Um na multidão

Jurisprudência rigorosa acompanha excessos da própria Lei da Ficha Limpa

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19 de maio de 2023, 8h56

A Lei da Ficha Limpa estabelece uma quantidade excessiva de hipóteses de inelegibilidade, algumas totalmente desvinculadas de critérios judiciais. Assim, não surpreende que sua aplicação rigorosa tenha servido para levar à cassação até mesmo de um deputado federal que passou a carreira no Ministério Público Federal buscando formas de defendê-la, segundo especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

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Moro e Deltan geraram caso de magistrados em membros do MP alvo de procedimentos e que deixam cargo para concorrer
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Segundo os eleitoralistas, é questionável a linha argumentativa segundo a qual Deltan Dallagnol (Podemos-PR) foi alvo de uma grande inovação do Tribunal Superior Eleitoral, no julgamento que cassou seu mandato na última terça-feira (18/5). De fato, não há na jurisprudência da corte outro caso de aplicação da regra que derrubou o ex-chefe da "lava jato", criada pela Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010).

Até então, o TSE só discutiu o artigo 1º, inciso I, alínea "q" da Lei Complementar 64/1990 uma vez, justamente no caso de um companheiro de Curitiba: Sergio Moro. E em dezembro, o tribunal entendeu que o ex-juiz federal não feriu a regra segundo a qual está inelegível quem deixa a magistratura na pendência de processo administrativo disciplinar (PAD).

Para cassar Deltan, por outro lado, a corte usou a vasta tradição brasileira de combate à fraude à lei: o uso de um ato lícito para atingir uma finalidade proibida. Se não tivesse deixado o MPF antecipadamente, os 15 procedimentos dos quais era alvo no Conselho Nacional do Ministério Público, muitos de gravidade, poderiam evoluir para PADs e torna-lo inelegível.

Deltan foi alvo da Lei Ficha Limpa em sua faceta mais criticada desde que foi aprovada em 2010, a toque de caixa e a partir de grande mobilização popular: aquela que cria a possibilidade restringir de um direito fundamental — de votar e ser votado — em hipóteses que não dependem de sentença definitiva, em tese a mais criteriosa das opções.

Como as alterações promovidas na Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar 64/1990) tiveram a constitucionalidade confirmada por maioria de votos pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, elas vêm sendo aplicadas em todo seu rigor — muitas vezes, inclusive, com o apoio do próprio Dallagnol, que ao deixar de ser pedra rapidamente se descobriu vidraça.

É assim mesmo
"Não houve excepcionalidade alguma", explica o advogado Rodrigo Valgas, que publicou artigo na ConJur sobre o tema. "É a reiteração de uma jurisprudência que tem aplicado duramente a Lei da Ficha Limpa. Não tem novidade para o Deltan. Isso que foi feito com ele acontece com prefeitos pelo Brasil inteiro. A jurisprudência é muito dura porque a lei também é muito dura", afirmou.

Para ele, a Lei da Ficha Limpa é uma das piores já editadas no país não apenas por fragilizar direitos fundamentais, mas também por ofender a Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário e que, segundo a Súmula Vinculante 25 do Supremo Tribunal Federal, tem status supralegal — ou seja, acima das leis brasileiras.

O problema é que, pelo texto da convenção, a única condenação que pode restringir o direito de votar e ser eleito é a do processo penal, quando feita por juiz competente. Essa previsão está no artigo 23, item 2. Logo, a Lei da Ficha Limpa é inconvencional. "E o que o Brasil faz? Nada. Ele ignora olimpicamente", critica.

Antonio Augusto/Secom/TSE
Voto do ministro Benedito Gonçalves puniu Dallagnol pela prática de fraude à lei
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Valgas elogia a fundamentação do voto do relator no TSE, ministro Benedito Gonçalves, mas diverge da conclusão. Para ele, a artimanha usada por Dallagnol só poderia servir para torna-lo inelegível se estivesse prevista na alínea "q". Com isso, não caberia elastecer o conceito de fraude à lei para restringir um direito político fundamental.

Marcelo Aith, que também escreveu na ConJur sobre o tema, é outro a criticar a conclusão do TSE. Destaca que os processos de Deltan no CNMP estavam em fase preparatória, sob contraditório mitigado, mas foram tomados pelo TSE como se prestes a gerar PAD. "É inequívoco que há uma ofensa ao principio do estado de inocência", avalia.

A advogada Paula Bernardelli, do Neisser e Bernardelli Advocacia, cita as críticas originais sobre o tema, especialmente em relação aos muitos casos em que há a possibilidade de afastar um candidato ou cassar um mandato sem decisão judicial definitiva sobre uma acusação.

"Apesar dessas críticas, no entanto, as hipóteses de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa foram implementadas e julgadas constitucionais há muitos anos. Assim, devem ser aplicadas igualmente à todas as candidaturas, exatamente como fez o TSE nesse caso", conclui.

Segundo Renato Ribeiro de Almeida, o rigor dos julgamentos envolvendo a Lei da Ficha Limpa é uma realidade que se impõe por obra do legislador. "A lei, tal como colocada, é rigorosa", avalia. E contesta os efeitos práticos. "Não vejo que a política tenha melhorado tirando tanta gente de tantos cargos. A realidade foi essa. A gente teve um monte de gente cassada."

Não é só o Deltan
Para além da específica hipótese da alínea "q", que trata de magistrados e membros do MP que tenham deixado o cargo na pendência de processos administrativos disciplinares, a Lei da Ficha Limpa introduziu outras inelegibilidades que não demandam um processo judicial.

Assim como quem cometeu crime ou fraude eleitoral, ficam inelegíveis por oito anos os excluídos do exercício da profissão por decisão de órgão profissional, os demitidos do serviço público e os que, no passado recente, administraram instituições financeiras que tenham se tornado alvo de liquidação judicial ou extrajudicial.

Segundo os advogados, a alínea campeã em derrubar candidaturas é a de letra "g", que pune aqueles que tiveram suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa.

Isso deu aos Tribunais de Contas brasileiros — órgãos independentes que auxiliam o Poder Legislativo a fiscalizar o Executivo — o formidável poder de, ao julgar contas, decidir também a ocorrência de improbidade administrativa sem precisar passar pelo trâmite de ação civil pública.

As conclusões tomadas nos acórdãos assinados por seus membros — que não são juízes togados, mas escolhidos pelo chefe do Executivo e pelo Legislativo — influenciam diretamente os julgamentos da Justiça Eleitoral. E quando não o fazem, a jurisprudência permite que os tribunais analisem o caso e identifiquem ou não a existência de ato doloso de improbidade.

"Não é só o Deltan", afirma Rodrigo Valgas. "Quem paga conta é o prefeito, o vereador, o deputado. Não precisa chegar em alguém famoso. É uma situação bem delicada", acrescenta.

"Em relação ao Deltan, há quem possa dizer que é injusto, que ele poderia ter feito um grande mandato", cita Renato Ribeiro de Almeida. "Assim como teriam feito muitos das centenas de ex-prefeitos, vereadores e deputados que tiveram a lei aplicada contra si desde 2010 e seus registros de candidatura negados."

RO 0601407-70.2022.6.16.0000

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