Opinião

Dificuldades do gestor como pressuposto de validade da sentença de improbidade

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6 de março de 2023, 6h41

A Lei 14.230/2021, vigente desde a sua publicação no Diário Oficial da União (DOU), em 26.10.2021 [1], foi responsável por alterar profundamente a Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa  LIA) e pode ser considerada um dos marcos normativos mais polêmicos da atualidade.

Referida realidade é observável pela simples análise da celeuma jurídica travada desde então, o que levou à prolação de decisões absolutamente contraditórias entre si nos tribunais pátrios, em um verdadeiro cenário de insegurança jurídica (que buscou ser encerrado pelo STF através do Tema 1199 mas que, em verdade, apenas contribuiu para fomentá-lo), bem como acaloradas discussões sobre a (in)constitucionalidade de diversas de suas disposições [2].

Ocorre que, dentre as sensíveis alterações promovidas na LIA, algumas de suma importância parecem ter sido relegadas pelo escrutínio jurídico, como é o caso do artigo 17-C [3], que impõe diversos requisitos ao magistrado no momento de proferir a sentença.

Trata-se de dispositivo legal extenso, cujo caput assenta que "A sentença proferida nos processos a que se refere esta Lei deverá, além de observar o disposto no artigo 489 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil): […]", tornando tais disposições como elementos essenciais da sentença em ações de improbidade administrativa.

Destaca-se, para os fins do estudo proposto, o disposto no inciso III do referido artigo, que prevê que o magistrado deverá, no momento de proferir a decisão que coloca fim ao processo de conhecimento, "considerar os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados e das circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente".

Referido dispositivo possui inegável inspiração no artigo 22, caput, da LINDB [4], que dispõe que "Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados".

Como explica Irene NOHARA, trata-se do chamado primado da realidade, o qual "[…] indica a necessidade de se interpretar o texto normativo e as exigências da gestão pública também da perspectiva das dificuldades reais do gestor e das exigências das políticas públicas a seu cargo, sendo averiguadas, quando da regularização da situação, as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente […]" (2022, p. 825).

No mesmo sentido, Carlos Ari SUNDFELD explica que, "Mesmo nos casos em que decisões dos órgãos de controle forem tomadas com base em regras claras, é necessário e prudente considerar, à luz do caso, as circunstâncias fáticas que se apresentaram no momento da prática do ato em exame. Isso significa avaliar a situação à luz de suas peculiaridades, das informações de que o administrador dispunha à época, dos respectivos custos e do que se pretendia alcançar naquele momento (artigo 22) […]" (2022, p. 47).

Complementando que "A finalidade é garantir maior contextualização nas decisões públicas. A lei assume que, para o controlador julgar as decisões ou condutas administrativas, é razoável que ele considere os ônus vivenciados pelo gestor público. Trata-se de um possível desdobramento do chamado teste de deferência, o qual já estava presente na literatura e na jurisprudência estrangeira, com maior intensidade. Com essa dinâmica, a lei procura impor a consideração da realidade ‘carne e osso’ do gestor, alinhando-se a uma concepção mais realista, pragmática ou empírica do direito público". (2022, p. 139-140).

Logo, as dificuldades práticas do gestor devem ser levadas em consideração pelos órgãos de controle externo no momento de fiscalizar a atuação dos agentes públicos.

Frise-se que o controle da Administração Pública pode ser classificado sob diferentes paradigmas: quanto à localização do controle, este se divide em interno e externo.

 No caso do controle dos atos do Poder Executivo realizado pelo Poder Judiciário estar-se-á falando em controle externo, como leciona Rodrigo Pironti Aguirre de CASTRO (2008, p. 113):

"Quanto à localização do controle, verifica-se a existência do controle interno e do controle externo. O primeiro é aquele realizado pela própria Administração e é inerente a cada um dos órgãos e entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário no exercício de suas atividades administrativas; o segundo é aquele realizado por órgão estranho à Administração, por quem não pertence à Administração que emanou o ato controlado, v.g., o controle do Executivo pelo Judiciário e pelo Legislativo e o controle pelos Tribunais de Contas. O controle externo pode, ainda, ser exercido pelo próprio particular que pode e deve provocar o procedimento de controle, não apenas na defesa de seus próprios interesses, mas na defesa dos interesses da coletividade, é chamado controle social ou popular".

Ademais, o controle também pode ser analisado sob a ótica do momento em que se efetiva, caso em que poderá ser prévio, concomitante ou posterior a emanação do ato controlado [5].

Sob este enfoque, a ação de improbidade administrativa se enquadra como um instrumento de controle externo da Administração Pública que se realiza através do Poder Judiciário e é, por excelência, posterior à prolação dos atos administrativos, com a finalidade precípua de aplicar sanções ao gestor público desonesto, cuja a atuação viola a probidade administrativa.

Ocorre que o exercício do controle externo e a posteriori geralmente é maculado por um vício de ordem prática: a análise do fenômeno pretérito sob a égide do conhecimento presente, quando já se conhece o desfecho e as consequências da decisão tomada.

Há um verdadeiro anacronismo decisório, em que o controlador decide com base em conhecimentos que o tomador da decisão não detinha à época dos fatos, sendo evidente a insegurança jurídica gerada pela atividade controladora realizada em tais moldes.

A este respeito, Rodrigo Valgas dos SANTOS (2020, p. 269-270) leciona que:

"O artigo 22 da LINDB exige que na interpretação das normas sobre gestão pública sejam considerados os obstáculos e dificuldades reais do gestor, o que certamente envolve aspectos quanto às informações que detinha ao decidir evitando que o ente controlador atue como 'engenheiro de obra feita' ou 'apite o jogo com consulta ao VAR'. O artigo 22, caput, da LINDB impõe sejam considerados na atividade administrativa, controladora e judicial 'os obstáculos e as dificuldades reais do gestor', tal qual ocorreu no desenvolvimento da jurisprudência da BJR nos EUA. É o chamado hindsight bias, ou viés retrospectivo, que induz a fácil percepção dos desdobramentos de um evento já ocorrido exatamente porque já aconteceu, fazendo parecer que certas decisões se mostrem equivocadas exatamente por já terem dado errado, o que em verdade não seria facilmente perceptível quando do lapso temporal em que decisão foi adotada".

Daniel KAHNEMAN, por sua vez, complementa que "O viés retrospectivo apresenta efeitos perniciosos nas estimativas dos tomadores de decisão. Leva os observadores a avaliar a qualidade de uma decisão sem considerar se o processo foi sólido, mas se o desfecho foi bom ou ruim". (2012, p. 254).

Portanto, o artigo 17-C, III, da LIA exige do magistrado que, ao realizar o controle externo e posterior dos atos do gestor público, coloque-se no lugar dele e analise a ocorrência ou não de um ato de improbidade a partir do contexto fático efetivamente apresentado ao administrador público, sob a luz dos conhecimentos revelados ao administrador público à época, levando-se em conta, ainda, as exigências de efetivação de políticas públicas impostas quando a decisão foi tomada.

É vedado o controle anacrônico dos atos dos gestores públicos, principalmente pois se está diante de uma legislação que, muitas das vezes, aplica sanções mais gravosas do que as aplicadas na própria esfera penal, razão pela qual andou bem o legislador na referida inclusão normativa.

A este respeito, poderia ser questionada a real necessidade da previsão do artigo 17-C, III, na LIA, haja vista que a LINDB já prevê tal exigência dos órgãos controladores, sendo que "as normas contidas na LINDB possuem alcance para todas as dogmáticas, para todos os ramos das ciências jurídicas, e propõe-se a conduzir o operador do direito no exercício da interpretação, buscando evitar compreensões distorcidas, e, para tal, fixando conceitos gerais de vigência, revogação, vacância, dispondo ainda sobre questões relativas a aplicabilidade da lei no tempo e no espaço, sendo, pois, considerada metanorma". (GOMES; SAMPAIO; ARAÚJO, 2020, p. 444).

Parece-nos que a inclusão do artigo 17-C, III à LIA não foi um mero descuido do legislador, que teria repetido comando legal já previsto no diploma normativo que baliza a interpretação do direito brasileiro, mas, em verdade, uma medida de efetivação e afirmação do referido comando legal [6].

É que, quando se olha para o campo prático, observa-se que a LINDB é subutilizada [7] pelos órgãos de controle da Administração Pública, que parecem resistir às balizas impostas pela Lei 13.655/2018, deixando de aplicá-las na forma devida.

Em análise à jurisprudência posterior à promulgação da Lei 13.655/2018, são raras as menções às dificuldades reais do gestor quando do julgamento colegiado das ações de improbidade administrativa, razão pela qual a intenção do legislador reformador de 2021 parece ter sido a de reforçar que é dever dos magistrados observar o primado da realidade [8].

Ademais, quando o artigo 17-C da LIA elenca que a sentença proferida nas ações de improbidade administrativa deverá observar as dificuldades reais do gestor à época dos fatos, "além de observar o disposto no artigo 489 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)", deixa claro que a decisão que não realizar referida análise padecerá de vício de fundamentação, acarretando a sua nulidade.

Isto, pois, o citado artigo 489 do CPC prevê os elementos mínimos da sentença, dentre eles a fundamentação, que "consistente na indicação dos motivos que justificam, juridicamente, a conclusão a que se tenha chegado. Este é um ponto essencial: fundamentar é justificar. É que a decisão precisa ser legitimada democraticamente, isto é, a decisão precisa ser constitucionalmente legítima. Para isso, é absolutamente essencial que o órgão jurisdicional, ao decidir, aponte os motivos que justificam constitucionalmente aquela decisão, de modo que ela possa ser considerada a decisão correta para a hipótese" (CÂMARA, 2022, p. 294).

Por esta razão, Alexandre Freitas CÂMARA explica que "a existência de um vício de fundamentação (que pode consistir em sua absoluta ausência ou na existência de uma fundamentação inadmissível, assim entendida a que se enquadra em alguma das hipóteses previstas nos incisos do §1o do artigo 489, ou que não atende à exigência feita pelo §2o do mesmo artigo) acarreta a nulidade da decisão judicial". (2022, p. 303)

Em suma, a LIA, ao elevar o dever de considerar as dificuldades reais do gestor ao patamar de elemento mínimo da sentença de improbidade administrativa, impõe que tal análise é pressuposto de validade da referida decisão, de modo que a sua ausência deverá ensejar a declaração de nulidade do ato decisório, por ausência de fundamentação adequada, nos termos do artigo 11 do CPC e do artigo 93, IX, da CF.

A tarefa imposta sobre o magistrado certamente é árdua, o que não retira a sua necessidade, pois o ofício do administrador público, de gerir a máquina estatal visando a promoção de políticas públicas também o é, sendo lógico que o controle de tais atos se coloque diante da realidade nua e crua observada pelo tomador de decisões à época dos fatos, sob pena de se legitimar um controle judicial anacrônico e aplicador de sanções severas, o que perpetuará o já observado fenômeno do apagão das canetas na Administração Pública brasileira.

 

Referências

CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 8. Ed., Barueri: Atlas, 2022.

CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre De. Sistema de controle interno: uma perspectiva do modelo de gestão pública gerencial. 2. Ed., Belo Horizonte: Fórum, 2008.

GOMES, Filipe Lobo; SAMPAIO, Thyago Bezerra; ARAÚJO, Lean Antônio Ferreira De. LINDB e argumentação jurídica: da efetiva motivação dos atos pelo administrador público para a superação dos conceitos jurídicos abstratos. RJLB – Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 6 (2020), nº 2, p. 439-464.

JUSTEN FILHO, Marçal. Artigo 20 da LIDNB: Dever de transparência, concretude e proporcionalidade nas decisões públicas. Rev. Direito Adm. Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 13-41, nov. 2018.

KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

NOHARA, Irene. Direito Administrativo, 11. ed., Barueri, SP: Atlas, 2022.

SANTOS, Rodrigo Valgas Dos. Direito administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos. 1. Ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo: o novo olhar da LINDB. Belo Horizonte: Fórum, 2022.

VITORELLI, Edilson. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e a ampliação dos parâmetros de controle dos atos administrativos: um novo paradigma. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 19, nº 78, p. 195-219, out./ dez. 2019.

 


[1] Conforme disposto no artigo 5º, da Lei 14.230/2021, "Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação".

[2] Vide o ajuizamento, até então, das ADIs 7042, 7043 e 7236 perante o STF.

[3] Que foi incluído na LIA pela Lei 14.230/2021, sendo dispositivo absolutamente novo, e não meramente alterado pelo novo marco legal.

[4] A Lei 13.655/2018 foi responsável por incluir os artigos 20 a 30 na LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), com o intuito de conceder "segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público", como disposto em sua ementa. Por esta razão, Edilson VITORELLI observa que "A LINDB, que sempre foi um diploma importante para o Direito Internacional Privado, para o Direito Civil e para a hermenêutica jurídica, foi transportado para o universo do Direito Administrativo" (VITORELLI, Edilson. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e a ampliação dos parâmetros de controle dos atos administrativos: um novo paradigma. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 19, nº 78, p. 196, out./ dez. 2019). Ainda, Marçal JUSTEN FILHO acrescenta que "As inovações introduzidas pela Lei nº 13.655/2018 destinam-se preponderantemente a reduzir certas práticas que resultam em insegurança jurídica no desenvolvimento da atividade estatal" (JUSTEN FILHO, Marçal. Artigo 20 da LIDNB: Dever de transparência, concretude e proporcionalidade nas decisões públicas. Rev. Direito Adm. Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 15, nov. 2018).

[5] Conforme leciona Rodrigo Pironti Aguirre de CASTRO, "Quanto ao momento em que se efetiva o controle, ele pode ser: 1) prévio, quando realizado antes do surgimento do ato e tem como principais aspectos as funções autorizativas e orientadoras; 2) concomitante, quando o controle se faz em todas as etapas do nascimento do ato administrativo, sua principal característica é o caráter orientador; e 3) posterior, quando o controle se faz após a emanação do ato, o controle posterior pode ainda ter o condão corretivo ou punitivo, dependendo do caso". (2008, p. 113).

[6] Tal qual ocorreu com a previsão de que o ato de improbidade administrativa ocorre somente mediante a existência de dolo, não bastando a mera voluntariedade do agente e excluindo a malsinada improbidade culposa, que foi repetida à exaustão pelo legislador reformador de 2021.

[7] E, em muitos casos, mal utilizada, como ocorre com a noção de "erro grosseiro", prevista no artigo 28 da LINDB e cuja a finalidade era limitar a responsabilização de agentes públicos pelos controladores externos, principalmente no âmbito dos Tribunais de Contas. Não obstante, referida ideia foi completamente desvirtuada, a ponto de qualquer erro ser enquadrado como "grosseiro" para fins de sancionamento; ou seja: o instituto que deveria limitar o sancionamento, é utilizado como critério legal para realizá-lo de forma ainda mais incisiva.

[8] Destaca-se como bom exemplo da aplicação do primado da realidade às ações de improbidade administrativa, o seguinte julgado do TJ/PR, no qual a Corte Paranaense entendeu inexistir fumus boni iuris nas alegações do MP/PR vez que houve a contratação de agentes de saúde mediante dispensa de licitação em situação de emergência decorrente de surto epidêmico, demonstrando a dificuldade real do gestor no caso: TJ-PR. Acórdão no AI 0015003-13.2019.8.16.0000, Rel. Des. Leonel Cunha (5ª Câmara Cível), julgado em 06.08.2019, publicado em 12.08.2019.

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