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Bueno e Gomes: Marco do saneamento e reestatização de serviços

3 de março de 2023, 17h23

Por Leandro Augusto de Araujo Cunha Teixeira Bueno, Carlos Jacques Vieira Gomes

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A Lei nº 14.026/2020, instituidora do Novo Marco do Saneamento Básico, originou-se do Projeto de Lei nº 4.162/2019, de autoria do Executivo, cuja exposição de motivos endereçava a baixa capacidade regulatória dos titulares dos serviços, que seria geradora de ineficiências diversas  influenciando em qualidade e preço  e de custos de transação aos prestadores, públicos e privados, que trabalham para diferentes titulares no ramo do saneamento.

Nesse diapasão, o debate parlamentar foi, em boa parte, tomado por um espírito da necessidade de ampliação das privatizações, via modelo de concessões, para esses serviços públicos, como método apto a viabilizar tanto a modicidade tarifária, quanto a universalização dos serviços.

Inobstante essa visão mais privatista em voga no Parlamento à época do primeiro ano do governo do então presidente Jair Bolsonaro, como reconheceu o Parecer nº 71/2020-Plen, do eminente senador Tasso Jereissatti, relator da matéria no Senado, a novel legislação, embora incentivadora das concessões, não extinguiu a possibilidade de prestação dos serviços diretamente pelo titular estatal, enraizada no artigo 175 da Constituição[1].

Para além disso, tendo sido o projeto de lei aprovado pelo Congresso e sancionado pelo Executivo, é certo que a Lei promulgada adquire força própria, independente da vontade dos legisladores participantes das votações ou de suas visões mais ou menos liberalizantes.

Isso porque a chamada interpretação histórica da Lei, que busca dela retirar a intenção ou a vontade do legislador, como nos alertava Dworkin (2000, p. 219-220), tem as suas fragilidades e cede espaço à interpretação lógico-sistemática, que buscará o significado da norma a lume das demais normas integrantes do sistema jurídico, atenta, em especial, ao que estabelece a Constituição.

Embora importantes organismos internacionais, como a OCDE [2] e o Banco Mundial, tenham advogado pelo incremento da participação do setor privado nos serviços de saneamento básico, ainda não há um consenso de que o modelo de concessão dos serviços públicos seja a melhor alternativa, em todos os casos, para o atendimento do interesse da população.

Assim, na contramão dessas visões mais privatistas, nota-se um relevante movimento de reestatização [3] dos serviços de água e esgoto em diversas partes do mundo, que significa trazer de volta ao Estado serviços que tenham sido entregues à exploração privada, mas que, por diversos motivos, não se refletiram em melhor qualidade, modicidade tarifária e universalização.

Segundo estudo conduzido no ano de 2017 pelo Transnational Institute (TNI) (Reclaiming Public Services — How cities and citizens are turning back privatisation), identificaram-se 267 casos de reestatização de serviços de água e esgoto, principalmente na França (106), Estados Unidos (63), Espanha (27), Alemanha (17) e Argentina (8). Note-se que, no ano de 2000, eram conhecidos apenas três casos de reestatização nesse campo, fato que evidencia essa força reestatizante não pode ser desprezada.

Na doutrina, Morgan (2011) sustenta que diversos estudos demonstram que a introdução do modelo de liberalização gerenciada levou a uma reação eleitoral e a uma alteração das regras que regem a prestação de serviços de água.

Já Riegraf explica que a reestatização busca o estabelecimento de arranjos alternativos para a prestação de serviços públicos, os quais não serão dedicados, em principal instância, à perseguição de lucros [4].

Lefèvre e Andréassian (2016) atribuem a causa do processo de reestatização de serviços de água e esgoto ocorrido na França principalmente às altas dos preços e aos escândalos de corrupção. Ademais, verificam similaridades dentre diversas cidades no mundo que buscaram a reestatização: fraco desempenho dos prestadores, subinvestimento, aumento das tarifas, falta de transparência e má qualidade dos serviços [5].

Ainda, sob a ótica dos custos de transação a onerarem a contratação do setor privado, muitos municípios passaram a reestatizar seus serviços de água, inclusive nos Estados Unidos, país em que a prestação estatal corresponde a quase metade dos serviços (Pagano, 2016).

Nesse sentido, esse tema não possui (ou não deveria ser objeto de) uma motivação ideológica, mas visto com pragmatismo, na medida em que a reestatização pode representar, em determinados casos, o melhor e mais eficiente atendimento ao interesse coletivo, conforme preleciona Pagano (2016) [6].

Mas, afinal, haveria ou não compatibilidade entre o Novo Marco do Saneamento Básico e o movimento de reestatização de serviços públicos?

A despeito da tendência mais privatizante que imperava à época de sua promulgação e da repercussão dada pela imprensa à nova norma, o texto aprovado certamente não é completamente avesso participação pública na prestação do saneamento básico, a exemplo da dicção do novo artigo 4º-A, §3º, III, da Lei 11.445/2007, a divisar que as normas deverão estimular a cooperação entre os entes federativos com vistas à prestação, à contratação e à regulação dos serviços de forma adequada e eficiente, a fim de buscar a universalização dos serviços e a modicidade tarifária.

Ainda, a novel redação do artigo 10 do mesmo diploma, responsável pela extinção dos chamados contratos de programa, mais importante para o presente estudo, deixa clara a possibilidade de que os serviços públicos sejam prestados diretamente pelo Estado, sem licitação ou contrato de concessão, por entidade que integre a administração do titular:

"Artigo 10. A prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do artigo 175 da Constituição Federal , vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária."

Portanto, a despeito do lugar-comum de que o novo marco teria delimitado uma obrigatoriedade de privatização dos serviços de saneamento básico e seria refratário à prestação estatal, há espaço para que municípios caminhem, de acordo com as suas realidades regionais, em direção à (re)estatização de determinados serviços públicos de saneamento básico, prestando-os diretamente, de forma centralizada ou descentralizada — ou seja, por meio de sua Administração direta ou indireta.

Nada obstaria, inclusive, a instituição de uma nova sociedade de economia mista ou empresa pública municipal voltada à prestação de tais serviços, caso esta se revele, a partir dos estudos carreados pelo Município, o caminho mais adequado e alinhado com o interesse público.

E mais, em determinados casos, sopesadas as suas peculiaridades, são possíveis arranjos mais complexos: exemplificativamente, a existência de um parceiro público ou, até mesmo, privado no capital da estatal a ser constituída pelo município para a prestação dos serviços públicos não significará, necessariamente, uma forma de burlar a norma contida no artigo 10 supra referenciado ou a vedação da continuidade dos contratos de programa.

Diante do que foi apresentado, percebe-se que a definição dos arranjos a conformarem a prestação dos serviços públicos de saneamento básico deve levar em conta as características regionais e econômicas de uma localidade.

Embora certa linha ideológica propugne que modelos de privatização seriam sempre mais eficientes e benéficos à sociedade, analisando a literatura internacional, identifica-se que a verdade corresponde a uma ausência de um consenso quanto à melho reforma de exercício dos serviços públicos de saneamento básico.

Em via contrária a essa suposta tendência privatizante, há, de fato, um notável avanço mundial quanto ao movimento de reestatização de serviços públicos, não somente em países desenvolvidos, mas igualmente em países, como o Brasil, em desenvolvimento.

Independentemente de efeitos benéficos que possam ser atribuídos à competição, em um serviço público que constitui, em boa parte, um monopólio natural, gravado por sua ligação direta com a satisfação de direitos fundamentais dos mais relevantes (saúde, vida, dignidade, dentre outros), é de se ponderar, levando em conta também a experiência internacional, dentro da realidade de cada município, se os custos de transação para a terceirização e a perda de controle sobre serviço tão essencial realmente seriam compensados pelos eventuais benefícios esperados.

Diante do exposto, há sim compatibilidade entre o Novo Marco do Saneamento Básico e o movimento de (re)estatização de serviços públicos.

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Bibliografia
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

LEFÈVRE, Denis; ANDRÉASSIAN, Vazken. L'eau en Péril?: Une Ressource à Préserver Au Quotidien. Paris: Quae, 2016.

MORGAN, Brownen. Water on Tap: Rights and Regulation in the Transnational Governance of Urban Water Services. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.

PAGANO, Michael A. Remaking the Urban Social Contract: Health, Energy, and the Environment. Chicago: University of Illinois Press, 2016.

RIEGRAF, Birgit. Care and Care Work – a Question of Economy, Justice and Democracy. Bingley: Emerald Publishing Limited, 2018.

 


[1] Ressalte-se que entre as mudanças mais importantes está a revisão do instituto do contrato de programa, que continua válido para outras situações de natureza cooperativa entre os entes da federação, nos termos da Lei de Consórcios Públicos. Não será mais possível, entretanto, empregá-lo especificamente para a prestação de serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, cuja outorga deverá ser objeto de concessão, precedida de licitação, como definido no artigo 175 da Constituição Federal, caso os serviços não sejam prestados diretamente pelo titular. (PARECER Nº 71, DE 2020 – PLEN)

[2] A própria OCDE reconhece a relevância do movimento de remunicipalização em seu relatório Water Governance in Cities:

"Várias cidades também estão sujeitas a tendências de liberalização, privatização ou remunicipalização no setor de serviços de água. Hoje, a liberalização está associada ao crescente papel dos contratos de gestão e arrendamento, em que os principais riscos permanecem com o poder público, e não com os atores privados. Isso se deve principalmente a incertezas crescentes, regulamentação mais rígida, recuperação total de custos e riscos de investimento de longo prazo (Menard e Peeroo, 2011). A porcentagem da população mundial servida em certa medida pelo setor privado aumentou de 5% em 1999 para 14% em 2012 (Pinsent Masons, 2012). Por outro lado, a tendência de 'remunicipalização' também foi observada em vários países. De acordo com a Unidade de Pesquisa Internacional de Serviços Públicos (PSIRU, 2014), 41 remunicipalizações ocorreram em países de alta renda entre 2005 e 2009, número que dobrou entre 2010 e 2014. Na última década, a rescisão antecipada ou não renovação de alguns contratos de parceria público-privada (PPP) deu lugar a debates mais abertos e pragmáticos e a evoluções nas formas de recorrer ao setor privado para a gestão de tarefas tão diversas como gestão, consultoria, auditoria, manutenção, subcontratação e/ou o investimento conjunto com autoridades locais (Blanc e Botton, 2012)".

(Organisation, for Economic Co-Operation and Development (OECD). Water Governance in Cities, IWA Publishing, 2016.)

[3] Remunicipalização, se transliterarmos a expressão mais utilizada internacionalmente, qual seja, remunicipalisation.

[4] Os movimentos de remunicipalização têm procurado trazer serviços públicos como energia e água "de volta às mãos do público" (Pigeon et al. , 2012). A chave para essas iniciativas tem sido o fim do modelo voltado apenas ao lucro e a reversão da privatização e do controle corporativo sobre os principais serviços públicos, especialmente onde estes tiveram efeitos prejudiciais no acesso universal, qualidade da prestação de serviços e custos (Pigeon et al., 2012, pág. 10). A remunicipalização procura conceber modelos alternativos de propriedade, acesso e tomada de decisão que não sejam orientados para o lucro financeiro. A política municipal progressista coloca os serviços públicos sob o controle democrático do Município de forma a permitir que os moradores de uma determinada comunidade participem do desenvolvimento de modelos sustentáveis que promovam a equidade e a solidariedade, garantindo os direitos dos trabalhadores e o acesso de todos (cf. Reyes e Russell, 2017). Certamente, o cuidado é um "recurso" ou "serviço" diferente de água ou energia; no entanto, os mesmos critérios desenvolvidos nos modelos de (re)municipalização poderiam ser usados para determinar as necessidades de cuidados e garantir o "direito ao cuidado". De fato, como Kishimoto e Petitjean (2017, p. 159) apontaram, os movimentos de remunicipalização também estão se concentrando em uma ampla gama de serviços, desde creches, creches, limpeza e parques públicos até esportes e alimentação escolar [4]. (RIEGRAF, 2018).

[5] Essa tradição francesa de delegar um serviço público a uma empresa privada permitiu o surgimento de grandes grupos franceses de dimensão internacional, hoje na vanguarda dos líderes mundiais. Mas nos últimos anos, na França, grandes cidades como Paris, Rouen, Cherbourg, Brest, Grenoble, Nice ou mais recentemente Montpellier iniciaram um movimento para remunicipalizar a gestão da água, após aumentos significativos na conta de água. e, aliás, alguns escândalos de corrupção no final da década de 1990 que prejudicaram a credibilidade deste último. Esse fenômeno não afeta apenas nosso país, que tem a mais longa experiência de gestão delegada da água: é internacional. De acordo com o relatório, mais de 180 cidades e comunidades em 35 países recuperaram o controle de seus serviços de água nos últimos quinze anos. Este é particularmente o caso de Buenos Aires, Joanesburgo, Acra, Berlim, Atlanta, Kuala Lumpur… Todas estas cidades apresentam as mesmas razões: o fraco desempenho dos prestadores de serviços, o subinvestimento, o aumento das contas de água, a falta de transparência e a má qualidade dos serviços (…)" (LEFÈVRE e ANDRÉASSIAN, 2016).

[6] "Os custos de transação da participação do setor privado em serviços essenciais podem ser consideráveis em termos de gestão de contratos e supervisão do controle de qualidade, forçando muitos Municípios a questionar se a privatização faz sentido economicamente. A cidade de Paris remunicipalizou seus serviços de água por esses motivos em 2010, calculando que poderia reduzir os custos financeiros e de monitoramento fornecendo água internamente. O fato de Veolia e Suez terem perdido o contrato  duas empresas multinacionais francesas de água que operavam a água da cidade sob contrato nos últimos vinte e cinco anos e atuavam no fornecimento de água em Paris desde 1860  tornou essa remunicipalização um evento particularmente simbólico, mas a força motriz não era ideológica. Houve uma economia imediata de € 35 milhões para o Município no primeiro ano, uma redução de 8% nas tarifas de água para usuários finais e uma integração de porções até então fragmentadas do sistema de água (tornando-o mais fácil de gerenciar). E embora o ímpeto inicial para a remunicipalização tenha vindo de um prefeito do Partido Socialista quase uma década antes, o processo para realizá-lo foi amplamente burocrático, com a maioria dos parisienses desconhecendo a tomada até que ela (perfeitamente) fizesse a transição para uma nova entidade municipal em 1º de janeiro de 2010. Processos burocráticos de tomada de decisão da mesma forma caracterizam grande parte da tendência de remunicipalização nos Estados Unidos, onde a prestação estatal responde por quase metade de todos os serviços do governo local, em média, e onde a terceirização (como remunicipalização é conhecido nos Estados Unidos) tem aumentado na última década ou mais. Aqui, também, as reversões da privatização são um reflexo de um desejo pragmático de empregar reformas de economia de custos que os burocratas consideram funcionar, em oposição a qualquer compromisso particular com noções de interesse público". (PAGANO, 2016).