Grau de limitação do dever alimentar entre parentes colaterais
2 de março de 2023, 7h04
A doutrina vem buscando delimitar o conceito de família, entretanto, este conceito não pode mais ser pautado na interpretação stricto sensu, compreendendo os laços consanguíneos. A família hoje deve ser interpretada por pluralizada, democrática, igualitária, hetero ou homoparental, biológica ou socioafetiva, construída com base na afetividade e de caráter instrumental [1].
Não se pode confundir família e parentesco, estando este incluído naquele que deve ser interpretada de forma ampla.
No conceito de Clóvis Beviláqua, apud Leoni, parentesco é a relação que vincula entre si pessoas que descendem de um mesmo tronco ancestral [2].
Em que pese o critério conceitual ter disso o da consanguinidade, relação biológica, o Código Civil dispõe em seu artigo 1.593, que o parentesco poderá ser não somente o natural, consanguíneo, será ainda reconhecido o parentesco civil ou outra origem, como ocorre com o socioafetivo e decorrente de reprodução assistida heteróloga.
Segundo explica Leoni, o parentesco é estabelecido por linhas e contado por graus. A linha de parentesco, que pode ser reta ou colateral, é a vinculação da pessoa ao tronco ancestral comum. Na linha reta o parentesco é infinito e leva-se em consideração a relação de ascendência e descendência. Dessa forma, determina o artigo 1.591 do CC que são parentes em linha reta as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes. São, portanto, parentes em linha reta o pai em relação ao filho, o avô em relação ao neto, o bisavô em relação ao bisneto e assim sucessivamente. Por outro lado, o parentesco na linha colateral ou transversal está relacionado às pessoas provenientes de um ancestral comum, mas sem descenderem umas das outras. Assim, são parentes colaterais: a) os irmãos; b) o tio em relação ao sobrinho; c) os primos; d) o tio-avô em relação ao sobrinho-neto [3].
In verbis, o artigo 1.592 do CC: "Artigo 1.592. São parentes em linha colateral ou transversal, até o quarto grau, as pessoas provenientes de um só tronco, sem descenderem uma da outra" [4].
Assim, é possível observar que o grau de parentesco em linha reta não há limitação. Em contrapartida, o parentesco em linha transversal, juridicamente é limitado ao quarto grau.
Yussef, apud, Luiza Tosta, aponta que os alimentos naturais são aqueles que se destinam à manutenção necessária da vida da pessoa que é destinatária dos alimentos. Nessa modalidade, os alimentos visam nutrição, saúde, vestuário e moradia [5].
De acordo com o artigo 1.694 do Código Civil, podem os parentes, os cônjuges ou os companheiros pedir, uns aos outros, os alimentos por eles necessitados para viverem de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às obrigações de sua educação.
Assim preceitua o disposto no Código Civil vigente:
"Artigo 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
§1o Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.
§2o Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia.
Artigo 1.695. São devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento" [6].
Segundo Rolf Madaleno, os alimentos são destinados a satisfazer as indigências materiais de sustento, vestuário, habitação e assistência na enfermidade, e também para responder às requisições de índole moral e cultural, devendo as prestações atender à condição social e ao estilo de vida do alimentando, assim como a capacidade econômica do alimentante, e, portanto, amparar uma ajuda familiar integral [7].
Tem-se portanto, que a obrigação alimentar, por vez deve ser fixada de acordo com a necessidade do alimentado, a possibilidade do alimentante e a razoabilidade entre eles, norteadores do quantum a ser fixado.
Imperioso registrar que os alimentos tem o viés de preservar a compatibilidade da condição social de quem o percebe, assegurando a dignidade do necessitado.
Para melhor compreensão do presente ensaio, imperioso se faz elencar as causas jurídicas, ou origens, que justifiquem a obrigação de prestar alimentos.
Rosa Maria de Andrade Nery, classifica os alimentos quanto à origem, como sendo: conjugais, legítimos, contratuais ou convencionais, testamentários e indenizatórios, recíprocos.
Chama-se legítimos aqueles que resultam de parentesco; chama-se de conjugais os que decorrem do casamento, ou da demonstrada institucionalização obtida pelo convívio conjugal de fato; chama-se testamentário ou deixados os alimentos que decorrem de prestação devida por vontade livre do testador; chama-se de indenizatórios os alimentos que são devidos em virtude de condenação civil do alimentante, por decorrência de imputação civil de danos causados com ou sem culpa do imputado [8].
Por contrato de transação, de prestação de serviços, ou ainda por pacto antenupcial, ou de outra modalidade, também podem surgir obrigação e prestação com caráter alimentar, às quais se dão o nome de alimentos contratuais ou convencionais [9].
Ainda que as causas jurídicas sejam diversas das do vínculo parental, nos importa por tanto, abordar a este no presente ensaio.
O artigo 1.697, do CC, dispõe que na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais [10].
Em que pese o disposto no artigo 1.694 do CC, e a delimitação legal de parentesco vinculado ao quarto grau colateral. O dispositivo citado no parágrafo acima vem fundamentando decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no sentido de limitar a obrigação alimentar ao segundo grau em linha colateral.
No acórdão julgado pela terceira turma, de relatoria do ministro Sidnei Beneti, a sobrinha propôs ação de alimentos em face de sua tia, arguindo ser portadora de deficiência física e em condição de vulnerabilidade social, justificando sua necessidade de percepção de verba alimentar, uma vez ser a percepção alimentar advinda do seu genitor insuficiente e, seus avós serem falecidos.
Justificou a legitimidade em face da tia alegando que recebera do avô auxilio material para sua mantença de forma espontânea e, com seu falecimento, sua tia tornou-se beneficiária da pensão deixada por seu pelo respectivo.
A 3ª Turma negou provimento ao recurso, mantendo o acórdão por entender estar este sem sintonia com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça que sustenta a obrigação alimentar decorrer de lei, que indica os parentes obrigados de forma taxativa e não enunciativa, sendo devidos os alimentos, reciprocamente, aos colaterais até o segundo grau, não abrangendo, consequentemente, tios e sobrinhos [11].
Na doutrina, Leoni sustenta inexistir obrigação alimentar entre tios e sobrinhos, nem entre primos, pautado na reciprocidade alimentar, por defender que a lei, ao criar o vínculo da obrigação alimentar decorrente do parentesco, do casamento e da união estável, estabelece reciprocidade da obrigação entre credores e devedores. Desse modo, há reciprocidade de obrigação alimentar entre: a) ascendentes e descendentes; b) irmãos, bilaterais ou unilaterais; c) cônjuges; d) companheiros da união estável [12].
Outrossim, para Rolf Madaleno, a prestação de alimentos na linha colateral vai somente até o segundo grau de parentesco, porque entre irmãos ainda existe no mundo dos fatos um vínculo de intimidade e afeição; embora no campo do direito sucessório a ordem de vocação hereditária permita herdar por direito próprio na linha colateral até o quarto grau (CC, artigo 1.839), aduz a doutrina serem diferentes os critérios políticos e sociais a ditarem as regras dos dois institutos [13].
Entretanto, Nelson Rosenvald, apud, Fernanda Tartuce, pondera ser possível o deferimento excepcional de alimentos de modo a que o tio ampare o sobrinho [14].
Igualmente, Maria Berenice Dias, afirma que, o parentesco na linha colateral vai até o quarto grau e a obrigação alimentar se estende além dos irmãos, alcançando tios, sobrinhos-netos e primos [15].
Reverbera que, não há como prevalecer a interpretação majoritária da doutrina, que fere até elementares princípios éticos. Atribuindo a Constituição à família os mais amplos deveres (CF 227), aí reside o dever de alimentos de todos para com todos. É imprescindível a proteção integral a cada um de seus membros, sendo os parentes — respeitada a ordem de preferência — obrigados a prestar alimentos entre si. Nada justifica conceder abrangência diversa ao conceito de parentes. Ante ao princípio da razoabilidade não parece crível que quisesse o legislador afastar tios, sobrinho e primos do encargo alimentar, sendo eles herdeiros e tendo legitimidade para receber bens de cujus [16].
Não se pode afastar a apreciação do princípio da solidariedade humana que é o fundamento do direito social acrescido pela Emenda Constitucional nº 64, de 04 de fevereiro de 2010, com o acréscimo dado ao artigo 6° da Constituição, que se realiza pela execução de políticas públicas destinadas a garantir amparo e proteção social aos mais fracos e mais pobres, que não dispõem de recursos para viver dignamente e sendo indispensável para garantir os meios de sobrevivência honrada.
Quando um indivíduo carece de recursos pelas mais diferentes circunstâncias como a idade, falta de saúde, condições sociais, recessão, altos índices de desemprego e não pode obter alimentos por seu trabalho, arremata Eduardo Ignacio Fanzolato, apud, Rolf Madaleno a subsistência deste necessitado deverá ser atendida em primeiro plano pelos familiares próximos, em cumprimento de um dever moral e jurídico de solidariedade familiar [17].
Rolf Madaleno descreve que a solidariedade é princípio e oxigênio de todas as relações familiares e afetivas, porque esses vínculos só podem se sustentar e se desenvolver em ambiente recíproco de compreensão e cooperação, ajudando-se mutuamente sempre que se fizer necessário [18].
Para Maria Berenice, o dever alimentar decorre da solidariedade familiar existente entre cônjuges, companheiros e demais parentes em linha reta ou colateral [19].
Ainda que não se desincumba o Estado da obrigação do amparo legal, esta deve recair sobre o parentesco, uma vez ser a família o instituto mais forte de solidariedade.
Em que pese primar pelo forte entendimento doutrinário e jurisprudencial, no sentido de, os alimentos entre colaterais serem limitados ao segundo grau, Yussef, expõe que em relação às pessoas não enumeradas na lei, acena-se com a existência de um dever de socorro de natureza simplesmente moral, que, assim, não assegura pretensão à exigibilidade, mas que prestado, desautoriza a repetição [20].
Analisar essas combinações novas, essas realidades contemporâneas, é dever do jurista, apreciador dos fatos sociais com repercussão jurídica, os quais são colhidos da experiência humana e possuem efeitos jurígenos [21].
Da abordagem atingida acerca dos desdobramentos da obrigação alimentar entre parentes colaterais, restou clarividente, a imperiosa necessidade em se discorrer doutrinariamente quanto a motivação legislativa que taxou a limitação da obrigação alimentar entre colaterais de segundo grau, ao passo que em dispositivo próximo e antecedente assegura o dever de mutua assistência entre parentes, como já exposto, entre colaterais são os alcançados em quarto grau.
Teria o legislador inobservado ressaltar a obrigação alimentar entre parentes colaterais de terceiro e quarto grau?
São graves as consequências para aqueles deixados à mercê dos préstimos sociais do Estado, porquanto não se justificaria deixar de invocar a solidariedade familiar ao parente de terceiro e quarto graus, após afastados os mais próximos, assegurando o mínimo para a subsistência daqueles que necessitarem.
Em que pese a inexistência de dispositivo legal para reconhecer o dever alimentar entre parentes de terceiro e quarto grau, a apreciação do Judiciário nas ações tocantes a este pleito, não deve ser valer tão somente de dispositivos legais taxativos, devendo para tanto se valer da aplicação hermenêutica, ante ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição.
Por tal premissa a luz do princípio da solidariedade familiar, imperioso é o dever do Judiciário, em receber e julgar as ações de alimentos entre colaterais de terceiro e quarto graus para, somente após afastado o grau mais próximo, compelir aos mais remotos, limitados ao quarto grau, ao pagamento de alimentos àqueles que incontroversamente necessitarem da assistência material.
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Referências
CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 6ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
CARDOSO, Luiza Tosta. A Prisão Civil como Técnica Processual Coercitiva na Execução de Obrigação Alimentar Decorrente de Ato Ilícito. 2020. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) — Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 26 ago. 2022
DIAS, Maria Berenice. Alimentos aos Bocados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
LEI Nº 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 09 ago. 2022.
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
MADALENO, Rolf. Direito de Família. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
NERY, Rosa Maria de Andrade. Alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
OLIVEIRA, José Maria Leoni Lopes de Oliveira. Direito Civil: Família. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
TARTUCE, Fernanda. Processo Civil no Direito de Família: Teoria e Prática. 3. ed. São Paulo: Método, 2018.
[1] MADALENO, Rolf. Direito de Família. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p 88
[2] OLIVEIRA, José Maria Leoni Lopes de Oliveira. Direito Civil: Família. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p 311
[3] OLIVEIRA, José Maria Leoni Lopes de Oliveira. Direito Civil: Família. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p 312
[4] LEI Nº 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 09 ago. 2022.
[5] CARDOSO, Luiza Tosta. A Prisão Civil como Técnica Processual Coercitiva na Execução de Obrigação Alimentar Decorrente de Ato Ilícito. 2020. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) — Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória.
[6] LEI Nº 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 09 ago. 2022.
[7] MADALENO, Rolf. Direito de Família. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p 1299
[8] NERY, Rosa Maria de Andrade. Alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p 116
[9] NERY, Rosa Maria de Andrade. Alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p 117
[10] LEI Nº 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 09 ago. 2022.
[11] AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ALIMENTOS PROPOSTA POR SOBRINHA EM RELAÇÃO À TIA. INEXISTÊNCIA DE OBRIGAÇÃO LEGAL. 1.- Segundo o entendimento deste Tribunal, a obrigação alimentar decorre da lei, que indica os parentes obrigados de forma taxativa e não enunciativa, sendo devidos os alimentos, reciprocamente, pelos pais, filhos, ascendentes, descendentes e colaterais até o segundo grau, não abrangendo, consequentemente, tios e sobrinhos ( CC, artigo 1.697). 2.- Agravo Regimental improvido. (STJ – AgRg no REsp: XXXXX DF 2012/XXXXX-1, relator: ministro SIDNEI BENETI, Data de Julgamento: 17/09/2013, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/10/2013).
[12] OLIVEIRA, José Maria Leoni Lopes de Oliveira. Direito Civil: Família. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p 591
[13] MADALENO, Rolf. Direito de Família. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p 1362
[14] TARTUCE, Fernanda. Processo Civil no Direito de Família: Teoria e Prática. 3. ed. São Paulo: Método, 2018, p 208
[15] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p 405
[16] DIAS, Maria Berenice. Alimentos aos Bocados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p 92
[17] MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p 1008
[18] MADALENO, Rolf. Direito de Família. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p 159
[19] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p 915
[20] CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 6ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p 504
[21] NERY, Rosa Maria de Andrade. Alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p 177.
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