Opinião

8 de Março: entre flores e agressões, até onde avançamos na proteção à mulher

Autor

  • Juliana França David

    é advocacia criminal no França David e Barreto Advogados mestranda em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) secretária da Comissão de Crimes Digitais da OAB-RJ e certificada em Forensic Accounting and Fraud Examination pela West Virginia University.

8 de março de 2023, 15h19

Sempre achei estranha a tradição de distribuir flores no Dia Internacional da Mulher. Mas, ao envelhecer, logo no início da minha revolta, quando entendi a profundidade do machismo e da misoginia que nos assombram todos os dias, passei a achar uma piada de mau gosto. Afinal, são flores para nos homenagear ou para homenagearmos aquelas que não sobreviveram ao patriarcado, como se puséssemos buquês em seus túmulos — muitas vezes, apócrifos? Mulheres que não têm nome. Apenas um número. São estatística?

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Sim, isso é pesado. Porém, como diz o ditado, um povo que não conhece sua história, está fadado a repeti-la. Ouso dizer que minorias que não compreendem a violência que sofreram estarão sempre à mercê das suas correntes.

A própria data, 8 de março, teve atribuída a si, por anos, uma origem violenta (apesar de equivocada, pois se refere a movimentos grevistas ocorridos na Rússia, anos antes, bem como ao Dia das Mulheres, organizado em 1909 pelo Partido Socialista da América) [1]. Isso porque, em 1911, em uma fábrica têxtil de Nova York, houve um incêndio que matou 146 mulheres, as quais, dois anos antes haviam realizado uma greve operária em defesa de seus direitos.

O incêndio, conforme concluíram, ocorreu porque os donos da fábrica não se preocuparam minimamente com a segurança das mulheres que ali trabalhavam — algumas, imigrantes de 14 anos de idade [2]. Além dessa tragédia ter impulsionado movimentos por direitos trabalhistas da época, ele serviu para evidenciar o quanto a mulher operária se encontrava em situação de vulnerabilidade.

Infelizmente, a história dos direitos das mulheres foi escrita com o sangue e o sacrifício das nossas irmãs que não conseguiram sobreviver à luta.

Enfim, em 1975, surge o Dia Internacional da Mulher como o conhecemos hoje, por iniciativa da ONU (Organização das Nações Unidas). Atualmente, a data é celebrada em mais de uma centena de países, como memória anual da luta pela emancipação feminina [3].

E onde estamos, 48 anos depois, no que diz respeito a leis e prestação da justiça?

Bom, não precisamos nos distanciar tanto da criação do dia 8 de março.

Em 1983, Maria da Penha sofreu duas tentativas de assassinato pelo marido abusivo — a primeira com um tiro, que a deixou paraplégica, e a segunda por eletrocução. Após um longo processo e dois julgamentos sem que houvesse uma prestação jurisdicional, o caso foi internacionalizado — perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, pelo Cejil e pelo Cladem — e o Brasil foi acusado de negligência e omissão, por não dispor de aparato suficiente para atender as mulheres em situação de violência doméstica [4].

Somente em 2006, foi promulgada a Lei nº 11.340, conhecida hoje como Lei Maria da Penha, para garantir proteção a mulheres vítimas de violência doméstica, criando os chamados Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, e dando uma dúzia de outras providências.

Mesmo assim, apenas nos meados da última década é que vislumbramos decisões reconhecendo a aplicabilidade da Lei em casos envolvendo mulheres trans, vítimas de violência doméstica [5], uma população em profunda situação de vulnerabilidade, que sofre em dobro, tanto pelo machismo, quanto pela transfobia, ambos tão enraizados.

Por sinal, um parênteses: O Dia Internacional das Mulheres e a luta pelos direitos delas inclui, também, as mulheres trans. Óbvio? Bom, parece que o óbvio ainda precisa ser dito.

E outras previsões legais tratando dos direitos das mulheres?

Bom, primeiramente, podemos mencionar a Lei Carolina Dieckmann (Lei nº 12.737/2012), que teve sua origem em um fato que é velho conhecido das mulheres, que têm constantemente sua sexualidade policiada e, por vezes, negada e rechaçada. Em maio de 2011, a atriz que dá nome à Lei sofreu um ataque hacker em seu computador pessoal. O invasor a chantageou ao obter acesso a diversas fotos nas quais a atriz aparecia nua. De repente era como se o crime fosse uma mulher, dona do próprio corpo, tirar fotos despida, e não alguém invadir a privacidade dos outros, exigindo-lhes vantagem indevida.

Temos também a criação do crime de feminicídio, (Lei nº 13.104/2015), que passou a prever um tipo especial de homicídio qualificado no Código Penal, incluindo no §2º (homicídio qualificado) a seguinte previsão, conforme o inciso VI: Feminicídio (homicídio) contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. Consideram-se, como estas razões, violência doméstica e familiar, bem como menosprezo ou discriminação à condição da mulher.

Mais recentemente, foi sancionada a Lei Mariana Ferrer (Lei nº 14.245/2021), para coibir a prática de violência institucional sofrida por vítimas e testemunhas em casos envolvendo violência de gênero. A Lei recebeu o nome de uma modelo que foi vítima duas vezes — a primeira, de violência sexual. A segunda, veio de um sistema que institucionalizou o machismo e a misoginia, quando ela buscou justiça pelo abuso que sofreu. Pior, mesmo depois de "defesa da honra" ter deixado de ser uma tese aceitável até no júri [6].

Apesar de todas estas leis sinalizarem que a sociedade e os poderes constituídos finalmente compreendem que as mulheres ocupam uma situação de vulnerabilidade e demandam proteção especial do Estado e da sociedade, só consigo sentir aflição por praticamente todas recorrerem ao Direito Penal para tentar solucionar o problema. Afinal, o Direito Penal, apesar de, em sua dimensão simbólica, em teoria, servir para coibir a prática de delitos, em sua dimensão prática, acaba funcionando somente como retribuição após a vítima ter sua integridade, seu bem estar, e sua vida violados ou, por vezes, destruídos. É, no máximo, um prêmio de consolação. Não volta no tempo, não conserta magicamente os frangalhos das tragédias que ficaram.

Você não precisa acreditar em mim. Basta analisar os números.

Segundo o Atlas da Violência, do IPEA, de 2020 [7]:

"Em 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas no Brasil, o que representa uma taxa de 4,3 homicídios para cada 100 mil habitantes do sexo feminino. Seguindo a tendência de redução da taxa geral de homicídios no país, a taxa de homicídios contra mulheres apresentou uma queda de 9,3% entre 2017 e 2018.
(…)
Embora 2018 tenha apresentado uma tendência de redução da violência letal contra as mulheres na comparação com os anos mais recentes, ao se observar um período mais longo no tempo, é possível verificar um incremento nas taxas de homicídios de mulheres no Brasil e em diversas UFs. Entre 2008 e 2018, o Brasil teve um aumento de 4,2% nos assassinatos de mulheres. Em alguns estados, a taxa de homicídios em 2018 mais do que dobrou em relação a 2008: é o caso do Ceará, cujos homicídios de mulheres aumentaram 278,6%; de Roraima, que teve um crescimento de 186,8%; e do Acre, onde o aumento foi de 126,6%. Por seu turno, as maiores reduções no decênio ocorreram no Espírito Santo (52,2%), em São Paulo (36,3%) e no Paraná (35,1%)."

Segundo o relatório, em 2018, uma mulher foi assassinada no Brasil a cada duas horas, totalizando 4.519 vítimas. A cada. Duas. Horas.

Quando nossas leis de proteção à mulher deixarão de ser nomeadas a partir de mulheres que sofreram graves violações? Quando passaremos a evitar as situações, em vez de apenas reagir? Quando o Direito Penal abdicará do protagonismo, cedendo lugar a ações que efetivamente impeçam a violência sofrida pelas mulheres, começando o trabalho pela base, na nossa cultura?

Infelizmente, não tenho a resposta. Vejo, no entanto, que estamos caminhando, ainda que em pequenos passos, na direção certa. Começamos pelo Direito Penal, mas acredito — talvez ingenuamente — que conseguiremos nos descolar do mito da panaceia da criminalização.

Que as flores possam ser ressignificadas como símbolo da nossa luta. Uma luta que nunca perde seu pé no chão e sua humanidade. Como disse alguém anônimo (talvez mulher), que teve seus dizeres atribuídos a Che Guevara: "hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás".

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    é advogada criminalista sócia do escritório França David e Barreto Advogados, mestranda em Direito Processual pela Uerj e em Raciocínio Probatório pela Universitat de Girona, especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes e secretária da Comissão de Crimes Digitais da OAB-RJ.

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