Processo Tributário

Autoexecutoriedade e medidas indutivas de conduta do contribuinte

Autor

  • Camila Campos Vergueiro

    é advogada doutoranda pela Unimar mestre em Direito Tributário pela PUC-SP professora do Curso de Especialização do Ibet do programa de pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGV Law) e do Complexo Educacional Damásio de Jesus professora e coordenadora do curso de extensão Processo Tributário Analítico do Ibet e coordenadora do grupo de estudos de Processo tributário analítico do Ibet.

19 de março de 2023, 8h00

Há algumas semanas, as mídias jurídicas noticiaram que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do artigo 139, inciso IV, do Código de Processo Civil/2015, ao julgar improcedente a ação direta de inconstitucionalidade 5.941. Nessa ocasião, restou definida a possibilidade de o magistrado adotar medidas "não convencionais" [1] a fim de dar cumprimento às suas decisões — são exemplos a apreensão de passaporte e de carteira de habilitação, a aplicação de multa diária para coagir o cumprimento do comando judicial, o bloqueio do cartão de crédito ou seu cancelamento, a proibição de licitar com o poder público etc.

Conquanto os operadores do direito de conflitos não tributários tenham ficado melancólicos com esse julgamento — por entenderem que tais medidas, quando materializadas em processos individuais, podem gerar restrições ao exercício de garantias constitucionais fundamentais, como os direitos de ir e vir, de propriedade e da liberdade econômica, o mesmo não se pode dizer quanto aos que atuam com conflitos tributários.

Ora, como reiteradamente demonstrado, mesmo que implicitamente, em outros artigos desta coluna, a solução de conflitos tributários, apesar de operacionalizada pelas regras gerais do sistema processual civil, tem suas especificidades, as quais decorrem não só da natureza do direito material controvertido, mas também porque instaurado (o conflito) numa relação em que um dos sujeitos é a Fazenda Pública.

Por essa perspectiva o julgado adrede referido nos interessa, menos para discutir se são (in)constitucionais medidas não convencionais e, mais, para demonstrar que no âmbito do direito tributário em conflito já se convive "desde sempre" com providências indutoras de conduta, inclusive propagadas independentemente da interferência judicial.

Como aponta Paulo Cesar Conrado, medidas desse quilate integram o grupo de "estímulos negativos — desconfortos, incômodos, para sermos mais claros —, cujo emprego é autorizado pelo sistema jurídico para criar no espírito do contribuinte faltante 'desejo' suficientemente forte de cumprir o dever inadimplido" [2].

O primeiro aspecto que merece destaque a respeito das medidas não convencionais indutoras de conduta do devedor é o do seu foco ejetor, se judicial ou extrajudicial.

Tratando-se de conflitos não tributários, as medidas não convencionais compreendem atos produzidos no domínio de um processo judicial individual e objetivam materializar o que foi decidido.

Se estamos diante de um conflito tributário, portadora que é a Fazenda Pública do poder de autoexecutoriedade de seus atos (até o limite da expropriação patrimonial, âmbito em que a provocação da jurisdição por meio do processo executivo é imprescindível), as medidas não convencionais são produzidas extrajudicialmente e buscam encorajar o pagamento espontâneo [3] da dívida tributária.

Esse primeiro ponto imbrica no segundo, atinente ao sujeito legitimado para a determinação das medidas.

Nos conflitos não tributários, a autoridade investida de competência para determinar as medidas não convencionais é o juiz. Por sua vez, nos conflitos tributários, elas são aplicadas pelo próprio ente tributante, tão logo detecte o inadimplemento do crédito tributário [4], dispensando-se, portanto, a interferência judicial.

Assim, em âmbito administrativo, a autoridade tributária está autorizada (havendo previsão legal) a bloquear a emissão de certidão de regularidade fiscal (CND), vedar a participação em licitação com o poder público, inscrever o nome do contribuinte-devedor nos cadastros de restrição ao crédito (públicos e privados — ex.: Cadin, Serasa), protestar as certidões de dívida ativa, obter informações de ativos financeiros durante o período de fiscalização (a conhecida quebra do sigilo bancário) etc. Esse "pacote" de medidas constituem o que denominamos de meios não convencionais de indução ao adimplemento do crédito tributário [5].

Outra peculiaridade que se detecta quando da adoção dessas medidas não convencionais, é o fato de que, à luz do CPC/2015, as providências do artigo 139, inciso IV nos conflitos não tributários almejam o cumprimento de ordem judicial, portanto, dar efetividade [6] ao processo [7] instalado. Por sua vez, no conflito tributário o uso dessas diligências se voltam a estimular o adimplemento antes do ajuizamento da execução fiscal, o que demonstra nítido propósito de desjudicialização.

Esse aspecto, o da desjudicialização inerente às medidas, deixa claro que, ao menos no tocante à relação tributária em conflito, a regulamentação de meios não convencionais que fomentam o cumprimento dos deveres pecuniários inadimplidos é uma realidade (ácida para muitos) de longa data legitimada, inclusive pelo mesmo Supremo Tribunal Federal, o que nos leva à conclusão de que, no direito tributário, especificamente sobre o assunto tratado, a desjudicialização é um valor que integra as especulações processuais muito antes da vigência do Código de Processo Civil de 2015.

 


[1] A expressão utilizada tem sido "medidas judiciais atípicas", contudo, porque estabelecidas em dispositivo normativo estão tipificadas. O fato de não estarem nominadas uma a uma, por serem admitidas em lei devem ser reconhecidas típicas. A expressão que reputamos melhor as qualifica é "não convencionais", a um, porque, por não estarem previstas no ordenamento jurídico até a entrada em vigor do CPC/2015 não eram utilizadas historicamente no exercício da jurisdição (e nem podiam ser já que não admitidas normativamente), a dois, por se tratar de medidas cuja adoção deve se dar em caráter excepcional, a três, porque, parece-nos, a ideia de convenção está atrelada ao costume forense, não convencionais porque não são da praxe forense.

[3] Admite-se aqui a ideia de espontaneidade pressuposta ao exercício da coação estatal no processo executivo onde serão praticados atos de constrição e alienação patrimonial se não efetivado o pagamento pelo contribuinte-executado.

[4] A expressão crédito tributário está sendo utilizada aqui no sentido de prestação pecuniária, e não no sentido de direito subjetivo.

[5] Desditosamente, como bem apontou Paulo Conrado em artigo publicado nesta coluna (vide nota de rodapé 3), no ambiente do contencioso tributário essas medidas são indevidamente nominadas de meios de "cobrança indireta".

[6] Como preleciona Cassio Scarpinella Bueno, o princípio da efetividade do processo "volta-se mais especificamente aos resultados da tutela jurisdicional no plano material, exterior ao processo", por isso sugere que a expressão "efetividade do processo" seja substituída por outra que "coloque ênfase onde ela deve ser posta: efetividade do direito pelo e no processo", já que a "efetividade do processo" deve ser medida "pela sua capacidade de tornar reais (concretizados) os direitos controvertidos, ameaçados ou lesionados". – In Manual de direito processual civil [livro eletrônico]. 4ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

[7] A expressão processo aqui, está sendo utilizada no sentido de relação jurídica processual judicial triádica, desta forma, composta pela conjunção de seus três atores, autor, juiz e réu.

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    é advogada, doutoranda pela Unimar, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professora do curso de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do programa de pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGV LAW) e do Complexo Educacional Damásio de Jesus, professora e coordenadora do curso de extensão e do grupo de estudos Processo Tributário Analítico, do Ibet.

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