Opinião

Incertezas regulatórias do PAT: insegurança jurídica, litigiosidade e concorrência

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15 de março de 2023, 6h06

Passados mais de 45 anos da criação do PAT (Programa de Alimentação do Trabalhador), é natural que legislação venha a exigir mudanças, visando bem adequar o paradigma legislativo às tendências contemporâneas do trabalho humano e aos novos modelos de negócios surgidos pelo impacto da tecnologia. Objetivamente, a Lei 6.321/1976  que instituiu o PAT  estabeleceu um regime jurídico híbrido, elevando o primado da boa alimentação do trabalhador com correlato incentivo fiscal às empresas vinculadas ao programa socioalimentar. Trata-se, portanto, de norma de viés social que se projeta sobre a atividade produtiva e, elevando preceitos de boa cidadania corporativa, através de benefício fiscal correspondente, estimula o setor empresarial a capitanear ações e iniciativas com vistas à saudável alimentação dos colaboradores e de suas famílias.    

Antonio Cruz/Agência Brasil
Antonio Cruz/Agência Brasil

Sobre o ponto, em precedente referencial, ainda sob redação original do PAT, a egrégia Suprema Corte, em acórdão capitaneado pelo eminente ministro Décio Miranda, afirmara que a "Lei nº 6.321, de 14.4.1976, ao dispor sobre programas de alimentação do trabalhador, com prioridade de atendimento aos de baixa renda e mediante incentivo fiscal às empresas, que, para atendimento deles, podem deduzir do lucro tributável para fins do imposto sobre a renda, o dobro das despesas comprovadamente realizadas", vindo a concluir que "a Lei nº 6.321, citada, não é norma precípua de direito tributário, mas de direito social-trabalhista, pois seu objetivo é a alimentação do trabalhador, não a disciplina tributária em si mesmo considerada" (STF, j. 18.12.1981).

Com o advento da Constituição de 1988, a Lei 6.321/1976 foi naturalmente recepcionada, recebendo a importante missão de bem atender os imperativos constitucionais de regência. Sem cortinas, o direito à alimentação adequada e saudável goza de proteção constitucional de relevo. Veja-se, no Capítulo II do rol de Garantias Fundamentais, a CF/88 determinou que são direitos sociais "a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados" (artigo 6º). Ou seja, não por acaso, "a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho" estão lado a lado, indicando nítida preocupação do Constituinte com progresso nacional através da elevação cultural, bem-estar e ganhos de produtividade do trabalhador brasileiro.

Adiante, ao versar sobre os direitos trabalhistas, a Constituição determinou que o salário-mínimo deveria ser capaz de atender as necessidades básicas do trabalhador e de sua família, firmando ênfase na alimentação, educação, moradia, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social (artigo 7º, IV). Já ao discorrer sobre a Ordem Social (artigo 193, CF), o legislador constitucional estabeleceu que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos" (artigo 196). E, sabidamente, a boa alimentação traduz medida essencial à redução do risco de doenças e outros agravos, sendo, portanto, o PAT, nos exatos termos constitucionais, exemplo concreto de política pública a ser efetivada de forma otimizada com vistas à máxima realização fática dos princípios, regras e valores que norteiam o direito posto.

Com vigência prevista para maio do ano corrente, a Lei nº 14.442/2022 impôs alterações substantivas no regramento do PAT, criando desafios hermenêuticos e dificuldades operacionais ainda carentes de norte determinado. Em complemento normativo, o Decreto nº 10.845/22 bem que tentou, mas foi extremamente lacônico no dever de bem regulamentar as respectivas inovações legislativas. Tal Decreto, aliás, já foi inclusive alvo da ADI na colenda Suprema Corte, a qual restou desconhecida por não configurar hipótese viável de inconstitucionalidade direta e frontal [1]. Ou seja, as discussões futuras irão para o campo da legalidade ordinária e da justa adequação da normatividade infralegal, salvo o surgir de superveniente inconstitucionalidade chapada. Assim, entre dúvidas e incertezas, o futuro acena alta litigiosidade diante da ausência de balizas claras a bem atender os preceitos de segurança jurídica.

Entre os pontos nodais, destacam-se os seguintes aspectos do novo paradigma normativo do PAT: 1) o serviço de pagamento de alimentação poderá adotar arranjo aberto ou fechado, 2) a imposição de interoperabilidade entre os arranjos fechados e abertos às empresas facilitadoras de aquisição de refeições ou gêneros alimentícios, objetivando o compartilhamento da rede credenciada de estabelecimentos comerciais, 3) a portabilidade do serviço de pagamento mediante solicitação do trabalhador,  4)  definição da fórmula de cálculo do incentivo fiscal correspondente, 5) a proibição de qualquer tipo de deságio ou descontos sobre o valor contratado, bem como a vedação de prazos de repasse ou pagamento que possam descaracterizar a natureza pré-paga dos valores a serem repassados aos trabalhadores.

As questões em liça são de representatividade econômica relevante. Ora, o segmento de benefícios alimentares movimenta cifras bilionárias, atraindo big players multinacionais e inúmeras empresas regionais e locais. Com a possibilidade legal de arranjos abertos, muitos bancos e fintechs despertam crescente interesse sobre o mercado, visando ampliar a rede de relacionamentos comerciais, bem como potencializar a inclusão financeira e bancarização. Logo, os níveis de concorrência tendem a se intensificar, alterando a tradicional lógica de captação de clientela por oferta de vantagens aos RHs, pois proibidas no novo paradigma legal.

Diante da pressão concorrencial, as margens de lucro podem ser significativamente pressionadas, exigindo-se olhar criativo sobre as possibilidades lícitas de incentivo comercial  foco especial sobre o trabalhador (portabilidade reforça tal ênfase) , à luz de circunstâncias e particularidades que poderão ser variantes nas diferentes regiões do país. Sob viés jurídico-comercial, trata-se de two-step approach, com primeira incidência sobre empresas beneficiárias e, ato contínuo, sobre os respectivos empregados, mediante ofertas válidas de preservação e fidelização de clientela (pretensa minoração dos riscos de portabilidade e outras formas de migração contratual). No todo, cria-se sensível acréscimo de complexidade ao setor de benefícios alimentares, a exigir arranjos contratuais flexíveis e práticas comerciais mais dinâmicas.

Não bastassem as dificuldades inerentes às necessárias readequações estruturais, o fato é que as dúvidas operacionais do novo modelo regulatório são agudas e urgentes: como será a portabilidade? Haverá prazo de mínimo de carência contratual ou o trânsito será livre? As práticas de interoperabilidade (fechado-fechado ou fechado-aberto) deverão permitir compartilhamento irrestrito da rede credenciada? Práticas hostis de cooptação comercial serão alvo de indenização, passível de exclusão do PAT por execução inadequada? A concessão de vantagens acessórias poderá ser englobada no âmbito de dedução fiscal do PAT? Eventual interpretação restritiva seria válida mesmo nos casos de benefícios anexos diretamente relacionados ao bem-estar do trabalhador?

Sim, os questionamentos são muitos; as respostas, absolutamente insuficientes. Salvo o surgir de um regramento complementar minudente, claro e assertivo, é de intuir que os Tribunais serão chamados a resolver inúmeros conflitos em estado de potência. Em tempo, a vida ensina que o melhor antídoto à litigiosidade é a boa lei. A dúvida faz questionar o justo, relativizando o imperativo de segurança jurídica. No cerrar das cortinas, não são apenas diretrizes fundamentais do PAT que estão em xeque, mas o próprio desiderato constitucional da boa e saudável alimentação do trabalhador que pode ser afetado por um modelo regulatório com insuficiências substantivas.

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