Ameaça à liberdade

Projeto de lei da Flórida pretende extinguir proteção a jornalistas e mídia

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12 de março de 2023, 8h24

A pedido do governador da Flórida, Ron DeSantis, parlamentares republicanos da Assembleia Legislativa do estado apresentaram um projeto de lei que pretende facilitar a "figuras públicas" processar jornalistas, escritores e os meios de comunicação que eles utilizam em seu trabalho por difamação.

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Objetivo dos autores da lei é que a discussão chegue à Suprema Corte
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A Seção 1 do PL visa a acabar com os "privilégios do jornalista". Estabelece que a proteção contra processos por difamação "não se aplica quando o réu é um jornalista profissional ou órgão de imprensa". No artigo seguinte, esclarece:

"Como usado neste capítulo, o termo 'difamação ou ato ilícito (relativo à) privacidade' se refere à ofensa escrita contra a honra (libel), ofensa falada contra a honra (slander), impressão falsa (false light), invasão de privacidade ou qualquer outro ato ilícito existente em qualquer publicação, exibição, expressão vocal, tais como em qualquer edição de jornal, livro ou revista, em qualquer exibição de um filme ou em qualquer publicação, exibição ou expressão verbal na internet."

O projeto de lei é flagrantemente inconstitucional, pois contraria a decisão da Suprema Corte em New York Times v. Sullivan, de 1964, que estabeleceu limites estritos para uma figura pública processar jornalistas e órgãos de imprensa, como lembram as publicações USA Today, The Guardian e Vox.

De acordo com essa decisão da Suprema Corte, para responsabilizar um jornalista ou a mídia por ofensa contra a honra, não basta ao autor da ação (uma figura pública) provar que a notícia é falsa. Ele deve demonstrar que o réu (ou ré) publicou a notícia sabendo que era falsa ou por imprudente descaso com sua falsidade.

Em outras palavras, o autor da ação deve provar que o réu agiu com "malícia real" (actual malice), um termo utilizado na decisão, para sintetizar a ideia de que alguém pode disseminar informações falsas sobre uma figura pública com má intenção — em vez de por ausência de malícia.

A corte justificou a decisão com o argumento de que "a liberdade de expressão precisa de espaço para respirar, a fim de sobreviver".

O PL da Flórida (HB 991) tenta enfraquecer o conceito de malícia real, para facilitar a capacidade de figuras públicas de processar jornalistas e órgãos de imprensa.

"Uma figura pública não precisa provar malícia real para prevalecer em uma ação por difamação, quando a alegação não se relacione à razão de seu status público", estabelece o PL. Nesse caso, uma figura pública pode processar jornalistas e meios de comunicação pela divulgação de qualquer notícia que cause danos a sua reputação.

Fontes anônimas
O PL da Flórida também procura responsabilizar a imprensa por publicar notícias colhidas de "fontes anônimas". Segundo o PL, "qualquer declaração obtida de uma fonte anônima é presumivelmente falsa, para os propósitos de uma ação movida por difamação".

"No caso em que um réu, em uma ação por difamação, se recuse a identificar a fonte de uma declaração difamatória, o autor da ação precisa apenas provar que o réu agiu negligentemente ao publicar tal declaração difamatória", estabelece o PL. Jornalistas poderão ser obrigados a testemunhar em juízo.

Se esse dispositivo legal existisse durante o governo de Richard Nixon, o ex-presidente poderia ter processado os jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein, bem como o jornal Washington Post, por não terem revelado (por mais de 30 anos, por sinal) a fonte das informações que resultaram no escândalo de Watergate e na renúncia de Nixon.

O PL estabelece ainda que qualquer alegação de que alguém discriminou outra pessoa ou grupo por causa de sua raça, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero constituirá, por si mesmo, um caso de difamação.

O governador Ron DeSantis — que prepara o lançamento de sua candidatura às eleições presidenciais de 2024 — e seus aliados republicanos na Assembleia Legislativa têm sido muito criticados pela aprovação de leis que proíbem o uso de alguns livros e censuram currículos nas escolas da Flórida por tratarem exatamente desses assuntos.

O fato de a lei proposta ser inconstitucional não preocupa o governador e os parlamentares republicanos. Está claro para eles — e para todo mundo — que a lei, uma vez aprovada, será contestada na Justiça. Qualquer decisão em primeiro e segundo graus será objeto, no final das contas, de recurso à Suprema Corte.

E aí está o objetivo final da lei: pedir à Suprema Corte que revogue o precedente estabelecido há quase 60 anos, em New York Times v. Sullivan, que limitou a capacidade de autoridades públicas (posteriormente mudado para figuras públicas) de processar jornalistas e órgãos de imprensa por difamação.

Pelo menos dois ministros conservadores, Clarence Thomas e Neil Gorsuch, já opinaram publicamente que esse precedente deve ser revisto. Com a composição atual da corte, de seis ministros conservadores e apenas três liberais, não será surpresa se o destino de "Sullivan" for o mesmo de Roe v. Wade, o precedente que legalizou o aborto em todo o país, mas que foi revogado no ano passado.

False light
O site The First Amendment Encyclopedia explica que false light é a falsa impressão criada sobre uma pessoa, por meio de palavras ou fotos, que a retrata como alguém que ela não é — e, portanto, causa danos à sua reputação. Há alguns critérios a serem observados:

  1. A falsa impressão é altamente ofensiva, do ponto de vista de uma pessoa razoável;
  2. O autor sabia que a impressão (criada) era falsa ou agiu com descaso imprudente da falsidade;
  3. Diferentemente de ofensa escrita ou falada à honra, que gera indenização por danos à reputação, a falsa impressão, na condição de ato ilícito, gera compensação por danos emocionais. Assim, uma corporação não pode processar por (criação de) impressão falsa.

A (criação) de impressão falsa entra na categoria e invasão de privacidade e não é protegida pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos.

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