Opinião

Prisão por dívida e o privilégio de errar por último

Autor

  • Edson Ribeiro

    é especializado em Direito Penal Econômico e Europeu (UC Portugal) e em Direito Penal Econômico e Crime Organizado (UCLM Espanha). Ex-Vice-Presidente da Comissão Permanente de Direito Penal do IAB. Vice-Presidente da Comissão de Prerrogativas da Sociedade dos Advogados Criminalistas do Estado do Rio de Janeiro (SACERJ) e conselheiro da Associação Nacional da Advocacia Criminal (ANACRIM)

5 de março de 2023, 13h07

O Supremo Tribunal Federal (STF), pelo voto condutor do ministro Luiz Fux, confirmou, por maioria de votos, que juízes podem determinar a apreensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), bem como o passaporte de devedores, para assegurar o cumprimento de ordens judiciais e a quitação de dívidas, desde que não viole direitos fundamentais e respeite os princípios de proporcionalidade e razoabilidade, contrariando a própria Constituição e Tratados Internacionais.

O ministro Edson Fachin, único a apresentar divergência, lucidamente, ressalvou que essas medidas de restrição de liberdade não deveriam ser aplicadas para os devedores que possuem dívidas pendentes.

Pois bem, de acordo com a Convenção de Viena (1969), os tratados  internacionais são acordos internacionais firmados entre estados, na forma  escrita, juridicamente obrigatórios e vinculantes entre os seus  signatários e constituem a principal fonte de obrigação do Direito Internacional.

Como dispõe a Convenção de Viena, em seu artigo 3º, §1º, "Um  Tratado  deve ser interpretado de boa fé e de acordo com o significado de seus termos em seu contexto, à luz de seu objeto e propósitos".

Sobre o tema, Augusto Cançado Trindade [1] leciona que:

"Como em outros campos do Direito  Internacional,  no domínio  da  Proteção internacional   dos   Direitos   Humanos,   os   Estados   contraem   obrigações internacionais  no  livre  e  pleno  exercício  de  sua  soberania,  e  uma  vez  que  o tenham   feito   não   podem   invocar   dificuldades   de   ordem   interna   ou constitucional   de   modo   a   tentar   justificar   o   não-cumprimento   destas obrigações."

Mais adiante, o artigo 27, da Convenção, preceitua que "Uma parte não  pode invocar disposições de seu direito interno como justificativa    para o não cumprimento do tratado".

Portanto,  a  única  maneira  de  um  Estado  se  desvincular  das obrigações  emanadas de  um Tratado  dá-se  através  da denúncia,  pouco  adiantando  a  promulgação  de  lei interna que opere restrições a um direito estabelecido no Tratado.

Neste sentido, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos estabelece, em seu artigo 5º, 2, que

 "Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais  reconhecidos ou vigentes em qualquer  Estado-parte  no  presente Pacto  em  virtude  de  leis,  convenções,  regulamentos  ou  costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau."

Ademais, cabe destaque o artigo 29, letra "a", da Convenção Americana de Direitos Humanos, o qual preceitua que nenhuma disposição da presente convenção pode ser interpretada no sentido de:

a) permitir  a  qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos  na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista.

O Brasil, é  signatário dos principais pactos internacionais sobre Direitos  Humanos, inclusive o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos,  incorporado na legislação pátria por força do Decreto 592, de 06/07/1992 e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ao qual aderiu por força do Decreto 678, de 06/10/1992.

No plano  do  direito  constitucional  brasileiro, cabe destacar que, com  fundamento nos artigos 21, inciso I; artigo 84, inciso VIII; e artigo 49, todos da CRFB/88, face à importância e vinculação, os Tratados são uma autêntica expressão da sistemática, em virtude da integração dos Poderes  Executivo e Legislativo, buscando limitar e descentralizar esta responsabilidade.

Nas palavras de Alejandro  Artúcio [2], o Estado  assume,  ao  ratificar  um  Tratado,  as obrigações  de

"(…);
b)  adaptar  sua  legislação  interna  ao   estabelecido  no  tratado;
c) assegurar  que  suas  autoridades  não  tomem   medidas  ou   ações  que  vão  contra  o disposto no tratado;."

Além disso,  ainda  no  plano  constitucional,  faz-se  necessário  uma  interpretação sistemática  da  Constituição,  no  que  concerne  ao  dever  estatal  de  observância  dos Tratados.

Desta forma, a interpretação do artigo 5º, §2º combinado com o inciso II do artigo 4º, resta evidente que esta norma não comporta uma opção, mas implica num  dever  de  respeito e  aplicação dos tratados  internacionais que o Brasil faça parte. Portanto, é uma imposição  à  estrita  obediência  dos  mesmos, devendo zelar pela estrita observância interna.

Desta interpretação sistemática, extrai-se a conclusão de que os direitos e garantias pactuados nos tratados internacionais, têm aplicação interna  imediata, independente de lei interna que reproduza integralmente o conteúdo do tratado internacional, sendo que o legislador já o fez no  momento da ratificação no nosso regramento jurídico, mediante Decreto Legislativo.

Neste  sentido  é  a  lição  de  Celso  Bastos  e  de  Ives  Gandra [3]  nos  seus  comentários  a Constituição Brasileira.

"A novidade do dispositivo (artigo 5º, §2º) repousa na referência feita  aos 'tratados internacionais' em que a República Federativa do Brasil  seja parte. De qualquer sorte, esta referência é de grande importância porque o texto constitucional está a permitir a inovação, pelos interessados, a partir dos tratados internacionais, o que não se  admitia, então, no Brasil. A doutrina dominante exigia a intermediação  de uma ato de força legislativa para tornar obrigatório à ordem interna um tratado internacional. A menção do parágrafo em questão ao direito  internacional como fonte possível de Direitos e Garantias deve trazer mudanças sensíveis em alguns aspectos do nosso direito. Não será mais possível a sustentação da tese dualista, ou seja, a de que os tratados  obrigam diretamente os Estados, mas não geram direitos subjetivos para  particulares, que ficariam na dependência da referida intermediação legislativa."

Ao efetuar tal  incorporação, a Constituição passa a atribuir aos tratados internacionais uma natureza especial e diferenciada: norma constitucional.

Em face desta interpretação sistemática e teleológica do texto, em virtude da força expansiva dos valores de  dignidade humana e dos direitos e garantias fundamentais, inclusive incorporando as exigências de justiça e dos  valores éticos, projetando-se por todo universo constitucional, sem sombra de dúvida, a Carta Magna de 1988  traz  no seu condão um marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil.

É por isso que José Joaquim Gomes Canotilho [4] afirma que:

"A  legitimidade  material  da  Constituição  não  se  basta  com  um  'dar  forma'  ou 'constituir' de  órgãos; exige  uma  fundamentação  substantiva  para  os  actos  dos poderes  públicos  e  daí  que  ela  tenha  de  ser  um  parâmetro  material, directivo e inspirador desses actos. A fundamentação material é hoje essencialmente fornecida pelo catálogo de direitos fundamentais  (direitos,  liberdades  e  garantias  e  direitos econômicos, sociais e culturais."

O disposto no artigo 5º, §1º, da CF/88, estabelece uma regra  hermenêutica importante, qual seja, a regra da aplicabilidade imediata, sendo absoluta exceção a eficácia limitada. Assim o intérprete sempre   deverá extrair das normas os elementos necessários à sua aplicabilidade imediata.

Com efeito, sempre se deverá  interpretar no sentido mais favorável  possível à aplicabilidade plena e imediata, levando-se em conta a  prevalência da regra mais favorável ao ser humano titular do Direito,  sendo, com efeito, o principal objetivo dos tratados conferir às pessoas a mais ampla proteção possível.

O melhor exemplo que ilustra esta prevalência da regra mais favorável é  a nova interpretação que tem que ser conferida ao artigo 5º, inciso LVII, da CRFB/88.

Ocorre que dispõe o Pacto de San José da Costa Rica, no seu artigo 7º, §7º, que:

"Ninguém  será  detido  por  dívidas.  Este  princípio  não  limita  os  mandados  de autoridade  judiciária  competente  expedidos  em  virtude  de  inadimplemento  de obrigação alimentar".

A Convenção Americana contempla, como bem reconheceu o ministro Fachin, uma única exceção de prisão civil, relacionada com a   obrigação alimentar. Neste  caso, trata-se de um conflito de valores envolvendo os termos liberdade e solidariedade (que assegura muitas  vezes a sobrevivência humana do indivíduo), merecendo prevalência o valor da solidariedade, sem sombra de dúvida o maior e mais protegido de todos os direitos.

Por seu  turno, o Pacto Internacional de  Direitos Civis e Políticos menciona, em seu artigo 11, que "Ninguém poderá ser preso apenas por  não poder cumprir com uma obrigação contratual".

Nesta  linha,  percebe-se que o próprio texto da Constituição, o qual  permite  a decretação da prisão do depositário infiel (artigo 5º, inciso  LXVII) colide com as regras do Direito Internacional, além de   evidenciar uma desarmonia com os princípios fundamentais por ela  própria consagrados, tal como o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Brasileiro (artigo 1º, inciso III, da CRFB/88).

Assim, o fato do Brasil ter aderido ao pacto e tratados citados torna  forçosa a conclusão de que, hodiernamente, no direito pátrio, não é mais  possível a prisão civil do depositário infiel ou por dívida,  já que o Pacto  Internacional de Direitos Civis e Políticos proíbe a prisão oriunda de inadimplemento de obrigação contratual e o Pacto de San José veda a  prisão por dívidas, excetuando apenas a decorrente de obrigação alimentar. Como o depósito advém de uma obrigação contratual e se refere à dívida destituída de caráter alimentar, resta clara a insubsistência da prisão a ela relacionada.

Por conseguinte, se o Brasil ratificou estes instrumentos sem qualquer  reserva no que tange à matéria, não há de se admitir a possibilidade jurídica da prisão civil do depositário infiel ou por dívida.

Não foi por outra razão que a prisão civil por dívida, em tempos outros,  já foi declarada ilegal pelo próprio Supremo Tribunal Federal, o qual, hoje, rechaça, inclusive o disposto no inciso XV, do artigo 5º, da Constituição Federal, o qual expressamente declara:

"é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens".

Em passado recente, na sessão plenária realizada no dia 3 de   dezembro de 2008, os ministros concederam, nos autos do Habeas Corpus 87.585, a um depositário infiel, baseados em entendimento  unânime de que os tratados  internacionais  de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil — entre eles o Pacto de São José da Costa Rica, que proíbe a prisão por dívidas — são hierarquicamente superiores às normas infraconstitucionais. A elevação destes tratados à condição de  norma com força constitucional, porém, não teve a maioria dos votos  da Corte, que  preferiu reconhecer somente que os acordos ratificados têm efeito supralegal.

Por unanimidade, os ministros entenderam que, embora a própria Constituição preveja a prisão do depositário, os tratados sobre Direitos Humanos ratificados pelo Brasil são superiores a leis ordinárias, o que esvazia as regras previstas no Código de Processo Civil, do Código Civil e do Decreto-Lei  911/69, quanto à pena de prisão. Sem  regulamentação, as previsões da Constituição quanto à prisão perdem a efetividade, já que não são de aplicação direta.

Conseqüentemente, a Súmula  619,  do  STF, foi revogada pela Corte,  por sugestão do saudoso ministro Menezes Direito. A  norma  dizia que  "a prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio  processo em que se constitui  o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito".

Assim, tem-se que qualquer norma que admita a prisão de depositário  infiel, tal qual a prevista pelo artigo 7º, da Lei 8.866/94, é inconstitucional  e, consequentemente, o pedido de prisão civil será,  por  óbvio,  juridicamente impossível.

De igual modo, o inciso 4º, do artigo 139, do novo Código de Processo Civil é tecnicamente inconstitucional, independentemente do novo entendimento do Supremo Tribunal Federal, o qual insiste no seu privilégio de errar por último.


[1]  TRINDADE, Augusto Calçado. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos  Fundamentos Jurídicos e Instrumentos Básicos. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 47.

[2] ARTÚCIO, Alejandro. Seminário sobre derechos económicos, sociales y culturales. Bogotá, 1992, p. 21.

[3] BASTOS, Celso;  MARTINS,  Ives  Gandra. Comentários à Constituição do Brasil,   São  Paulo:  Saraiva, 1989, v.2, p. 39).

[4] CANOTILHO, Joaquim  José  Gomes. Direito Constitucional,  6ª  ed.  rev.,  Coimbra:  Livraria  Almedina, 1993, p. 74).

Autores

  • é especializado em Direito Penal Econômico e Europeu (UC, Portugal) e em Direito Penal Econômico e Crime Organizado (UCLM, Espanha). Ex-Vice-Presidente da Comissão Permanente de Direito Penal do IAB. Vice-Presidente da Comissão de Prerrogativas da Sociedade dos Advogados Criminalistas do Estado do Rio de Janeiro (SACERJ) e conselheiro da Associação Nacional da Advocacia Criminal (ANACRIM)

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