O dever de motivação nos despachos de recepção do impeachment presidencial
18 de março de 2023, 9h13
A comissão especial do Senado aprovou, em 21 de novembro de 2022, anteprojeto para lei geral do impeachment, tendo em vista a compatibilização do instituto, então disciplinado pela Lei nº 1.079, de 1950, com a Constituição de 1988. Uma de suas novidades mais marcantes é a disciplina legal ao juízo preliminar de recepção do impeachment, sintetizada no artigo 29. Conforme dispõe, o presidente da Casa Legislativa teria 30 dias para emitir despacho com a sua decisão, "necessariamente motivada".
Das normas vigentes que regram a recepção do impeachment, não consta, específica e explicitamente, um "dever de motivação". Na prática, ele não tem sido acatado de forma satisfatória. É discutível, inclusive, se a inserção legal de uma previsão genérica bastará para mudar isso.
De 1990 a 2022, foram expedidos, pela Presidência da Câmara dos Deputados, 202 despachos em resposta a pedidos de impeachment presidencial. Considerando-se o argumento principal com que foram motivados, eles podem ser agrupados em: a) falta de comprovação de legitimidade ativa para proposição da denúncia; b) perda de objeto do pedido; c) análise de mérito da conduta imputada; e d) indisponível para consulta.
No primeiro grupo, reúnem-se 53 despachos. Eles indeferem as denúncias com base em exames meramente formais da documentação juntada. No geral, verificam a ausência de cópia autenticada de título do eleitor do denunciante, requisito para demonstrar o gozo dos direitos políticos e, por extensão, de legitimidade ativa para solicitar o impeachment (artigo 14, L1079/50).
Esses descuidos tendem a diminuir com a aprovação do anteprojeto. Ele prevê a redução do rol de legitimados à petição de impeachment para somente partidos políticos com representação no Poder Legislativo, OAB, entidade de classe ou organização sindical de âmbito nacional e, nos termos da iniciativa legislativa popular, um conjunto expressivo de cidadãos. Confere-se ainda competência para o Ministério Público apurar responsabilidade criminal em caso de "abuso no oferecimento da denúncia".
No segundo grupo, há 43 despachos, sendo 12 em relação a Dilma Rousseff e 31 em relação a Michel Temer. Por força de lei, pedidos de impeachment só podem ser recebidos enquanto o denunciado não tiver deixado o seu cargo (artigo 15, L1079/50). Este dispositivo tem sido manobrado como uma válvula de escape para denúncias inoportunas politicamente no momento em que são protocoladas. Em suma, evita-se respondê-las de pronto, o mandato expira e, só então, despacha-se o arquivamento. Não se presta contas, assim, dos motivos que levaram a denúncia a não ser recebida de início. O fato de nenhum despacho ter sido dado aos pedidos de impeachment contra Jair Bolsonaro, embora 145 denúncias por crime de responsabilidade, no mínimo, tenham sido protocoladas contra ele, é ilustrativo.
A reação do anteprojeto foi submeter a emissão dos despachos a prazos de 30 dias. Se ela não ocorrer neste intervalo de tempo, a denúncia é tida como indeferida e recursos são habilitados: da Presidência da Câmara dos deputados à Mesa Diretora, se requerido por um terço dos deputados federais; e da Mesa Diretora ao Plenário da Casa, se requerido pela maioria dos deputados federais.
No terceiro grupo, tem-se 41 despachos que se fundamentaram no mérito da conduta imputada ao Presidente da República. Eles seguem a linha argumentativa de que a imputação seria genérica em excesso, inviabilizando o exercício do contraditório do denunciado; de que ela estaria amparada apenas por matérias jornalísticas, ainda não verificadas por canais oficiais do Estado; e, enfim, de que ela não seria subsumível aos "tipos penais aventados", sem explicar o porquê disso. Pouco se pode extrair deles para a construção de um entendimento sobre quais seriam as exigências materiais à recepção do impeachment, então deixado à míngua.
O mais inquietante é que, em absolutamente nenhum despacho, foram apresentados argumentos políticos. A presidência da Câmara dos Deputados, encabeçada por um político, eleito por políticos, designada para gerir um corpo político, influenciada por fatores políticos, a um instituto político, como o impeachment, jamais se valeu, sequer uma vez, de argumentos políticos para justificar as suas decisões. De repente, ela se reveste de um saber exclusivamente jurídico para fundamentá-las, como se a política não mais fosse importante.
Quando parlamentares apresentam argumentos apenas jurídicos em sede de impeachment, o objetivo é afastar a sua responsabilidade política pela tomada de decisão, de acordo com Neal Katyal. A culpa seria da lei, que não teria deixado escolha e obrigado a decisão em tal sentido. O componente político do impeachment, naturalmente sensível, é mascarado, ofuscado do foco social. Quer-se restringir um debate com participação ampla do povo, aliená-lo a um segmento específico da comunidade jurídica. O espaço a political accountability pretende ser, assim, reduzido.
É preciso ter em mente que uma decisão da presidência da Câmara dos deputados sobre recepção do impeachment, seja ela qual for, somente se mantém se tiver suporte de uma maioria parlamentar — a qual é, por sua vez, constituída por acordos políticos. Em última instância, se esta não for respeitada, tem a prerrogativa regimental de propor uma resolução, com requerimento de inclusão de pauta, para sujeitar o tema à deliberação do Plenário da Casa.
Exemplo emblemático, nesse sentido, ocorreu em 2016, após a saída de Eduardo Cunha e assunção provisória da presidência da Câmara dos deputados por Waldir Maranhão. Por meio de seu cargo, ele emitiu um despacho que anulava a votação do impeachment de Dilma Rousseff. Como esta não era vontade política da maioria parlamentar, foi pressionado a soltar uma nota constrangedora depois de um dia, na qual revogou a sua decisão anterior.
Por fim, no quarto grupo, constam 65 despachos que estão indisponíveis para consulta. Todos os outros despachos tiverem de ser localizados manualmente pelo Diário da Câmara dos Deputados (DCD), a partir de tabela com as suas datas de expedição. Ocorre que muitos foram suprimidos da publicação — sem contar que diversas datas estão incorretas e várias edições do DCD, inacessíveis. Quando contatada a respeito por via recursal, a presidência da Câmara dos Deputados, mesmo assim, negou-se a fornecê-los.
Não é razoável que um número tão significativo de justificativas às decisões sejam escondidas da sociedade. É incompatível não apenas com a Lei de Acesso à Informação, mas com o instituto do impeachment em si. Em primeiro lugar, porque crimes de responsabilidade são infrações políticas, danos imediatamente causados à sociedade em seu conjunto — logo, interessada elementar no assunto. Em segundo lugar, porque obsta a construção de um entendimento sobre as exigências da presidência da Câmara dos deputados à recepção do impeachment. E, em terceiro lugar, porque a transparência é princípio fundamental para o impeachment, conforme sublinhado pelo STF na ADPF 378.
Em conclusão, na sua maioria esmagadora, o conjunto de 202 despachos mostra o desatendimento sistemático ao dever de motivação. Ou adiam a sua expedição para não ter de expor os motivos que ora justificam o seu arquivamento; ou dissimulam mediante argumentos exclusivamente jurídicos e genéricos; ou, simplesmente, deixam de publicá-los.
A nova lei do impeachment tem potencial para mudar isso. A previsão normativa de um "dever de motivação" tem de ser acompanhada de um "dever de publicidade". Ela precisa ser aplicável à análise de mérito das denúncias também — o que o anteprojeto não deixa claro. Neste exame de mérito, em nome da transparência, é essencial reivindicar a presença de argumentos políticos na exposição de motivos que levaram à decisão tomada, sabendo-se que, inevitavelmente, eles serão determinantes. Um avanço seria exigir a indicação da relação de líderes partidários que estão a apoiá-la — um estímulo para a political accountability.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!