Da fraude em paternidade e a omissão da lei penal
21 de março de 2023, 17h13
Apesar dos incontáveis e recorrentes casos de imputação de falsa paternidade biológica, onde filhos, familiares e genitores são enganados em relação à ascendência do pretenso pai, em grave atentado contra toda a proteção do sistema legal, surpreendentemente, quem cometeu o ato com o propósito de ludibriar, não responderá por nenhum delito.
Desta forma, com foco nas atualidades e no aumento dos lastimáveis casos judiciais em todo o país, discute-se sobre a necessidade de criminalização desta prática, buscando privilegiar a dignidade humana e salvaguardar problemas jurídicos existentes em relação à proteção da família, e precipuamente, às crianças e adolescentes, vítimas de fraude no âmbito familiar, quando são levados a crer em uma falsa paternidade, por quem age com extrema má-fé.
Inicialmente, vale salientar que, basicamente, a paternidade tem origem no vínculo biológico, da adoção ou da afetividade, cuidando-se da qualidade de ser pai e do consequente conjunto de direitos e deveres. Nos termos do artigo 1.593 do Código Civil, o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem, e por estes rumos, o direito vem se adaptando à realidade, eis que, atualmente, o vínculo de afeto está no mesmo nível ou maior do que o biológico.
E não se pode mencionar essa questão da preponderância do vínculo socioafetivo sem citar o visionário jurista João Baptista Villela, que já previa tal evolução em 1979, quando publicou um artigo referencial em nosso direito contemporâneo. Seguem alguns trechos: "As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade. A coabitação sexual entre o homem e a mulher, sob determinadas circunstâncias, pode dar origem a um novo ser humano, matéria em si de altíssima relevância. Como a gravidez é um fenômeno feminino e ostensivo, a responsabilidade social da mulher pela procriação sempre esteve razoavelmente acautelada. A do homem, cuja participação não deixava vestígios seguros, apenas estaria, caso o associasse à mulher o vínculo de justas núpcias. Do contrário, tudo ficava na dependência de um intrincado sistema de provas e exceções" (VILLELA, João Baptista. Desbiologização Da Paternidade. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, [S.l.], nº 21, p. 400-418).
Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro traz uma vasta gama de dispositivos que tutelam os valores primordiais e os direitos da criança e do adolescente, como o artigo 227 da Constituição Federal, preceitos do Código Civil, Penal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelecendo diversos mecanismos de proteção e determinando que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, saúde, dignidade, respeito, liberdade e à convivência familiar, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, crueldade e opressão, concedendo-lhes o direito ser criado e educado no seio de sua família, resguardando-lhes o aspecto físico, social e o psíquico, como refere também o Decreto 99.710/90, que promulgou a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada em Assembleia Geral das Nações Unidas, e proclama, em seu artigo 7.1, o direito da criança a conhecer seus pais e a ser cuidada por eles.
Sob a mesma égide, há farta legislação e princípios norteadores à proteção integral da família, instituição que deve ser respeitada independentemente do tipo (matrimonial, convivencial, monoparental, adotiva etc.), uma vez que é reconhecida como a base da sociedade (artigo 226, caput, CF) e núcleo fundamental de toda a organização social, intimamente ligada à dignidade humana (artigo 1°, III, CF). Não por acaso, houve o reconhecimento jurídico da multiparentalidade por meio do Tema 622 do STF, que, a depender da hipótese, possibilita a inclusão de mais de um pai ou mãe na certidão de nascimento.
Há, também, idêntica preocupação em proteger os direitos da personalidade e aferir a verdadeira paternidade do indivíduo. Nesse sentido, a Lei 8.560/92 traz normas sobre os exames de DNA e prescreve que a recusa do suposto pai a submeter-se ao teste induz presunção relativa da paternidade, como já consolidava a Súmula 301 do STJ, e por outro lado, se a genitora não levar o menor para fazer o exame, pode haver a aplicação de medidas coercitivas previstas no artigo 139, IV, do Código de Processo Civil, como a aplicação de multa diária, litigância de má-fé e crime de desobediência, revelando a amplitude da tutela jurídica à questão da filiação e origem genética.
Todavia, salvo exceções justificáveis que retirariam o caráter ilícito do fato, como a troca acidental de recém-nascidos na maternidade, a despeito da alteração da verdade, da subtração de um valioso tempo que jamais será recuperado, da violação contra a instituição familiar e direitos supremos que a sociedade considera indispensáveis à sua existência e das drásticas consequências da difusão de um erro coletivo, a lei não comina nenhuma sanção penal à autora do ato, mas somente eventual ilícito civil, havendo uma lacuna que deve ser preenchida, para obstar ou ao menos tentar diminuir o embuste.
Segundo noticia o site Wikipedia, estudos internacionais publicados sobre discrepância paterna encontrou uma faixa de incidência, em todo o mundo, de 0,8% a 30%, sendo 11,8% (México), 4,0% (Canadá), 2,8% (França), 1,6% (Reino Unido) e 0,8% (Suíça), e estudos que analisaram apenas casais que obtiveram teste de paternidade em disputa, indica níveis ainda mais altos, de 17% a 33% (https://en.wikipedia.org/wiki/Paternity_fraud).
No que tange à magnitude e impactos da matéria, o promotor de Justiça e professor de Direito de Família da Unifenas Dimas Messias de Carvalho se manifesta com brilhantismo, frisando: "Da mesma forma que é repulsivo e censurável um pai não reconhecer o filho, também o é impor uma falsa paternidade" [1].
Urge anotar que a conduta, mesmo que tenha por escopo os recursos financeiros do falso genitor biológico, assemelhando-se ao estelionato (obtenção de vantagem indevida por meio de procedimentos fraudulentos que se tem em mente) ou à burla (ação de falsear ou ocultar a verdade com a intenção de enganar, abuso de confiança, mentira ardilosa, engano oculto, ato feito com má fé, oposto à justiça e à veracidade, e pode-se dar nos discursos, nas ações, é até no silêncio), se amolda mais perfeitamente aos crimes contra o estado de filiação.
Visando coibir toda espécie de delitos e preencher omissões, a lei penal constantemente se adapta às novas realidades. Apontamos, por exemplo, a criação dos tipos penais do feminicídio (artigo 121, §2º, VI, CP, incluído pela Lei 13.104/15), importunação sexual (artigo 215-A, CP, Lei 13.718/18), perseguição (ou "stalking", artigo 147-A, CP, Lei 14.132/21), estelionato virtual (artigo 171, §2-A, CP, Lei 14.155/21), violência institucional (artigo 15-A da Lei de Abuso de Autoridade, Lei 14.321/22) e o projeto de lei recém aprovado em 04/08/2022 pela Câmara dos Deputados, que pretende inserir o estelionato sentimental no Código Penal, contudo, nada de inovador foi criado em relação aos crimes contra a família.
A legislação até chega a tratar de assunto semelhante no tocante ao erro essencial, previsto no artigo 1557 do Código Civil, e no artigo 242 do Código Penal, onde há uma burla ao cadastro nacional de adoção, mas nada relacionado ao tema da fraude em paternidade.
Efetivamente, a jurisprudência pátria e também a internacional [2] enuncia inúmeros casos (em segredo de justiça, o que impossibilita delinear uma estatística exata) em que determinada mulher induz o filho a acreditar que alguém é seu ascendente consanguíneo e vice-versa, entretanto, posteriormente, constata-se que houve persuasão a uma falsa situação, construída com esteio na criação maliciosa de um quadro totalmente diverso da realidade.
Para piorar, estas demandas despertam dúvidas, consternação e dificuldades até mesmo nos julgadores (por óbvio, juízes não são máquinas, são humanos) [3], frente ao dever de enfrentar e decidir tais questões, cientes de que o resultado, seja qual for, ocasionará amargor e problemas às famílias.
A título de ilustração, um acórdão, oriundo da 4ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, determinou, em dezembro de 2020, que um homem pague pensão alimentícia a uma criança mesmo depois de um exame de DNA que confirmou que ele não é o pai biológico. No caso, ele havia convivido pouco tempo com a mãe da criança, mas após a notícia de que ela estava grávida e ele seria o pai, ele assumiu a paternidade e começou a pagar uma pensão de R$ 900. Decorre que passados alguns anos, ele desconfiou que não era o pai da criança e fez o teste de DNA, que confirmou a suspeita. O tribunal entendeu que o homem já havia desenvolvido o vínculo socioafetivo, eis que eles conviviam de forma relativamente normal, com visitas regulares e contatos frequentes, sendo vista a criança como filho do pai e todo o parentesco perante a sociedade. Assim, mesmo que contra sua vontade, o autor da ação não teve êxito em se desvincular da criança, e foi obrigado a assumi-la.
Em mais uma decisão proferida pela mesma Câmara em 11 de março de 2022, foi julgado procedente um pedido de indenização feito por um jovem que descobriu não ser o pai de uma criança registrada como sua filha, e a ex-namorada do autor deverá pagar R$ 4.480 por danos materiais (referentes a consultas, compras, festa de aniversário e alimentação da criança), e R$ 20 mil por danos morais.
Consoante outro precedente de fevereiro de 2018, a 1ª Câmara determinou que uma mulher indenize o ex-marido em R$ 30 mil por não esclarecer a verdadeira paternidade de filho. Nesta situação, o casal se separou logo em seguida ao nascimento do bebê, e quinze anos depois, o ex-marido teve dúvidas sobre a real paternidade e moveu ação de investigação, tendo o resultado do exame de DNA concluído que o filho não era dele. O relator da apelação, afirmou: "Não está aqui a se tratar de discussão acerca dos efeitos morais decorrentes de confessado adultério, mas sim da falsa atribuição de paternidade por parte daquele que detinha condições de evitar tal ocorrência".
De maneira análoga, a 2ª Câmara do Tribunal de Mato Grosso, em fevereiro de 2021, arbitrou uma quantia indenizatória de R$ 5.000 por danos morais contra uma mulher que enganou o ex-companheiro, por mais de oito anos, em relação à paternidade de uma criança, e ainda o chamou de "trouxa" em mensagens de texto, e no REsp 1.741.849, julgado pelo STJ em 20 de outubro de 2020, a questão das dificuldades nos julgamentos foi externada até mesmo pelos eminentes ministros Moura Ribeiro e Nancy Andrighi, que expressaram, respectivamente: "Que caso, hein! Que caso!" e "É muita tristeza esse processo".
No atual panorama, as decisões judiciais demonstram que, diante de um exame de DNA negativo, o pretenso pai induzido em erro só terá o direito a desfazer o vínculo registral se não houver a configuração dos laços afetivos ou se tiver havido sua ruptura (vide decisão do STJ, de 17/11/2021 [4]), cabendo, em qualquer dos casos, somente uma indenização.
Assim, mesmo em face do vício de consentimento, se houver o vínculo socioafetivo, não será possível se desvincular dos deveres e obrigações em relação ao suposto filho, e o pretenso e contrariado pai terá que, involuntariamente, assumi-lo para sempre, havendo a responsabilização forçada da paternidade e de todos seus efeitos (podendo até mesmo ser preso por inadimplência ao pagamento dos alimentos), o que, teoricamente, resguardará o menor, mas não evitará o surgimento uma série de adversidades, como a convivência familiar, os contatos com a genitora e as demais obrigações.
Resta elevado, dessarte, o resultado danoso, em decorrência de que o "falso" genitor será pai de um "falso" filho para sempre, sem contar que os impactos desse ato poderão acarretar diversas perturbações, sequelas, traumas e distúrbios de toda ordem.
Trata-se, como mencionado alhures, de um problema mundial, conforme se extrai do repositório de diversos países como Austrália, Canadá e Reino Unido [5].
Já não bastasse, o tempo de duração dos processos, que podem perdurar por muitos anos, principalmente se houver recursos, é outro agravante, prolongando a angústia de todos os interessados, e de tal premissa extraímos uma indagação: ao final, a quantia comumente arbitrada de danos morais será suficiente para compensar a(s) vítima(s), punir o responsável e prevenir a sociedade de repetições destes atos ilícitos, sabendo-se que, na seara da responsabilidade civil, os danos, na melhor das hipóteses, serão apenas minimizados, e nunca reparados em sua integralidade? Com o devido respeito, entendemos que não.
Oportuno consignar que, via de regra, há dois tipos diferentes de ação para a resolução da controvérsia da paternidade na área cível: a investigação de paternidade, normalmente proposta por iniciativa do filho que procura saber quem é o pai, e a negatória de paternidade, ajuizada pelo suposto pai para ter certeza se realmente é o pai biológico, em busca da verdade real sobre a paternidade.
Em conclusão, conquanto a sociedade venha relativizando a questão da fidelidade, ainda vigora o princípio geral da boa-fé nas relações de filiação, mormente pelo nascimento dos filhos, onde há incontestáveis reflexos lesivos aos envolvidos em acontecimentos que fraudam gravemente os verdadeiros laços familiares, e não há consequências jurídicas significantes ou prevenção apropriada por falta de previsão legal específica, ocasionando em fatídico incentivo e sensação de impunidade.
Logo, deve ocorrer a intervenção do direito e a criação de um tipo penal, facilmente identificado e apto à instauração de um inquérito policial mediante simples comprovação da fraude, como um exame de DNA, sendo crucial que sobrevenham repercussões criminais severas para quem procede de modo ilícito e desleal em circunstâncias intencionais de ocultação, indução ou manutenção de alguém em erro, pelo alto grau de transgressão ao direito, ao Estado, aos familiares, vítima(s) e especialmente aos filhos, que têm direito imprescritível e absoluto ao fiel conhecimento de sua origem e ancestralidade biológica.
[1] CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das Famílias. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, n.p.
[3] Não se ignora as recentíssimas e necessárias discussões sobre a adoção de inteligência artificial para proferir julgamentos. Todavia, este autor não comunga completamente com esta tendência, sobretudo em casos como estes ora tratados nesse texto, que revelam a indispensabilidade dos juízes humanos, pois cada caso é um caso.
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