Caso Gugu Liberato, instrução processual e perspectiva de gênero
25 de maio de 2023, 12h25
A morte de Antônio Augusto Moraes Liberato, o Gugu Liberato, possibilita reflexões sobre a complexidade das relações familiares e os desafios do direito na atualidade. Muito embora haja sigilo sobre os processos que tratam da sucessão e, também, da existência ou não de união estável entre Gugu e Rose Miriam — mãe do filho e filhas do apresentador —, a imprensa torna possível ao respeitável público pagão entreter-se com as mazelas dos profissionais envolvidos na instrução processual que não acolheram o Protocolo Para Julgamento Com Perspectiva de Gênero no desenvolvimento de suas atividades jurídicas.
No último dia 23, a colunista Mônica Bergamo publicou na Folha de S.Paulo que "Advogado pergunta a viúva de Gugu se ela tinha relações sexuais com apresentador e gera tumulto em audiência". Segundo consta da informação revelada pela jornalista, o advogado que representa Aparecida Liberato (irmã de Gugu) perguntou: "Rose diz que eles viviam em uma família como marido e mulher. Eles mantinham relações sexuais?". Ao receber a resposta positiva, o advogado insistiu: "Quantas vezes nos 20 anos [em que viveram sob o mesmo teto]?".
É sobre esse momento da instrução processual (fenômeno) revelado pela colunista que se deseja refletir e, parafraseando um ultrapassado ditado popular, meter a colher para tratar da perspectiva de gênero durante a instrução processual.
Pensar em julgamento com perspectiva de gênero é, antes de tudo, admitir que vivemos uma realidade social machista, misógina e heteronormativa que não assegura a igualdade de proteção à dignidade humana entre homens e mulheres. E mais do que isso, é reconhecer que dentro das estruturas encarregadas de assegurar a dignidade humana como, por exemplo, Poder Judiciário, Poder Executivo, Poder Legislativo, Ministério Público, Advocacia Pública, Advocacia Privada entre outras encontraremos agressores que desprezam os gestos e signos femininos para validar sua existência e superioridade.
No Brasil, pode-se utilizar diversas normas jurídicas para enfrentar a violência de gênero. Têm-se a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a Conferência sobre a População e Desenvolvimento e no Brasil e a Lei Maria da Penha (Lei Federal nº 11.340/06).
Além do mais, essa tradição brasileira de resistir e enfrentar a violência de gênero permitiu o desenvolvimento de diversos estudos e, consequentemente, a elaboração de diversos materiais para conscientização, entre eles, o Protocolo Para Julgamento Com Perspectiva de Gênero, pelo grupo de trabalho instituído pela Portaria CNJ nº 27, de 2 de fevereiro de 2021, o qual passou ser obrigatório em todo os órgãos do Poder Judiciário, conforme disposto na Resolução CNJ nº 492, de 17 de março de 2023.
Diante do cenário apresentado, pode-se retomar a discussão pretendida, qual seja: analisar a instrução processual a partir do Protocolo Para Julgamento Com Perspectiva de Gênero.
O protocolo estabelece que os sujeitos processuais devem atuar contra as desigualdades estruturais e, desse modo, cuidar do ambiente em que será realizada a audiência para que não ocorra a violência institucional de gênero, isto é, que dentro da estrutura que proporciona o acesso à justiça haja o reforço da assimetria de poder estrutural, a qual cria condições materiais, culturais e ideológicas para que a mulher sofra violência no momento da instrução processual.
Esclarece-se, que no protocolo é definida como: "Violências praticadas por instituições, como empresas (ignorar ou minimizar denúncias de assédio sexual), instituições de ensino (permitir atividades sexistas, como trotes e/ou músicas machistas), Poder Judiciário (expor ou permitir a exposição e levar em consideração a vida sexual pregressa de uma vítima de estupro, taxar uma mulher de vingativa ou ressentida em disputas envolvendo alienação parental ou divórcio)".
Sendo assim, compreende-se que o protocolo aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça trouxe novos elementos para interpretarmos as normas processuais que dispõem sobre os deveres dos sujeitos processuais, em especial, para dar sentido aos princípios da boa-fé (artigo 5º, CPC) e da colaboração processual (artigo 6º, CPC) em casos que tenha parte hipervulnerável.
Desde a obrigatoriedade de aplicação do protocolo, entende-se que há um dever jurídico-processual que impõe um agir ativamente contra a assimetria de poder, os fatores culturais e ideológicos que concorrem para a violência de gênero, assim como de colaborar para a solução do conflito posicionando-se contra qualquer ato/atitude que resulte na lesão à dignidade da mulher como, por exemplo, a exposição da vida sexual pregressa ou emoções como elementos determinantes para credibilidade e reconhecimento de um determinado direito.
Na situação revelada pela colunista, observa-se que na audiência de instrução não foi observado o Protocolo Para Julgamento Com Perspectiva de Gênero, razão pela qual o advogado encontrou as condições necessárias, no ambiente institucional, para questionar a vida sexual pregressa de Rose Miriam e, mais, aprofundar o questionamento sobre a quantidade de vezes que ela teve relações sexuais com Gugu durante o período de convivência — seja ou não como união estável.
Não é necessário um grande esforço para perceber a impertinência das perguntas formuladas — de que intenção era desqualificar a mulher como sujeito de direitos —, afinal, se a relação sexual é elemento robusto de convicção para reconhecer união estável, então, teremos dificuldades para lidar com o amplo reconhecimento de uniões entre jovens com vida sexual ativa e, também, com o grande número de dissolução de sociedade conjugal entre adultos que convivem na mesma habitação, porém, que não fazem sexo. Pensa-se, ainda, no absurdo da indagação sobre a quantidade de vezes que mantiveram relações sexuais; se é saudável ou comum aos casais manterem uma contabilidade do sexo para fins de prestação de contas e, no limite, para a manutenção do reconhecimento da união/casamento. É incompreensível e inadmissível à luz da perspectiva de gênero aplicada aos julgamentos.
As estapafúrdias perguntas são ofensivas à dignidade de qualquer sujeito do processo, tanto é verdade, que a colunista revelou que o advogado de Rose Miriam devolveu a pergunta ao advogado; ele quis saber se o representante legal mantinha relações sexuais com a esposa, a qual estava presente na audiência. Nesse momento, instaurou-se uma confusão geral porque o advogado se sentiu ofendido com a pergunta que ele mesmo formulou e, apenas, que foi repetida pelo defensor de Rose Miriam.
No que pese a intervenção do juiz para conter a confusão e, depois, alertar que as perguntas impertinentes seriam indeferidas, é certo que a falta de perspectiva de gênero na atuação do magistrado (entender o caso a partir da assimetria entre homens e mulheres) impediu um agir ativamente contra as perguntas formuladas desde o primeiro momento da audiência (antes da confusão); infelizmente, o juiz limitou-se ao papel reativo para conter a desordem na audiência e não necessariamente para impedir a exposição da vida sexual pregressa da mulher, o que em nada auxilia no combate à violência de gênero e reforça a violência institucional.
Conclui-se a discussão com a certeza de que a obrigatoriedade de aplicar o protocolo em todos os órgãos do Poder Judiciário é um pequeno (mas importante) passo no combate à violência de gênero; provavelmente, será uma maratona que exigirá muito preparo, fôlego e resiliência para superarmos a desigualdade de gênero. Certamente, grandes mudanças só ocorrerão quando houver a imposição de capacitações em perspectiva de gênero aos homens que atuam no sistema de justiça e, desse modo, fomentar a reconstrução do papel do que é ser do sexo masculino, permitindo a análise de papéis e estruturas dentro do ambiente familiar e institucional.
____________
Referências
MIGALHAS. Perspectiva de Gênero. Um guia para o direito previdenciário.: julgamento com perspectiva. Ribeirão Preto: Migalhas, 2020. Disponível em: http://ajufe.org.br/images/pdf/CARTILHA_-_JULGAMENTO_COM_PERSPECTIVA_DE_G%C3%8ANERO_2020.pdf. Acesso em: 23 mai. 2023.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011.
SZWAKO, José Eduardo. Diferenças, igualdade. São Paulo, Berlendis & Vertecchia, 2009, pp. 116-148. Disponível em: https://ria.ufrn.br/123456789/1524. Acesso em: 08 jan. 2021.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!