Considerações sobre a Lei Maria da Penha: de remédio a veneno
27 de maio de 2023, 6h32
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) inegavelmente trouxe grandes avanços para fins de combate à violência doméstica, prática recorrente em um país de dimensões continentais como o Brasil.
A elaboração da lei adveio da recomendação realizada por meio de relatório confeccionado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, mormente pela violência sistêmica contra o gênero feminino.
Todavia, há de se pontuar que, apesar dos avanços trazidos pela legislação em comento, houve pontos e situações passíveis de crítica, em especial ao fato de possibilitar aos praticantes de alienação parental ampararem-se por vezes na referida legislação como meio para afastarem os pais dos seus filhos.
Sua utilização indevida pelos alienadores ocorre quando, muitas vezes, o agente não consegue separar os conceitos de conjugalidade e parentalidade, e acaba por utilizar os filhos como objeto de vingança para atingir o outro [1].
Em uma breve consulta de dados, percebe-se um volumoso número de casos em que há má utilização dos dispositivos da lei, uma vez que em 73% [2] dos casos em que as mães visam afastar os pais de seus filhos (alienação parental), elas se utilizam do modus operandi de noticiar falso fato criminoso, geralmente imputando ao ex-companheiro ameaça, ofensas ou, em casos mais graves, até mesmo a prática de crimes sexuais contra a criança.
Nesses casos há um fenômeno estudado pela criminologia que consiste na Síndrome da Mulher de Potifar.
Tal fato serve para que as alienadoras consigam pela via criminal aquilo que não conseguiram ou não conseguiriam através das Varas de Família: afastar o pai dos filhos.
Cabe ainda salientar que as falsas denúncias formuladas pelas alienadoras ocasionam o surgimento de duas vítimas. O denunciado e a criança.
A Lei Henry Borel (Lei nº 13.431/2017) estabelece que os atos de alienação parental consistem em uma forma de violência psicológica contra o infante [3] (BRASIL, 2017):
"Artigo 4º Para os efeitos desta Lei, sem prejuízo da tipificação das condutas criminosas, são formas de violência:
II – violência psicológica:
b) o ato de alienação parental, assim entendido como a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou por quem os tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este;".
A lei trata ainda da dupla vitimização (réu e criança) nos casos em que há falsas comunicações de crimes com base na Lei Maria da Penha objetivando a consecução de alienação parental:
"A falsa acusação de abuso sexual é de extrema seriedade, com repercussão imensurável na vida daquele que falsamente sofreu a denúncia, podendo perder seu emprego, ter sua honra maculada, sofrer traumas e abalos psicológicos infindáveis. Mas ele não é a única vítima dessa denúncia caluniosa.
A criança, usada pela mãe para a falsa acusação do abuso, terá que lidar com consequências que a abalarão para o resto da vida. Uma vez implantado o falso abuso, passará ela a acreditar que o abuso de fato ocorreu e o que é falso passará a ser verdadeiro. É o que se denomina de Síndrome da falsa memória. Essa síndrome prejudicará seu desenvolvimento sexual e psicológico. Outra possibilidade é essa criança ter que enfrentar a realidade dos fatos e perceber que a acusação que ela imputou contra seu genitor era falsa, o que a fará se culpar, com outros danos psicológicos.
Quando a 'Maria da Penha' é utilizada para afastar o pai da sua prole há a ocorrência da alienação parental. A violência psicológica efetuada na alienação parental é tão grave quanto aquela praticada contra a mulher no âmbito da 'Maria da Penha'. Entretanto, a violência psicológica prevista na Lei Maria da Penha configura crime, enquanto a violência de mesma natureza praticada no âmbito da alienação parental se limita à esfera civil" [4].
Cabe ainda expor que uma das falsas acusações mais recorrentes são aquelas atinentes a um suposto abuso sexual, sendo que nesses casos há enorme prejuízo ao réu que, ainda que absolvido da imputação criminosa, por inúmeras vezes é taxado na sociedade como culpado ou estuprador, perdendo seu emprego, ficando malquisto nos locais que frequenta e passando a ser marginalizado do convívio social, sem olvidar todo o dispêndio emocional e financeiro.
Nesses casos, embora possa se afirmar que no Brasil não existe presunção de inocência — o que há, quando muito, é uma presunção de não culpabilidade —, tal princípio em casos que apurem eventual conduta criminosa no âmbito de violência doméstica muitas vezes é "esquecido" pelos julgadores, promotores de Justiça (e não de acusação) e até mesmo pela sociedade de forma geral.
Cabe rememorar que o princípio da presunção de inocência do acusado é um dever de tratamento na dimensão interna e externa:
Em suma, a presunção de inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento (na medida em que exige que o réu seja tratado como inocente), que atua em duas dimensões: interna ao processo e exterior a ele.
Na dimensão interna, é um dever de tratamento imposto — inicialmente — ao juiz, determinando que a carga da prova seja inteiramente do acusador (pois, se o réu é inocente, não precisa provar nada) e que a dúvida conduza inexoravelmente à absolvição; ainda na dimensão interna, implica severas restrições ao (ab)uso das prisões cautelares (como prender alguém que não foi definitivamente condenado?).
Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiro limite democrático à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. O bizarro espetáculo montado pelo julgamento midiático deve ser coibido pela eficácia da presunção de inocência [5].
Por fim, cabe destacar que por muito tempo a jurisprudência dominante permitia (e há ainda juízes que assim o fazem) o rebaixamento do standard probatório para condenação, notadamente com entendimento de que somente a palavra da vítima bastaria para a condenação do acusado, havendo verdadeira atribuição do ônus probatório ao réu.
De lado outro, também cabe destacar o enorme prejuízo causado à infante, mormente o prejuízo psicológico, tendo em vista que tais condutas podem desencadear transtornos e consequências emocionais irreparáveis à criança, que muitas vezes, no futuro, se sente culpada.
Acerca da Síndrome das Falsas Memórias, é imperioso ressaltar que ela diariamente atinge a memória de pessoas adultas, a exemplo do que ocorre nos reconhecimentos pessoais. Logo, é indiscutível que a memória de uma criança é ainda mais facilmente afetada.
As mentiras e as falsas memórias não são sinônimos, haja vista que nessa última o agente acredita naquilo que está reproduzindo (sugestão externa ou interna inconsciente), sendo que nesses casos podem ocasionar inclusive sofrimento a esses. Por outro lado, as mentiras decorrem de ato consciente do agente [6].
Acerca das falsas memórias nos crimes sexuais, cabe trazermos as seguintes lições:
"Mas é nos crimes sexuais o terreno mais perigoso da prova testemunhal (e, claro, da palavra da vítima), pois é mais fértil para implantação de uma falsa memória. Os profissionais de saúde mental (psicólogos, psiquiatras, analistas, terapeutas etc.) têm um poder imenso de influenciar e induzir as recordações e eventos traumáticos. Cita a autora que, em 1986, Nadean Cool, auxiliar de enfermagem de Wisconsin, consultou um psiquiatra porque não conseguia lidar com as consequências de um acidente sofrido pela filha. No tratamento foram utilizados pelo terapeuta técnicas de sugestão, hipnose e outras. Após algumas sessões, explica LOFTUS, 'Nadean se convenceu de que tinha sido usada na infância por uma seita satânica que a violentara, a obrigara a manter relações sexuais com animais e a forçara a assistir ao assassinato de um amigo de 8 anos. O psiquiatra acabou por fazê-la acreditar que ela tinha mais de 120 personalidades em decorrência dos abusos sexuais e da violência sofridos quando criança.
(…)
Casos assim ocorrem com regularidade, mas dificilmente são documentados e desmascarados. Diferenciar lembranças verdadeiras de falsas é sempre muito difícil, ocorrendo apenas quando se consegue demonstrar que os fatos contradizem às (falsas) lembranças. Mas, e nos demais casos? As consequências são gravíssimas" [7].
Por fim, embora o Código Penal em seu artigo 339 tipifique a denunciação caluniosa como crime, cabe ressaltar que os autores das práticas criminosas de falsas denúncias mormente em âmbito doméstico raramente são penalizados, notadamente pela dificuldade de se comprovar os elementos objetivo e subjetivo do crime.
O mesmo argumento da "especial relevância da palavra da vítima" é utilizado para arquivar inquéritos, rejeitar denúncias ou até mesmo absolver agentes que se utilizam indevidamente da Lei Maria da Penha com fins vingativos. Neste sentido:
"HABEAS CORPUS — REPRESENTAÇÃO DE AGRESSÃO — LEI MARIA DA PENHA — RETRATAÇÃO NA DELEGACIA — NECESSIDADE DE SER FEITA PERANTE JUÍZO — RETRATAÇÃO NULA — INSTAURAÇÃO DE AÇÃO PENAL CONTRA A SUPOSTA VÍTIMA DE AGRESSÃO POR CRIME DE 'DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA' — DESCABIMENTO — ABSOLUTA AUSÊNCIA DE 'ANIMUS CALUNIENDI' — ATIPICIDADE DA CONDUTA OU AUSÊNCIA COMPLETA DE MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA PARA SUPEDANEAR INQUÉRITO OU AÇÃO PENAL — AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA EVIDENCIADA — MEDIDA DE EXCEÇÃO – ORDEM CONCEDIDA PARA TRANCAR AÇÃO PENAL.
— Nos crimes cometidos com violência doméstica, sujeitos aos ditames da Lei Maria da Penha, a retratação da ofendida só tem validade se feita perante o juízo, como explicita o artigo 16 da Lei 11.340/06. A inobservância dessa exigência legal torna nula a retratação, dela não podendo decorrer nenhuma efeito.
— A instauração de ação penal por denunciação caluniosa, quando a própria calúnia é evidentemente inexistente, e quando ausente o dolo de calúnia, é de todo descabida. (TJMG – Habeas Corpus Criminal 1.0000.12.002897-2/000, relator(a): desembargador (a) Flávio Leite, 1ª CÂMARA CRIMINAL, DJe 09/03/2012)" [8].
Assim, é necessário elaborar melhores formas de apuração e responsabilização dos agentes que cometem tais atrocidades, de forma a se viabilizar sua punição, sem contudo evitar que as verdadeiras vítimas de crimes no âmbito doméstico deixem de comunicar tais fatos às autoridades competentes.
[1] ULLMANN, Alexandra; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Quando a Lei Maria da Penha é uma forma de alienação parental. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jan-24/quando-lei-maria-penha-forma-alienacao-parental. Acesso em: 02 maio 2023.
[2] ANDRADE, Mariana Cunha de e NOJIRI, Sergio. Alienação parental e o sistema de Justiça brasileiro: uma abordagem empírica. Revista de Estudos Empíricos em Direito Brazilian Journal of Empirical Legal Studies. vol. 3, nº 2, jul 2016, p. 190.
[3] BRASIL. Lei Ordinária nº 13431, de 04 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Lei Nº 13.431, de 4 de Abril de 2017. Brasília, DF, 04 abr. 2017.
[4] SOUSA, Isabela Bueno de; BARBOSA, Ruchester Marreiros. A Lei Maria da Penha como instrumento de vingança. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mai-27/isabela-bueno-lei-maria-penha-instrumento-vinganca#:~:text=Profissionais%20que%20atuam%20nessa%20seara,do%20conv%C3%ADvio%20com%20seu%20filho. Acesso em: 02 maio 2023.
[5] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal: Presunção de Inocência (ou um Dever de Tratamento). 2016. Disponível em: https://cptl.ufms.br/files/2020/05/Direito-Processual-Penal-Aury-Lopes-Jr.-2019-1.pdf. Acesso em: 02 maio 2023.
[6] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal: falsas memórias e os perigos da prova testemunhal. o paradigmático caso escola base. Falsas Memórias e os Perigos da Prova Testemunhal. O Paradigmático "Caso Escola Base". 2016. Disponível em: https://cptl.ufms.br/files/2020/05/Direito-Processual-Penal-Aury-Lopes-Jr.-2019-1.pdf. Acesso em: 02 maio 2023.
[7] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal: falsas memórias e os perigos da prova testemunhal. o paradigmático caso escola base. Falsas Memórias e os Perigos da Prova Testemunhal. O Paradigmático "Caso Escola Base". 2016. Disponível em: https://cptl.ufms.br/files/2020/05/Direito-Processual-Penal-Aury-Lopes-Jr.-2019-1.pdf. Acesso em: 02 maio 2023.
[8] MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Acórdão nº 1.0000.12.002897-2/000. Zélia Pereira da Silva Pessoa. Ministério Público de Minas Gerais. Relator: desembargador Flávio Batista Leite. Belo Horizonte, MG, 28 de fevereiro de 2012. Ementa. Belo Horizonte, 09 mar. 2012.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!