Opinião

Regulação das plataformas digitais: o Brasil no caminho do debate global

Autores

  • Felippe Mendonça

    é advogado professor mestre e doutor em Direito pela USP associado fundador da Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos (Faddh) e membro do Grupo de Trabalho criado pelo Ministério dos Direitos Humanos para o desenvolvimento para a apresentação de estratégias de combate ao discurso de ódio e ao extremismo.

  • Leonardo David Quintiliano

    é advogado professor especialista em Direito Digital pela FMP mestre em Direito pela Universidade de Lisboa doutor em Direito do Estado pela USP e associado fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD).

10 de março de 2023, 7h12

O debate em torno da regulação das plataformas digitais não está em seu auge apenas no Brasil. O tema é de importância global e tem ocupado a agenda não apenas das entidades ou plataformas que discutem a governança mundial da internet, como o Internet Governance Forum (IGF) [1], mas também de instituições como a Unesco, que têm debatido diretrizes para regulamentação das redes sociais. Essas diretrizes são adotadas mediante um amplo diálogo global, com consulta a representantes de todas as partes interessadas.

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A regulação da internet é um tema complexo e controverso. Por um lado, o excesso de regulação pode permitir um abuso institucional por governos nacionais de controle e monitoramento de conteúdo na rede. Por outro, o uso e dependência cada vez maiores da informação no "capitalismo informacional" [2] gerou problemas de segurança para usuários e titulares de dados e outros direitos.

Entre esses problemas, ganha destaque o excesso de conteúdo informacional inapropriado e prejudicial, como discurso de ódio, bullying e desinformação na internet, especialmente nas redes sociais.

Em sua 41ª Conferência Geral, a Unesco respaldou os princípios da Declaração de Windhoek+305, que reconheceu a informação como um bem público e estabeleceu objetivos para garantir que este recurso seja compartilhado por toda a humanidade, a saber: a) a transparência das plataformas digitais, b) o empoderamento dos cidadãos através da alfabetização midiática e informacional e c) a viabilidade dos meios de informação (Unesco, 2021).

A Conferência "Internet for Trust", da Unesco
Nos dias 21 a 23 de fevereiro de 2023, a Unesco promoveu uma Conferência Global para discutir um esboço de diretrizes de regulamentação das plataformas digitais elaborado por meio de um processo de consulta a representantes de diversos setores da sociedade civil e dos Estados, que teve início em setembro de 2022.

Segundo a Unesco, o objetivo dessas diretrizes

"é apoiar o desenvolvimento e a implementação de processos regulatórios que garantam liberdade de expressão e o acesso a informações, bem assim tratar o conteúdo ilegal e aqueles que poderiam colocar em risco significativo a democracia e o gozo de direitos humanos" (UNESCO, 2023, p. 4).

Ainda segundo o documento, as referidas diretrizes constituem uma "intimação" para que os Estados implementem uma regulação compatível com normas internacionais que versem sobre direitos humanos e com o artigo 19 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) [3].

O documento contém mais de 30 páginas de diretrizes, o que sinaliza a complexidade do tema. Tais diretrizes permeiam todo o processo de regulação de plataformas digitais pelos Estados nacionais, principiando com o enfoque geral da regulação, seguido pela descrição das responsabilidades das diferentes partes interessadas (UNESCO, 2023, p. 6 et seq.).

O objetivo de qualquer regulação estatal das plataformas digitais deve incluir, segundo o esboço, a garantia da liberdade de expressão, o direito de acesso à informação e outros direitos humanos. Tal objetivo deve estar previsto em lei e deve ser concretizado com base em um processo transparente, democrático e baseado em evidências (§17).

As propostas também defendem que a regulação deve estar centrada nos sistemas e processos utilizados pelas plataformas, e não no julgamento dos conteúdos individuais, os quais não podem renunciar o devido processo legal e a supervisão judicial (§18).

Quanto ao modelo de enfoque de regulação adotado, sugere-se a corregulação, em que o Estado adota normas gerais de regulação, em concorrência com normas adotadas pelas plataformas (§21).

O documento e o próprio encontro se preocupam em garantir um equilíbrio entre a redução de circulação de conteúdos ilícitos ou que atentem contra a democracia e os direitos humanos e que preservem também outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e o acesso à informação. Nesse sentido, no § 27, "a", o esboço determina que qualquer restrição a conteúdos deve estar prevista em lei, ter um fim legítimo, ser necessária e proporcional, assegurar a liberdade de expressão dos usuários, seu acesso à informação, igualdade e não discriminação, autonomia, dignidade, reputação, privacidade, associação e participação pública.

Em outra frente, há forte preocupação com a transparência na moderação de conteúdo a ser realizada pelas plataformas digitais. Desse modo, os Estados deveriam adotar regulação que exija das plataformas um controle sobre os pedidos de remoção de conteúdo e as remoções efetuadas, bem como o processo desde sua solicitação (§27, "d"). No entanto, para evitar ofensa à liberdade de expressão, deve-se evitar a censura prévia e os cortes de internet (§27, "e").

No que toca às obrigações e responsabilidades das plataformas, o documento recomenda não impor a estas uma obrigação geral de supervisão, nem lhes estabelecer um sistema de responsabilização objetiva. As plataformas devem ser responsabilizadas apenas se não adotarem as medidas previstas em lei para detecção, identificação, eliminação ou desativação do acesso a conteúdos ilegais. Nesse sentido, o esboço destaca que a imposição desmedida de responsabilidades e penalidades às plataformas pode limitar a liberdade de expressão (§27, "f" e "g"). Por outro lado, as plataformas devem respeitar os direitos humanos e adotar ferramentas que fomentem seu respeito pelos usuários, como a adoção de critérios transparentes de moderação e transparência durante a moderação, campanha e mecanismos permanentes de educação e conscientização dos usuários, entre outros (§28).

O documento avança ainda em outras questões, como a garantia de participação multissetorial e a independência dos órgãos de supervisão e controle (§§41 a 43), bem como a preocupação com as formas de moderação de conteúdo, humanas ou automatizadas. Nesse aspecto, evidencia-se uma preocupação em garantir a máxima transparência ao usuário na retirada de conteúdos e seu amplo direito ao contraditório e à legítima defesa, bem como a cautela que a moderação deve observar para não violar direitos fundamentais (§§ 52 a 59 e 89 a 91).

A posição do Brasil
O Brasil, nesse contexto, está inserido no debate com a atuação de órgãos do poder público e entidades da sociedade civil organizada, merecendo destaque a carta enviada pelo presidente da República à diretora-geral da Unesco, Audrey Azoulay, no último dia 18 de fevereiro e o Grupo de Trabalho de combate ao discurso de ódio e ao extremismo criado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, com a participação de 24 representantes da sociedade civil e previsão de participação de outros representantes da sociedade como ouvintes.

O presidente Lula, em sua carta destinada à diretora-geral da Unesco, ressalta a importância das plataformas digitais e os benefícios trazidos pelo desenvolvimento da internet, ressaltando, entretanto, que esses benefícios não são distribuídos de forma proporcional entre as pessoas de classes sociais distintas, ampliando a desigualdade, por gerar uma concentração de mercado e de poder nas mãos de poucas empresas e países. Em seguida, o presidente apresenta outros danos que a internet vem causando às sociedades modernas, colocando em risco a democracia em diversos países, prejudicando a convivência civilizada entre as pessoas, disseminando desinformações em plena pandemia e, com isso, causando inúmeras mortes, além de potencializar discursos de ódio, sendo as pessoas mais vulneráveis das sociedades as mais atingidas por esses problemas.

Lula relembra os atos de vandalismo ocorridos no Brasil no dia 8 de janeiro de 2023 e aponta a existência de uma campanha golpista que se iniciou muito antes dos fatos daquele dia, usando como munição mentiras e desinformações que tinham como alvo a democracia e a credibilidade das instituições públicas brasileiras, tendo sido, essa campanha, em grande medida gestada, organizada e difundida por redes sociais e aplicativos de mensagens. O presidente ainda correlaciona os métodos utilizados nessa campanha com outros ocorridos em outros lugares do mundo.

A carta presidencial ainda reforça a disposição do Brasil para contribuir com o debate que apenas se inicia e expõe as diretrizes que o presidente, como chefe de Estado, considera determinantes, como a transparência, a democracia, a pluralidade do debate — que deve envolver governos, especialistas e a sociedade civil —, e a coordenação multilateral no plano internacional. Ainda ressalta que devem ser respeitadas e valorizadas a autonomia e a soberania dos países em desenvolvimento nessa área, e que os debates tenham por finalidades impedir que a integridade das democracias seja afetada pelas decisões de poucos atores que controlam as plataformas; garantir o exercício de direitos individuais e coletivos; corrigir as distorções do modelo de negócios que explora os dados pessoais dos usuários; reduzir o fosso digital e promover a autonomia dos países em desenvolvimento; garantir o acesso à internet para todos e; fomentar a educação e as habilidades necessárias para uma inserção ativa e consciente de todos.

Os princípios e posições contidas na carta presidencial referenciarão o grupo de trabalho criado no âmbito do Ministério de Estado dos Direitos Humanos, para a apresentação de estratégias de combate ao discurso de ódio e ao extremismo, e para a propositura de políticas públicas em direitos humanos sobre o tema, composto por cinco representantes do Ministério, vinte e quatro representantes da sociedade civil, além de representantes indicados pela Advocacia-Geral da União, do Ministério da Educação, do Ministério da Igualdade Racial, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, do Ministério das Mulheres, do Ministério dos Povos Indígenas, e da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República.

Em sua fala na abertura dos trabalhos, o ministro Silvio Almeida reiterou que o grupo de trabalho não se destina exclusivamente ao tema da regulação das plataformas digitais, embora inevitavelmente o alcance, mas, sim, ao desenvolvimento de políticas de Estado que combatam o discurso de ódio e o extremismo, em todas as suas formas.

Não obstante, é notório que as plataformas digitais potencializaram de maneira exponencial a difusão do discurso de ódio e manifestações antidemocráticas, o que se deve, em grande parte, ao ambiente desregulado e dútil da internet.

Desse modo, toda discussão sobre políticas de combate ao discurso de ódio e a qualquer expressão que atente contra os valores fundantes das democracias modernas e do próprio Estado de Direito deve, inexoravelmente, tangenciar a infraestrutura digital onde circulam de forma instantânea e sem limites geográficos as comunicações que veiculam tais expressões.

Como se pode ver, a posição do governo brasileiro vai ao encontro das diretrizes debatidas no âmbito da Unesco, na Conferência Global "Internet For Trust", as quais, em sua essência, procuram compatibilizar a salvaguarda da liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, como a propriedade intelectual, com os valores democráticos e os direitos humanos. A iniciativa da Unesco também demonstra que o debate sobre a regulação da internet, em especial das plataformas digitais, não ocorre somente no Brasil e que as respostas governamentais devem observar uma agenda global e não vieses ideológicos, sob pena de limitação indevida de direitos fundamentais e o risco de controle indevido do ambiente informacional por governos ou grupos não comprometidos com os direitos humanos e a democracia.


Referências
CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. In: A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2011, v. 1.

UNESCO. Windhoek + 30 Declaration: information as a public good, World Press Freedom Day 2021. UNESCO World Press Freedom Day International Conference, Windhoek, Namibia. [2021]. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000378158. Acesso em: 4 mar. 23.

UNESCO. Guidelines for regulating digital platforms: a multistakeholder approach to safeguarding freedom of expression and access to information. Internet for Trust – Towards Guidelines for Regulating Digital Platforms for Information as a Public Good, Paris, [2023]. Disponível em: https://bityli.com/JQV14. Acesso em: 4 mar. 23.

INTERNET GOVERNANCE FORUM. Décima Sétima Reunião do Fórum de Governança da Internet.. Relatório resumido. [2022]. Disponível em: https://mail.intgovforum.org/IGF2022_summaryreport_final.pdf. Acesso em 4 mar. 23.

 


[1] O Fórum de Governança da Internet (IGF) é uma plataforma multissetorial global que facilita a discussão de questões de políticas públicas relacionadas à governança da Internet. Conforme relatório final do encontro de 2022, a necessidade de regulamentação do espaço digital foi um dos temas mais abordados. (INTERNET GOVERNANCE FORUM, 2022, p. 31).

[2] Conceito trazido por CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. In: A Sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2011, v. 1, p. 50 et seq.

Autores

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    é advogado no escritório MGRS Advogados Associados. Doutorando e mestre em Direito do Estado pela USP e especialista em Direito Constitucional pela ESDC.

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    é professor de Direito Constitucional e Administrativo, advogado, mestre pela Faculdade de Direito de Lisboa e doutor em Direito pela USP (Universidade de São Paulo). Autor de obras jurídicas.

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