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Vieira e Abdo: Regressividade e cashback na reforma tributária

31 de maio de 2023, 15h20

Por Lucas Terto Ferreira Vieira, Pedro Henrique Vale Abdo

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Conforme noticiado pela imprensa [1], o secretário extraordinário da reforma tributária, Bernardo Appy, afirmou, em evento recente, que "o novo modelo tributário prevê sistema de devolução do imposto para as famílias de baixa renda, cashback, forma eficiente de fazer política distributiva". Mas, afinal, por qual razão o modelo de cashback é adotado pelos principais defensores dos projetos de reforma tributária em trâmite no Congresso Nacional? Qual é a sua relação com a atual regressividade do sistema tributário brasileiro?

A resposta para tal questionamento exige a compreensão de algumas premissas. É fato que o sistema tributário brasileiro é um dos mais complexos e de difícil interpretação do mundo. Dados colhidos no site do Tribunal de Contas da União [2] indicam que, desde a promulgação da Constituição, em 1988, foram editadas, em média, 37 normas tributárias por dia.

Hoje, 5.570 municípios, 26 estados, Distrito Federal e União têm competência para instituir tributos — há, inclusive, os que são cobrados parcialmente no ente de origem e parcialmente no de destino. Existe uma mescla de tributos indiretos, diretos, cumulativos, não cumulativos, incidentes separadamente sobre mercadorias e/ou sobre serviços (o que são mercadorias e o que são serviços em plena economia digital?), reais, pessoais… e tudo isso em cima de um caótico arcabouço de diversas decisões administrativas e judiciais conflitantes e que frequentemente mudam. Afinal, no Direito Tributário brasileiro, até o passado é incerto.

O resultado disso é um sistema complexo, caro (o passivo tributário no país é trilionário), burocrático, juridicamente inseguro e, ao que toca neste artigo, injusto.

A reforma tributária é urgente — e o governo eleito a colocou como prioridade para este primeiro ano. Não há como pensar em um Brasil como potência futura enquanto não houver simplificação e desburocratização, com um cenário administrativo-fiscal atrativo, moderno e eficiente, com respeito à segurança jurídica.

As duas principais PECs que estão sendo debatidas são a 45 e a 110, cada uma com suas peculiaridades, mas ambas com enfoque na redução e na simplificação dos impostos sobre consumo, os impostos indiretos. A ideia que está ganhando corpo é a de transformar uma série de tributos hoje existentes em um ou dois impostos (IBS, na PEC 45, ou IVA dual, na 110), não cumulativos e cobrados apenas no local de destino, com uma alíquota predominantemente única.

Para além das divergências, ambas as propostas trazem em comum o mecanismo do cashback (devolução, aos mais pobres, limitada a um teto, de parte dos impostos que pagarem) como forma de promoção da justiça fiscal e de extinção (ou mitigação) dos — elevados — benefícios e isenções tributários hoje existentes, que contribuem para a complexidade e a injustiça do sistema atual. É uma mudança de paradigma: a desoneração de produtos (como cestas básicas) deixaria de existir, e o enfoque passaria a ser na desoneração de pessoas.

Não se sabe ao certo, ainda, como isso será feito e nem quem terá direito, já que a previsão é que o mecanismo seja regulado posteriormente por meio de lei complementar. Existem algumas ideias na mesa — e, inclusive, há um programa pioneiro em funcionamento no Rio Grande do Sul (Devolve ICMS). Quanto à forma, já foi publicamente dito, por exemplo, que o cashback poderá se dar através de descontos diretamente na hora de fazer o pagamento ou, então, por meio de crédito na conta ou em cartão social do programa. Já em relação aos beneficiados, há quem sugira utilizar os dados do CadÚnico, do Bolsa Família ou alguma outra métrica. Enfim, o mecanismo de funcionamento ainda está em discussão — e certamente haverá vozes de todos os lados.

Mas o ponto nodal é que, ao se dotar uma alíquota única para todos (ou quase todos) os produtos e serviços (ao invés de desonerar itens específicos), com uma maneira de devolver parte do dinheiro aos mais pobres, o sistema tributário ficará menos regressivo.

Um sistema tributário regressivo é aquele em que se cobra mais tributo proporcionalmente de quem menos ganha. A lógica brasileira — em que a tributação sobre bens é maior que sobre serviços — é regressiva. Afinal, os mais pobres consomem bem menos serviços (que tem alíquotas menores) do que os mais ricos.

Com a unificação das alíquotas e o sistema de cashback, o sistema tenderá a ser mais progressivo, e quem ganha mais pagará mais tributo, proporcionalmente, do que quem menos ganha. É a justiça fiscal sendo promovida, em uma legislação mais simples, com menos impostos e menos burocrática. Os mais pobres ganham com o aumento do seu poder de consumo (espera-se um aumento de quase 23% no consumo dos que ganham até um salário mínimo) e os mais ricos ganham com o aumento de produtividade esperado para a economia com a simplificação do sistema tributário. Conforme dados levantados pela BBC [3], a PEC 45 tem o potencial de elevar o PIB brasileiro de 12 a 20% nos próximos anos — e a maior parte do crescimento, por óbvio, irá para os mais ricos, que concentram mais renda.

Além de minimizar bastante o "custo Brasil", a reforma, com o cashback, representará um enorme avanço à implementação de uma verdadeira justiça fiscal, tributária e, até mesmo, social — conforme relatório do movimento Pra Ser Justo [4], de professores da UFMG, espera-se uma diminuição de cerca de 3,2% do índice Gini, justamente o índice que mede a desigualdade.