Direito Civil Atual

O que observar na proposta de reforma do Direito de Família alemão (parte 1)

Autor

  • Adisson Leal

    é advogado no Sturzenegger e Cavalcante Advogados Associados e doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.

13 de março de 2023, 14h21

Na sequência das eleições parlamentares de 2021, social-democratas (SPD), "verdes" (Bündnis 90/Die Grünen) e liberais (FDP) formaram a coalizão que levou Olaf Scholz ao cargo de Primeiro Ministro, distribuiu ministérios e assentou diversos nortes para o novo governo.

ConJur
No acordo que concentra formalmente os principais alinhamentos entre as forças políticas que compõem a chamada Koalition, base que forma o governo alemão a cada eleição parlamentar, as sinalizações de reforma do direito de família foram bastante notáveis e têm dado o que falar.

O texto, intitulado Mehr Fortschritt wagen: Bündnis für Freiheit, Gerechtigkeit und Nachhaltigkeit (algo como "Ousar mais progresso: aliança pela liberdade, justiça e sustentabilidade"), aborda temas como guarda, assistência e sustento dos filhos, disposições sobre parentalidade mesmo antes da concepção, presunção de maternidade quanto a filhos havidos em casamento entre duas mulheres, mitigação do casamento como critério de prevalência para adoção, direito processual de família, direito da infância, alimentos etc.

Para além dos últimos episódios relativos à união entre pessoas do mesmo sexo, a última grande reforma do direito de família alemão resultou de um compromisso do Parlamento, ainda em 1976, levando a termo substanciais mudanças em diversos temas relativos ao casamento e à família, tais como a superação da posição subjugada da mulher, no casamento, como dona de casa (Hausfrauenehe), em prol de um princípio de igualdade na relação (Partnerschaftliche Prinzip); a substituição, na separação, do princípio da culpa pelo princípio da ruptura; a criação de uma jurisdição especializada em matéria de família; nome de família etc [1].

Como os principais pilares do direito civil ocidental assentam-se na convergência romano-germânica, é inevitável que o debate em torno do direito de família alemão se faça sentir por aqui. Sendo assim, quais pontos da reforma merecem destaque, tendo em vista a relevância dos temas para o direito brasileiro?

Nessas breves linhas, destacamos o item mais controverso da proposta da coalizão para "modernizar o direito de família" (ideia-chave do acordo de coalizão): a comunhão de responsabilidade. Na primeira parte da coluna, traremos uma visão geral sobre a proposta, já com alguma contextualização com o direito brasileiro, seguindo-se, em uma segunda parte, aos contrapontos da oposição alemã e considerações críticas sobre a ideia e sua viabilidade ou não no Brasil.

A coalizão propõe a criação de um instituto jurídico intitulado Verantwortungsgemeinschaft, alçando-o à proteção do direito de família ao lado do casamento (Ehe), instituto-paradigma, e de outros institutos secundários, tais como a parceria de vida registrada (Eingetragene Lebenspartnerschaft) e a comunhão de vida não matrimonial (Nichteheliche Lebensgemeinschaft), apenas aparentemente semelhantes ao que aqui chamamos, respectivamente, de união estável e de concubinato, mas com substanciais diferenças em termos de reconhecimento e tutela jurídica típica do direito de família e do direito das sucessões.

Aliás, como prova do caráter paradigmático do casamento na Alemanha, a lei que disciplinou a referida parceria de vida registrada (Lebenspartnerschaftsgesetz), de 2001, autorizou tão somente pessoas do mesmo sexo a formalizarem tais relações mediante registro, conferindo-lhes direitos típicos de família e sucessões. No entanto, a sucessão legislativa sobre o tema acabou criando um interessante cenário de direito intertemporal.

É que, com a edição da lei que alterou a seção 1353 do Código Civil alemão — Burgerliches Gesetzbuch (BGB) — para prever o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2017, consignou-se que as parcerias de vida somente poderiam ser registradas até 30 de setembro de 2017. A partir de então, restou a via do casamento, seja direto, seja por conversão das parcerias de vida registradas enquanto a lei as permitiu.

Assim, todos os caminhos voltaram a desaguar no casamento, sem distinção, agora, de gênero dos nubentes.

No Brasil, a redação mais inclusiva da Constituição Federal de 1988 acabou dando margem para um indevido e gradual abandono do caráter paradigmático do casamento. Mesmo assim, apesar dessa tendência de equiparação da união estável ao casamento, mantemo-nos filiados à leitura do art. 226 da Constituição como um norte para um direito de família inclusivo e abrangente, porém orientado ao paradigma do casamento.

Nesse sentido, Eduardo de Oliveira Leite registra que, "em momento algum o constituinte de 1988 pretendeu igualar as duas realidades jurídicas". Destacando o teor do §3º do art. 226, conclui que a determinação a que a lei facilite a conversão da união estável em casamento é uma prova de que "o parâmetro perseguido pelo constituinte, apesar do reconhecimento de novas formas de conjugalidade, continua sendo o casamento" [2].

De volta à comunhão de responsabilidade, segundo o ministro da Justiça alemão, Marco Buschmann (FDP), a comunhão de responsabilidade consiste na possibilidade de pessoas que não têm entre si uma relação amorosa assumirem responsabilidade uma pela outra de maneira juridicamente segura. Para Buschmann, tal modelo pode ser uma solução, por exemplo, para pessoas idosas que percam seus companheiros e decidam compartilhar moradia e demais responsabilidades ou para pessoas que compartilhem a criação de um menor [3].

A ideia não surge com a coalizão, sendo uma pauta um pouco mais antiga de mandatários do partido FDP, que chegaram a apresentar no Parlamento, em 2020, um material sobre o tema, consignando que, pela comunhão de responsabilidade, duas ou mais pessoas maiores, que não sejam casadas, que não vivam em comunhão ou parceria de vida e não sejam parentes, poderiam, por livre escolha e sem dificuldades burocráticas, estabelecer entre si uma relação pessoal próxima, não necessariamente com coabitação, mediante registro específico em cartório a partir do qual o vínculo passaria a produzir efeitos em relação a terceiros.

A relação jurídica se extinguiria automaticamente pela morte de uma das pessoas ou pela manifestação de uma delas, após um "período de transição".

Tudo à guisa de fortalecimento da autodeterminação nos planos de vida, segundo consta do documento parlamentar apresentado pelo FDP [4], na mesma linha defendida pelo ministro Buschmann, que chega a classificar o pretenso instituto como um "parentesco eletivo" (Wahlverwandtschaft).

No entanto, como já era de se esperar, a ideia tem encontrado relevante resistência, seja do ponto de vista jurídico, seja sociopolítico e cultural, contando com duras críticas da oposição, a exemplo do registro feito pela Deputada Dorothee Bär (CDU/CSU), que consignou que "a coalizão confunde modernidade com arbitrariedade" [5].

Na segunda parte deste texto, traremos informações sobre o cenário da discussão na Alemanha e considerações críticas a respeito da proposta e sua contextualização com o cenário jurídico brasileiro.

 

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[1] Vor 45 Jahren: Bundestag reformiert das Ehe- und Familienrecht. Disponível em: https://www.bundestag.de/dokumente/textarchiv/2021/kw13-kalenderblatt-832104. Acesso em 13 mar. 2023.

[2] LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao Novo Código Civil. v. XXI. 5 ed. p. 58. São Paulo: Forense, 2009.

[3] Modell für Lebensgemeinschaften: Buschmann will "Verantwortungsgemeinschaft". Disponível em: https://www.zdf.de/nachrichten/politik/buschmann-justizministerium-modell-lebensgemeinschaften-100.html. Acesso em: 9. mar. 2023.

[4] Deutscher Bundestag. Drucksache 1/16454, 13.01.2020. 19. Wahlperiode. Disponível em: https://dserver.bundestag.de/btd/19/164/1916454.pdf. Acesso em: 9. mar. 2023.

[5] Geplante Verantwor­tungs­gemeinschaft stößt auf Kritik. Disponível em: https://www.bundestag.de/dokumente/textarchiv/2022/kw02-de-familie-874494. Acesso em: 13 mar. 2023.

Autores

  • Brave

    é coordenador da Filial Brasília do escritório Magro Advogados, doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, professor e coordenador do Curso de Direito da Universidade Católica de Brasília, foi pesquisador-visitante da Ludwig-Maximilians-Universität München e foi assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal.

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