido de recursos públicos".

Em outros casos, como no Recurso de Revista 20297-33.2016.5.04.0001, entendeu-se que "conferir tratamento idêntico ao trabalhador afrontado com a dispensa meramente arbitrária em face do trabalhador dispensado por justa causa é também ferir princípios constitucionais relevantes, tais como o da proporcionalidade, o da justiça social, o da justiça, o da democracia e o da segurança".

Diante disso, é curial que não há regime que se paute pelo princípio democrático sem que haja um sistema normativo trabalhista que reflita o ideário de afirmação da cidadania, por meio da promoção da justiça social nas relações de trabalho. Afinal, a construção de um Direito do Trabalho do cidadão e para o cidadão é, também, manifestação do Estado democrático de Direito.

 


[1] GOMES e GOTTSCHALK salientam: “A ação direta do proletariado no quadro das condições adversas que lhe criou a Revolução Industrial foi, pois, o fator principal para a formação histórica do Direito do Trabalho.” GOMES, Orlando. GOTTSHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. Forense. 1968, p. 17.

[2] ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles, Madrid, Editorial Trotta, 2002; cap. 1, pp. 19-64.)

[3] MARINHO, Josaphat. Institucionalização dos direitos sociais. In: Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 15, n. 57, jul.-set./1991, p. 95.

[4] CATHARINO, José Martins. Direito e justiça do trabalho na nova constituição. In: Revista de direito do trabalho. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 10, n. 58, nov./dez. 1985, p. 21.

[5] BRITO, Edvaldo. Direito tributário e Constituição: estudos e pareceres. São Paulo: Atlas, 2016, p. 538.

[6] SILVA, Luiz de Pinho Pedreira da. O estado atual dos princípios do direito do trabalho. In: Revista Latinoamericana de Derecho Social, núm. 1, julio-diciembre, 2005, p. 186.

[7] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 233; Comentário contextual à Constituição. 9 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 25

[8] DELGADO, Mauricio Godinho. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. In: Revista de direito do trabalho. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 123, jul. – set. / 2006, p. 147.

[9] Id., Ibid.

[10] DELGADO, Mauricio Godinho. Constituição da república, estado democrático de direito e direito do trabalho. In:  Revista de direito do trabalho. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 38, n. 147, jul./set., 2012, p. 113.

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    é ministro do Tribunal Superior do Trabalho, ex-procurador-geral do Trabalho, doutorando em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e coordenador Nacional do Programa Trabalho Seguro (CSJT).

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    é mestrando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e assessor no Supremo Tribunal Federal.

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